Por Jussara Mangini (Fapesp) *
Ao pesquisar e analisar o trabalho de uma organização social que envolve pessoas em situação de rua na produção de tapetes artesanais feitos com resíduos têxteis, um grupo de pesquisadores ligados ao curso de bacharelado em Têxtil e Moda da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), da Universidade de São Paulo, identificou possibilidades de resolver o problema ambiental causado pelo descarte diário e incorreto de milhares de toneladas de retalhos nas calçadas e aterros sanitários da cidade de São Paulo.
Como resultado, a professora Francisca Dantas Mendes, vice-coordenadora do curso, estruturou uma proposta, nomeada Sustexmoda, de alcance social e ambiental, que está em articulação com diversas secretarias municipais, entidades de classe e organizações não governamentais.
O projeto de pesquisa se inspirou na iniciativa “The study into the scope for transforming traditional skills and knowledge into a competitive advantage in small scale I textile industries through fashion design”, selecionada em chamada de propostas de intercâmbio apoiada pela FAPESP e pela University of Southampton e coordenada no Brasil por Claudia Regina Garcia Vicentini, doutora em Engenharia Mecânica e professora da EACH/USP.
Enquanto os doutores John Hopkins e Anthony Galsworthy, da Winchester School of Art, da University of Southampton, investigaram como pequenas empresas que resgataram o modo tradicional inglês de fazer tecidos sobreviveram à concorrência asiática, produzindo de forma sustentável e oferecendo condições diferenciadas de trabalho, as pesquisadoras da EACH/USP realizaram um diagnóstico detalhado dos tapetes que são produzidos por artesãos com retalhos descartados por confecções da região do Bom Retiro.
Os artesãos participantes do estudo são pessoas em situação de extrema vulnerabilidade, que participam do Projeto Ubuntu, criado pela psicóloga Márcia Aguiar para estimular o potencial produtivo e criativo dos abrigados no Complexo Canindé da Coordenação Regional de Obras de Promoção Humana (CROPH). Essa organização reúne, em nove unidades na capital paulista, mais da metade das 15 mil pessoas em situação de rua.
“Por se tratar de uma ação repetitiva e sem riscos, a produção do tapete prende a atenção do operador e o motiva a dar continuidade até a conclusão da peça. Como resultado, esse trabalho de terapia ocupacional tem aumentado a autoestima e o empoderamento dos participantes, além de ser exemplo de destinação útil e adequada dos resíduos têxteis”, disse Vicentini à Agência FAPESP.
O grupo de pesquisa da EACH/USP coordenado por Vicentini é composto por Silgia Costa, doutora em Engenharia Têxtil, Suzana Avelar, doutora em Comunicação e Semiótica, e Francisca Dantas Mendes, doutora em Engenharia de Produção.
Valendo-se da metodologia de pesquisa-ação, o projeto e a intervenção do grupo de pesquisadores no Projeto Ubuntu englobou um diagnóstico detalhado dos modos de produzir os tapetes, estocar, lavar, vender e administrar a divisão de trabalho, entre muitos outros aspectos.
Os resultados do estudo levaram os pesquisadores a propor mudanças em todo o processo, durante oficinas realizadas com os produtores. O resultado prático das mudanças foi a melhoria do produto final, da organização do espaço físico, da distribuição de tarefas e da renda obtida pelos artesãos.
A começar pela coleta dos retalhos de malha usados, que são cortados manualmente para preencher a base do tapete (talagarça), que até então era tarefa das próprias assistentes sociais. O grupo de pesquisa conversou com algumas confecções, que passaram a entregar os retalhos diretamente na ONG, já recortados no tamanho ideal. Em troca, o nome dessas confecções foi incluído na etiqueta do tapete como apoiadores.
Os pesquisadores também ajudaram a definir um gabarito com padrões de tamanho, peso e acabamento, o que contribuiu para um ganho de qualidade no produto final. As aulas de noções de arte, design e criatividade contribuíram para estimular o uso de novas composições de cores, o que tornou os tapetes mais atrativos para comercialização. “As mudanças deixavam os artesãos satisfeitos e orgulhosos de seu trabalho, pelo qual recebem todo o valor da venda”, disse Vicentini.
Sustexmoda
Esse conjunto de possibilidades verificadas e o conhecimento do grupo de pesquisa sobre os ramos têxtil e de moda ajudaram a estruturar o projeto Sustexmoda.
Dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit) apontam que foram produzidos 1,9 milhão de toneladas de peças de vestuário em 2015 no Estado de São Paulo. Cerca de 10% desse volume são resíduos sólidos têxteis (retalhos) gerados nas áreas de corte das confecções. Segundo o Sinditêxtil-SP, só na região do Brás e Bom Retiro, onde estão localizadas cerca de 1.200 confecções, são produzidas 12 toneladas desses resíduos por dia.
Como a coleta ainda é feita de forma desorganizada e o destino não é acompanhado pelas empresas nem por órgãos públicos, parte desse volume é recolhida por catadores irregulares, outro volume significativo é descartado no lixo comum, terminando em aterros sanitários e causando grande impacto ambiental.
Segundo a pesquisadora Francisca Dantas Mendes, que está à frente das negociações para implementação do projeto na cidade, há soluções viáveis já praticadas que podem ser aperfeiçoadas, novos produtos funcionais utilizando a maior quantidade possível de resíduos têxteis podem ser criados, materiais com longo ciclo de vida podem ser desenvolvidos e podem ser reutilizados por diferentes setores produtivos, assim como soluções inovadoras podem ser criadas para degradar ou reutilizar as fibras resultantes dos resíduos têxteis.
O projeto Sustexmoda está estruturado em três fases com duração de três anos cada. Na primeira etapa a intenção é mapear e identificar produtos confeccionados com resíduos têxteis e seus produtores para organizar a destinação dos materiais descartados pelas confecções para os setores que os utilizam como matéria-prima.
Numa segunda fase, as confecções serão orientadas a fazer adaptações em seus processos produtivos para reduzir a geração de resíduos. E, na terceira etapa, seriam adotadas soluções para eliminar totalmente os descartes inadequados dos resíduos têxteis.
Todas essas medidas para reduzir a geração de resíduos e tornar mais adequada a destinação dos materiais seriam conciliadas com o trabalho social do CROPH, com o qual a EACH está estudando a formalização de uma parceria, ou com iniciativa similar.
A pesquisadora já realizou reuniões com as secretarias de Trabalho e Empreendedorismo, Saúde, Direitos Humanos e Cidadania, entre outras. “É necessário debater muitos aspectos para que o projeto ocorra de forma efetiva dentro de uma lógica de economia criativa, circular, sustentável, de comércio justo e transparente”, diz Mendes.
“Em termos acadêmicos o projeto que está em análise na Pró-Reitoria de Pesquisa da USP lança um campo de pesquisa pouco explorado e avança para conquistar resultados relevantes, concretos e consistentes na preservação do meio ambiente, com redução de resíduos e proposta de inclusão social a uma população pouco assistida. O projeto apresenta soluções para os rejeitos da indústria e um vasto campo para a exploração de novos produtos, design inovador e uma rede de associações, empresas e profissionais já selecionados e inseridos nas etapas de desenvolvimento dos trabalhos”, disse Mendes.
*Matéria originalmente publicada na Agência Fapesp