Criado há 90 anos, Instituto Biológico consolidou-se como um centro de pesquisas em sanidade animal e vegetal no Brasil
Por Rodrigo de Oliveira Andrade/Fapesp
No início dos anos 1920, no auge da cafeicultura paulista, uma praga irrompeu nos cafezais. Um minúsculo besouro, cuja larva atacava a coroa dos grãos, sorvendo-lhe a polpa, deixava ocos os frutos e ameaçava as safras. Era preciso desenvolver mecanismos de combate à chamada broca-do-café, e para isso o governo paulista formou uma comissão de pesquisadores, chefiada pelo médico e entomologista Arthur Neiva. O resultado foi uma ação precursora do controle biológico, por meio de uma vespa trazida de Uganda, África. O trabalho da comissão abriu caminho para a criação de uma instituição de fiscalização e vigilância que realizasse de forma permanente a definição e divulgação de medidas de combate à broca, certificando-se de que as fazendas implementassem as medidas definidas. Criado há 90 anos, em dezembro de 1927, o Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal – hoje conhecido apenas como Instituto Biológico – tornou-se então um centro de excelência em pesquisas voltadas à sanidade animal e vegetal e um dos principais polos de discussão científica do Brasil, referência para pesquisadores do país e do exterior.
A criação do Instituto Biológico é fruto do espírito inquieto de Arthur Neiva (1880-1943), o primeiro a assumir o cargo de diretor na instituição. Nascido em Salvador, Neiva iniciou os estudos na Faculdade de Medicina da Bahia, concluindo-os no Rio de Janeiro, em 1903. Discípulo do médico sanitarista Oswaldo Cruz (1872-1917), passou a trabalhar com ele no Instituto Soroterápico — atual Instituto Oswaldo Cruz. Em 1910 embarcou para Washington, Estados Unidos, para estudar entomologia médica. Três anos depois, em 1913, descreveu uma nova espécie de Triatoma, besouro responsável pela transmissão do Trypanosoma cruzi, causador da doença de Chagas, em Buenos Aires, Argentina. Voltou à capital portenha em 1915 para instalar e dirigir a Seção de Zoologia Animal e Parasitologia do Instituto Bacteriológico daquele país, onde ficou por dois anos antes de retornar ao Brasil para assumir a direção do Serviço Sanitário do Estado de São Paulo.
Quando o Biológico foi criado, Neiva assumiu sua direção e deu continuidade às estratégias de controle da broca-do-café propostas no relatório produzido pela comissão que chefiou. Poucos meses depois o instituto ampliou seu campo de atuação para outras áreas. À época, várias casas, espalhadas por diferentes endereços, foram alugadas para que nelas fossem distribuídos os laboratórios que compunham as seções de Parasitologia, Virologia e de Ornitopatologia e Bacteriologia. Neste último, os médicos José Reis (1907-2002) e Paulo da Cunha Nóbrega (1907-1974), especializados em ornitopalogia, trabalhavam no diagnóstico de doenças que acometiam as galinhas, procurando atender às demandas dos produtores locais. “O trabalho era bem organizado”, explica o engenheiro-agrônomo Antonio Batista Filho, atual diretor do Instituto Biológico.“O produtor trazia o animal, vivo ou morto, contava os sintomas e os pesquisadores, após estudar o caso, apresentavam uma solução de tratamento ou de manejo da produção”, descreve.
As pesquisas experimentais eram constantes nos laboratórios de Ornitopatologia e Bacteriologia: isolava-se o agente e reproduzia-se a doença para um estudo mais detalhado. O conhecimento produzido era, então, levado por José Reis às cooperativas e sítios no interior de São Paulo por meio de palestras para orientar os produtores sobre a saúde de seus animais. A satisfação e a capacidade de explicar conceitos científicos a audiências mais amplas levaram-no a escrever livros em uma linguagem acessível, não científica, e a uma longeva coluna de divulgação científica no jornal Folha de S.Paulo.
À medida que a instituição crescia, tornou-se necessário reunir todos os laboratórios em um único lugar. Neiva negociou a doação de um terreno público na região da Vila Mariana, zona sul de São Paulo, para a construção da sede do Instituto Biológico. O local escolhido era uma terra pouco valorizada, uma várzea cheia de aves e pequenos espelhos d’água. Ocupava uma área de aproximadamente 240 mil metros quadrados, estendendo-se por onde hoje é o Parque do Ibirapuera. As obras começaram em 1928. O projeto, desenvolvido pelo arquiteto paulista Mário Whately (1885-1943), previa a construção de um imponente edifício no estilo art déco, com o uso de formas geométricas influenciadas por movimentos vanguardistas como o cubismo e o construtivismo. Já o desenho dos parques e jardins do seu entorno, reservados aos campos experimentais com cafeeiros e árvores frutíferas, foi projetado pelo paisagista belga Arsène Puttemans (1873-1937). A planta original, no entanto, nunca foi completamente executada. As obras do edifício foram concluídas em 1945.
