Por: Eliana Rezende*
Ainda vivemos o rescaldo de uma das maiores tragédias culturais que nosso país assistiu bestializado: 200 anos de pesquisa e trabalho científico viraram cinzas sob os olhos televidentes do Brasil e do mundo. Era domingo, perto das 19 horas no primeiro dia da “Semana da Pátria”.
Ironias à parte, eram um dia e horários nobres para que assistíssemos o inominável desfecho de séculos de desprezo ao Patrimônio que é de todos. Nosso Patrimônio Cultural/Documental foi consumido pelo descaso, por cupins e chamas!
Naquele momento faltavam palavras… sobravam dor e estupor.
O regresso civilizacional que demonstramos e nossa impotência de ser fiel guardador de um Patrimônio único e precioso que não é de um Museu, mas é da Humanidade. Sim, Humanidade! Pois, Patrimônios Culturais pertencem à toda a civilização humana: é Responsabilidade Histórica que devemos à nossa geração e às futuras.
Mas afinal, que povo, que sociedade somos nós?
Pergunto, pois o momento atual não é o de sair à caça de bruxas e bodes expiatórios, sem qualquer crítica reflexiva. Fazer isso nada mais será do que escancarar, apenas e tão somente, espasmos de um discurso raso e oportunista.
Buscam-se “culpados” e “responsabilidades”, mas sem uma verdadeira e profunda preocupação. Em verdade, venhamos e convenhamos: o descaso e desrespeito ao Patrimônio Cultural e Histórico no nosso país foi construído e exercido há séculos, e por todas as camadas e segmentos da sociedade. Não ocorrem do dia para noite. Em alguns casos é fruto de séculos.
É exemplo disso, o relatório de 1844 que o então Diretor do Museu Nacional, Frei Custódio Alves Serrão, responsável pela instituição entre os anos de 1828 e 1847, apresentava sobre as condições precárias do Museu, então com 26 anos de vida.
Em suas palavras: “A Seção de numismática e artes liberais, arqueologia, usos e costumes das nações antigas e modernas acha-se em uma sala cujo teto ameaça ruína, visto as grandes fendas do estuque que continuamente se alargam“.
Diferentes relatórios se sucederam e as dificuldades não cessaram.
A maior prova deste fato foi o ocorrido no fatídico 02 de Setembro de 2018.
Pensemos sobre a sociedade que temos e que conseguimos produzir nestes nossos poucos séculos de existência. Será mesmo que como conjunto, podemos ser considerados um povo que exerce sua cidadania zelando e cuidando do que seja seu Patrimônio Cultural?
Quantos de nós, individualmente ou como instituição, cumprimos o papel cidadão e de responsabilidade histórica para com as futuras gerações?
Um breve olhar nos faz ver que nossa sociedade saiu direto do analfabetismo funcional para as redes sociais, sem escala, crivo ou pensamento crítico. Consome-se diversão através de grandes telas pixeladas e dificilmente, estes mesmos consumidores estiveram de fato dentro de um museu consumindo a cultura que necessitou de séculos para ser produzida.
Pergunte a quem está ao seu lado, quantos livros ou artigos leu no último mês, e quantos vídeos compartilhou no YouTube. Os analfabetos funcionais na nossa sociedade podem não ler nem compreender um único parágrafo, mas não se descolam de seus Smartphones, e a quantidade de compartilhamento e likes movimentados em um único dia, indicam que absolutamente nada é lido, nem pensado. Uma sociedade espasmódica e plana, que não sabe o nome dos museus de sua cidade, as exposições que abrigam e com quem dialogam. Mas que distribui como ninguém correntes de Whatsapp e fotos fazendo biquinhos no Instagram e Facebook.
Descaso, cupins e chamas…
O que me aflige, é que o tempo passará, e em breve até os poucos indignados se calarão, pois não terão mais ouvidos para além das imagens sensacionalistas produzidas em um dia de intensas reportagens televisivas voltadas única e exclusivamente para garantir consumo de imagens e dar aos cofres das empresas de mídia anunciantes ávidos por consumidores voláteis.