Ocupações militares
Durante a Revolução de 1930, o prédio foi usado por tropas gaúchas. Em 17 de novembro, Whately informou ao secretário da Viação e Obras Públicas sobre a ocupação do Biológico por 800 combatentes do 5º Batalhão de Engenharia. “Os soldados estão dormindo no próprio edifício em construção e, no primeiro andar, é preparado o alimento para os soldados”, alertou o engenheiro em carta recuperada e hoje preservada pela bióloga Márcia Rebouças, colaboradora do Centro de Memória do instituto, cujo acervo conta com uma coleção de cerca de 340 mil documentos, entre jornais, artigos, ilustrações científicas, fotografias etc. Em abril de 1932, durante a Revolução Constitucionalista, o prédio foi novamente ocupado. Dessa vez, por soldados do 2º Batalhão de Engenharia, que se preparavam para lutar contra as tropas constitucionalistas. “As sucessivas ocupações aceleraram a transferência dos laboratórios para o prédio, ainda inacabado”, conta Márcia.
Um ano antes do início das obras, Neiva havia convidado o patologista e microbiologista carioca Henrique da Rocha Lima (1879-1956) para assumir a direção da Divisão Animal da instituição. Rocha Lima formou-se no curso de medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1901 e, como Neiva, também trabalhou no Instituto Soroterápico, onde conheceu Oswaldo Cruz. O convívio com o médico sanitarista mudou os rumos de sua carreira, afastando-o da clínica e aproximando-o das atividades científicas.
Rocha Lima embarcou para a Alemanha em 1901 para um estágio no Laboratório de Microbiologia e de Anatomia Patológica do Instituto de Higiene de Berlim. No exterior, construiu uma sólida carreira internacional como anatomopatologista e bacteriologista, cujo ápice foi a descoberta do agente do tifo exantemático, em 1916 (ver Pesquisa FAPESP nº 190). Durante esse período, trabalhou na Universidade de Jena e no Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo. “Rocha Lima alcançou uma posição incomum para um cientista sul-americano no sistema acadêmico alemão”, afirma o historiador André Felipe Cândido da Silva, pesquisador da Casa Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), e autor de tese de doutorado sobre a trajetória do brasileiro e as relações científicas entre Brasil e Alemanha na primeira metade do século XX. “Como era pouco provável que conquistasse postos de maior prestígio, e por circunstâncias de sua vida pessoal, ele aceitou o convite de Neiva para trabalhar no instituto recém-criado em São Paulo.”
Bem relacionado politicamente, Neiva afastou-se do Instituto Biológico em 1931, quando Vargas o convidou para ser interventor em Salvador. Rocha Lima assumiu a diretoria do Instituto Biológico em 1933 em meio a controvérsias sobre a sucessão, ocasionadas pelo conturbado levante civil ocorrido em São Paulo no ano anterior. “Em alguns momentos o médico baiano acusou o bacteriologista de se aproveitar das circunstâncias para alimentar a indisposição dos membros do Biológico contra ele para assumir a direção”, relata Cândido da Silva.
Sob a liderança de Rocha Lima o Instituto Biológico tornou-se um centro de pesquisa de referência internacional, privilegiando a interface entre a pesquisa básica e aplicada e o diálogo com os produtores locais. Nessa época, a instituição ampliou as ações de combate à broca-do-café por meio da criação da vespa trazida de Uganda em seus laboratórios. Entre junho e agosto de 1936, 228 mil exemplares de vespas foram enviados a 270 produtores. Em 1939, mais de 2 milhões desses insetos haviam sido distribuídos para diversas regiões do país. Também durante a década de 1930 o instituto investiu na contratação de pesquisadores brasileiros e internacionais para áreas diversas, entre eles o alemão Karl Martin Silberschmidt, que passou a trabalhar na organização da seção de Fisiologia Vegetal do Biológico.
Ciente da importância da divulgação do conhecimento, Rocha Lima lançou, em 1935, a revista O Biológico, que junto com a revista Arquivos do Instituto Biológico, criada por Neiva, em 1928, disseminava textos voltados aos lavradores e produtores do campo e artigos científicos para a comunidade de pesquisadores, respectivamente. Em outra frente, instituiu reuniões às sextas-feiras, também conhecidas como “reuniões sextaferinas”, nas quais pesquisadores do Biológico e de outras instituições discutiam artigos científicos relevantes. “O Instituto Biológico foi um dos primeiros centros de debate científico no estado de São Paulo”, afirma Antonio Batista Filho. Além de Rocha Lima, participavam das reuniões pesquisadores como José Reis e Zeferino Vaz, idealizador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), criada em 1966 (ver Especial Unicamp 50 anos). “Foi durante essas reuniões que se começou a planejar a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Sociedade Brasileira de Entomologia”, conta Márcia Rebouças.