Em pouco tempo a revolta estará calada, e voltaremos a ver patrimônios serem pichados, sujados, vandalizados, roubados, destruídos. Quer por inciativas individuais, quer por iniciativa das Administrações Públicas e Privadas, que estarão cada vez mais negando ou tirando recursos para “investir” em outras áreas.
Ou será que já esquecemos do que ocorreu com Museu da Língua Portuguesa, ou o Instituto Butantã com um acervo biológico incomensurável?
Ou o incêndio, que em 2005, destruiu, em Franco da Rocha, o Arquivo Histórico do Hospital Psiquiátrico do Juqueri? Boa parte dos registros da história da nossa psiquiatria virou cinzas.
Ou as águas do temporal de 2 de janeiro de 1990, que invadiram a Biblioteca de Filosofia e Ciências Sociais da USP atingindo em cheio os livros colecionados a duras penas desde a chegada da Missão Francesa que fundou a USP?
Ou a enchente do Rio Pinheiros nos meados dos anos 1980, na Vila Leopoldina, que inundou o pavilhão do Tribunal de Justiça de São Paulo onde era abrigado um acervo de 200 anos do Arquivo do Judiciário? Mais de um metro de água suja cobriu muitas centenas de processos, entre eles os 180 volumes do processo da Revolução de 1924. Um dos volumes era exclusivamente de fotografias, um documento visual da tragédia ocorrida em São Paulo naquele ano. Aquele arquivo era fundamental para o estudo de questões sociais, referência de teses acadêmicas sobre temas fundamentais de nossa história social, como criminalidade e anomia social.
Ou seja, estamos conseguindo nos jogar nas trevas da ignorância e do alheamento para com a produção de diferentes saberes.
O Culto à Ignorância
Arquivos, Bibliotecas e Centros de Documentação significam para a humanidade verdadeiros templos: fiéis guardadores do saber e da construção do Conhecimento através dos Tempos e das Eras. Sem eles perdemos nossa Identidade. Perdemos o sentido do de onde viemos e para onde vamos. São nestes espaços que a pesquisa e a investigação se adensam, fortificam-se e geram saberes perpetuando-se para futuras gerações. Desprezar isso é a barbárie social e cultural de toda uma civilização.
Uso as palavras textuais do professor José de Souza Martins:
“Subestimar, depreciar e abandonar os acervos que registram, preservam e acumulam o saber vivo de muitas gerações mortas de pesquisadores e cientistas é renunciar à ciência. Descuidar dos acervos de arquivos, museus e bibliotecas é a morte do próprio conhecimento“.
É preciso que abandonemos o culto à ignorância e ao desrespeito ao passado. E infelizmente nosso país tem sido zeloso neste culto. De alto abaixo: de secundaristas à gestores de multinacionais – o culto à ignorância e à reverência ao deus mercado e ao imediatismo tolo tem sido a regra. Vive-se o hoje pelo hoje e se esquecem de quem não tem passado não possui lastro para construir presente e futuro.
Assisto atônita como profissional da informação e lidando com Memória Institucional, um descaso descomunal com o que é considerado apenas “gasto”. Gestores ditos “profissionais” possuem uma visão que não alcança um palmo e se esquecem de que sua gestão passará, mas a História do que formos e fizermos, para o bem ou para o mal permanecerá. As vantagens e cifras obtidas em negar o que é devido a História cobrará uma fatura altíssima no futuro. Um gestor que não consiga ter vistas ao futuro não praticará a gestão, e sim a ingerência.
O descaso que presenciamos pode ser de amplas proporções com labaredas imensas consumindo trabalhos de séculos em horas. Ou pode ser no descaso praticado diuturnamente com as más condições de vida e trabalho oferecidas à profissionais e seus acervos. Pode ser nas goteiras que não abandonam telhados, fissuras e rachaduras que insistem em trincar paredes, nos armários ou materiais para acondicionamento que nunca chegam, nas tecnologias que já chegam ultrapassadas. Pode ser na mão-de-obra que nunca é contratada ou no recurso que é sempre esparso e insuficiente. Pode ser na perda de capital intelectual por meio de políticas de juniorização das instituições, quando experientes profissionais simplesmente são encostados ou demitidos para dar lugar a jovens ambiciosos mas sem qualquer experiência. Não importa! O fim último é sempre o mesmo: perda de Patrimônios e subtração de nossa História, com impactos profundos sobre funcionários ainda zelosos e a Memória Social de diferentes gerações.
Os documentos (entendidos aqui como todos os registros da atividade humana) em diferentes suportes, são verdadeiros sobreviventes. São sobreviventes de descasos múltiplos, mutilações, abandonos, desprezos, ataques de forças da natureza (enchentes, vendavais, insetos, terremotos, incêndios), ou talvez o mais nefasto deles: o ataque dos humanos (vandalismo, roubo, depredação, desprezo, abandono, ingerências de várias ordens e instâncias). No capítulo ingerências poderia escrever um tratado escrito em frente e verso sobre as diferentes formas que gestores, que em teoria deveriam zelar por seus patrimônios, tornam-se por ignorância ou determinação, algozes do passado e do futuro: imprimem ao presente e às suas gestões a determinação da destruição. Acreditam ser perenes. Quando em verdade passarão, mas os estragos causados permanecerão como testemunhas silenciosas de sua passagem, suas práticas, feitos, desfeitos e omissões.
Por outro lado há os que acham, de novo, que Patrimônios se reconstroem! Acham que basta destinar alguma verba e tudo estará “reconstruído”. Uma palavra de cautela aqui: em primeiro lugar não há “reconstrução” para o que é imaterial! E não há reconstrução para Patrimônios da Humanidade, há sim, esforços de “restauração”. Mas esta está condicionada há muitos fatores e possivelmente, não poderá ser efetuada em sua integridade.
No caso do Museu Nacional, se em alguns casos a pedra e o cal podem ser “restaurados”, há coleções construídas no decorrer de 200 anos de pesquisa e trabalho científico que não poderão. São trabalhos feitos à mão por centenas de pesquisadores e existências inteiras dedicadas à pesquisa e produção de conhecimento. O Conhecimento é construído e tecido a partir do acúmulo e do diálogo estabelecido com seu predecessor.
Por isso, o trabalho de produção de Conhecimento a partir de estudo e pesquisa é algo que não está em uma prateleira para ser buscado e recolocado em seu lugar. Não há peças de reposição! Diferentes pesquisadores já morreram há décadas e com eles seus saberes que estavam cristalizados no conjunto de suas coleções e estudos.
E aqui é preciso compreender a forma específica que um Museu se constitui. Em nada se parecem com valores, cifras e acúmulos bem conhecidos dos cultuadores do “deus mercado”. Há coisas que definitivamente o dinheiro não compra!
O que importa, é que o acontecido no Museu Nacional do Rio de Janeiro serviu para colocar em debate aspectos relacionados à preservação e conservação de documentos e coleções imbuídas de valor histórico.
Conservação Preventiva como Políticas de Preservação de Patrimônios
Antes de pensarmos em restaurar, precisamos ter o sentido do que são ações e Políticas de Preservação que devem nortear instituições com acervos tão ricos e especiais. A noção de preservar tem que ver com uma atitude de prevenção, é algo que se estende a modos que impliquem uma conscientização que pode ser de um grupo, uma pessoa ou uma instituição.
Como forma de auxiliar nesta definição, apresento de forma sintética como todos estes termos polissêmicos podem ser entendidos.
https://www.slideshare.net/eli_rezende/definindo-e-conceituando-preservao-conservao?ref=http://eliana-rezende.com.br/patrimonio-cultural-e-responsabilidade-historica-uma-questao-de-cidadania/
O mais importante em ações que envolvem políticas de preservação e conservação são sua manutenção no tempo. Para isso definições de prioridades e estratégias de como utilizar recursos são fundamentais. E aqui entra um aspecto fundamental: a prevenção não ocorre com grandes montantes de vez em nunca, mas em ações contínuas. Precisam ser entendidas como políticas de preservação e conservação preventiva, que precisam ter ser espaço garantido no decurso do tempo.