À época também foi criado o Serviço de Planejamento e Documentação Científica, que contava com as seções de Planejamento de Experimentos, Fotomicrografia, Biblioteca e Desenho. Este último teve grande destaque no Biológico. Ao todo, 17 desenhistas produziam entre as décadas de 1930 e 1970 uma profusão de ilustrações de plantas, animais e suas doenças para dar visibilidade à pesquisa, integrando artigos científicos, aulas, folhetos de divulgação, entre outros (ver Pesquisa FAPESP nº 238). As ilustrações retratavam com riqueza de elementos e rigor científico detalhes de insetos, ácaros, larvas, órgãos de animais, vegetais, plantas e suas patologias, registrando, traduzindo e complementando as observações e os experimentos científicos desenvolvidos no Biológico.
Em 1942 Rocha Lima criou uma Divisão de Biologia, responsável por pesquisas básicas que embasassem o trabalho de agrônomos e veterinários no combate a pragas e doenças. Também foram criadas as divisões de Defesa Sanitária Vegetal e de Defesa Sanitária Animal, além da de Ensino e Documentação Científica. Anos mais tarde, em 1947, a Divisão de Biologia foi dividida em duas, a de Biologia Animal e Vegetal. “Essa foi uma época extremamente profícua no Biológico”, conta Márcia Rebouças. “O Instituto passou a fabricar mais de 30 diferentes produtos voltados à sanidade animal em todo o país, estabelecendo contratos com empresas farmacopecuárias”, comenta.
Pressão sob controle
Em fins da década de 1940, outro feito importante foi obtido no Biológico. Os médicos Maurício Rocha e Silva (1910-1983), Wilson Teixeira Beraldo (1917-1998) e Gastão Rosenfeld (1912-1990) identificaram o chamado Fator de Potenciação da Bradicinina a partir da globulina do plasma do veneno da jararaca. A substância, verificou-se mais tarde, relaxava os músculos e os vasos sanguíneos, sendo por isso considerada um potencial regulador da pressão arterial. A descoberta resultou em uma comunicação publicada em 1949 no número inaugural da revista Ciência & Cultura, editada pela então recém-criada SBPC. No ano seguinte uma versão ampliada do trabalho foi publicada na revista American Journal of Physiology. Tempos depois, a bradicinina foi usada como princípio ativo de remédios contra hipertensão.
Rocha Lima aposentou-se em 1949, ao completar 70 anos. Em seu lugar, assumiu o engenheiro-agrônomo Agesilau Antonio Bitancourt (1899-1987), que até então dirigia a divisão de Biologia Vegetal. Em sua gestão, de 1949 a 1953, Bitancourt criou três cursos anuais de formação em fitopatologia, entomologia agrícola e patologia animal, atraindo profissionais de todo o país.
Na década de 1970 o instituto ampliou seus trabalhos de desenvolvimento de defensivos agrícolas graças a uma parceria firmada com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), que possibilitou a compra de equipamentos e a melhoria das instalações, como a construção do Centro Piloto de Formulações de Defensivos Agrícolas, na Fazenda Experimental Mato Dentro, em Campinas. Em 1988 foi realizada a primeira Reunião Anual do Instituto Biológico (Raib), reunindo pesquisadores e estudantes das áreas de sanidade animal e vegetal, proteção ambiental, além de profissionais do agronegócio, entre outros, para discutir os problemas da agricultura no país.
O Biológico hoje sofre em razão da evasão de pesquisadores para universidades, empresas e institutos federais e da falta de reposição de mão de obra qualificada. Ainda assim continua como um dos principais centros de diagnóstico fitossanitário e zoossanitário do Brasil. Possui um dos dois laboratórios brasileiros que produzem imunobiológicos para o diagnóstico da brucelose e da tuberculose animal, distribuindo esses produtos para vários estados e países da América Latina. Também atende a 90% das Centrais de Inseminação Artificial do Brasil realizando exames de diagnóstico de doenças da reprodução animal. Oferece 350 tipos de exames nas áreas animal, vegetal e de resíduos em alimentos, realizando em média 500 diagnósticos por dia, além de participar de campanhas sanitárias contra a febre aftosa, raiva, tuberculose, brucelose, cancro cítrico e clorose variegada dos citros.
Em 2007 a instituição passou a oferecer cursos de mestrado e, a partir de 2013, de doutorado. Mais recentemente, começou a investir em eventos educacionais, aproximando o público das atividades desenvolvidas por meio de programas como Biológico de Portas Abertas e Planeta Inseto, no Museu do Instituto Biológico, onde são realizadas as famosas corridas de baratas, em um circuito conhecido como Baratódromo. Também todos os anos o instituto realiza o Sabor da Colheita, evento que marca simbolicamente o início da colheita do café no estado de São Paulo. “Os participantes são convidados para colher frutos do café em meio aos mais de 1.500 pés plantados nas dependências do Biológico”, conta Antonio Batista Filho.
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Fonte: Revista Fapesp