Vamos compreender alguns equívocos recorrentes:
Em muitos casos, argumenta-se que é preciso utilizar diferentes processos tecnológicos para “salvar” tais documentos. Mas é preciso que se diga que coleções formadas e guardadas em Museus possuem uma característica para além do que é oferecido por documentos bidimensionais: a digitalização ou microfilmagem torna-se inviável já que tais documentos são objetos tridimensionais, dotados de características muito específicas e únicas, e denominados por isso, de Cultura Material. A principal característica deste tipo de registro pauta-se sobre sua existência material, única e carregada de sentidos tanto quanto de forma e conteúdo.
Não há reflexão possível ou provável a partir da sua ausência ou falta. A imaginação serve pouco, pois carece de análise que só os indícios podem trazer.
O que teremos neste caso, seria uma redução das potencialidades de uma documentação nascida a partir da experiência tridimensional (cor, textura, peso, etc) para sua redução à bidimensionalidade de uma imagem escaneada. Não há aqui crítica pela crítica, mas sim uma característica indissociável do que seja o objeto tridimensional e o bidimensional. A digitalização aplicada a este conceito reduziria possibilidades de pesquisa e investigação próprios e caros à Cultura Material.
Processos de digitalização podem e devem ser introduzidos em Políticas de Preservação e Conservação de Patrimônios, mas nunca como uma medida pós tragédias. Convém que sejam pensadas e implementadas como estratégias de conservação preventiva. Para entender melhor este tema, sugiro a leitura de um artigo que escrevi intitulado “Uso de tecnologias como política de preservação e conservação de patrimônio cultural/documental“.
Uma nota de atenção
Há ainda os ditos liberais de plantão que acreditam que empresas privadas dariam melhor conta dos desafios administrativos de um Museu. Mas aí entramos em outras questões: um Museu está relacionado à Cultura e Identidade Nacionais. Não podem ter lastro com intenções e oscilações do deus mercado. Se iniciativas privadas possuem um interesse grande pela imediaticidade de retornos, custos e cifras seria muito complicado para uma instituição que tem sua responsabilidade marcada pelo seu compromisso com o tempo e longe de vínculos com o Mercado.
Se tais instituições privadas querem o bem dos Museus podem sim auxiliar fornecendo possibilidades financeiras e de boas práticas gerenciais, mas com um sentido colaborativo e não como responsáveis diretos e únicos.
Patrimônios da Humanidade pertencem ao conjunto de toda a sociedade e precisam ser tratados como bem de todos, e portanto, devendo ser garantidos através do tempo para a posteridade. Não podem estar regulados por interesses de mercado onde cifras, metas e bilheterias servem de métricas.
O papel de inciativas privadas é dotar tais instituições de condições para se perpetuarem no tempo e garantir que seus acervos fiquem guardados em segurança cumprindo seu papel histórico e social. Ao fazer isso, as empresas envolvidas estarão cumprindo seu papel de Responsabilidade Histórica para com a sociedade presente e futura.
Referências:
Artigo Morte da Memória Científica de José de Souza Martins, escrito em 2010 no Estadão.
A Construção do Conceito de Patrimônio Histórico: Reconstrução e Cartas Patrimoniais
Reportagem BBC – NEWS/Brasil
*Eliana Rezende é diretora da ER Consultoria, Gestão de Informação e Memória Institucional, doutora em História Social – Cultura e Cidades – UNICAMP, mestre pela PUC/SP, especialista em Preservação e Conservação de Colecções de Fotografia – Lisboa, Portugal com participação em vários projetos de política de preservação digital, proteção da memória e gestão documental governamentais e corporativos. Articulista do Portal Ambiente Legal.
Fonte: http://eliana-rezende.com.br/patrimonio-cultural-e-responsabilidade-historica-uma-questao-de-cidadania/