Supremo Tribunal reconhece competência dos municípios para legislar sobre ordenamento urbano separadamente do Plano Diretor
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica, decidiu que “os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”.
Trata-se de um resgate importante da autonomia municipal, no regime federativo brasileiro.
Uma longa batalha contra o engessamento da cidade
A autonomia dos municípios está na base do nosso regime republicano.
No entanto, mesmo após o Estatuto da Cidade – Lei Federal 10.257/2001, a autonomia municipal é questionada por setores biocentristas do Ministério Público Brasileiro.
Parece que a autonomia municipal assusta o órgão responsável pela fiscalização da lei e tutela dos interesses difusos e coletivos, um organismo essencial à Justiça, porém moldado, todo ele, em sistema que historicamente ignora municípios e dialoga com um judiciário igualmente estadualizado ou federalizado.
Vocacionado a pensar “além” do território municipal, o Ministério Público gerou segmentos que usam o Estatuto da Cidade para “engessar” administrações municipais. Por óbvio que o Estatuto a isso não se presta.
Parcela do Ministério Público, pretende conferir o monopólio do ordenamento territorial do município ao Plano Diretor. Esse entendimento é quase “messiânico”, como se o Plano Diretor fosse o “alcorão” a submeter a cidade à verdadeira “sharia urbanística”.
Não é bem assim. O Plano Diretor é instrumento de planejamento urbano, precede o ordenamento territorial, e com ele não deveria ser confundido.
Não raro, porém, o que se vê é uma fusão do Plano Diretor com o próprio ordenamento territorial.
Essa fusão, no entanto, não retira do Plano sua função precípua de parametrizar o ordenamento. Muito menos impede que o ordenamento seja modificado ou acrescido de normas especiais, quando necessário, dentro dos parâmetros gerais de planejamento traçados pelo Plano.
Há uma falha cognitiva generalizada entre promotores de justiça quanto à compreensão dos instrumentos legais que regulam “edges cities”, condomínios e loteamentos “fechados”, instituição de “vilas urbanas” ou autorização excepcional de aposição de cancelas em “vias restritas”, não raro com transferência de ônus de manutenção ou mesmo de instalação de equipamentos de infraestrutura.
Tratam-se de complexos fenômenos urbanos, frutos da “bunkerização” ocasionada pela insegurança, criminalidade, disfunções logísticas, demandas de mobilidade, estratificação social, migração, inovações tecnológicas, crises econômicas, etc. Ocorrências geralmente não comportadas em um plano diretor – face à sua especialidade.
O Supremo Tribunal resgata a ordem dos fatores
O Supremo Tribunal Federal, no entanto, resolveu por um fim à essa visão equivocada.
O entendimento do Supremo Pretório foi editado no julgamento da ADIn – Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral de Justiça do Distrito Federal e Territórios, impugnando a Lei Complementar do DF, n. 710/2005, que instituiu “loteamentos fechados”, ou “condomínios horizontais”.
A questão foi submetida ao plenário do STF pelo relator Ministro Teori Zavascki.
A lei impugnada pretende regular uma modalidade que na prática já existe, de lotamentos com acesso limitado, para os quais o Poder Público transfere o ônus da instalação e manutenção da infraestrutura – abastecimento de água, luz e esgotamento sanitário, bem como a coleta de lixo, limpeza de ruas e a poda. Algo similar aos condomínios. A solução encontrada pelo texto da lei abrange dispositivos já existentes na legislação federal sobre condomínios (Lei 4.591/64) e loteamentos (Lei 6.766/79).
O Ministro Teori entendeu, no seu voto, que embora não previsto na lei federal o conceito de “Loteamento Fechado”, este modelo encontra ampla defesa na doutrina, justamente por existir uma demanda material que reclama solução legal, daí a legitimidade do diploma questionado.
No entanto, o argumento do Ministério Público tinha base também no fato da lei se encontrar desvinculada do Plano Diretor. Isso “afrontaria” o preceito constitucional. Assim a competência do Município para legislar sobre o desenvolvimento urbano estaria restrita à edição do Plano Diretor.
Em seu voto, o Ministro Teori entendeu que a competência normativa do município (e do distrito) não se esgota com a aprovação do Plano Diretor, até porque sempre ocorrem situações mais específicas, não reguladas. Portanto, desde que não afrontem o respectivo Plano Diretor, os Municípios (e o DF) têm competência para editar normas que o complementem, ainda que separadamente, visando conferir ordenamento territorial.
A decisão não permitiu que se modifique diretrizes do uso e parcelamento do solo de forma aleatória, sem o devido processo legal. A decisão deixou claro que o novo ordenamento deve seguir os parâmetros do plano diretor, quanto às áreas possíveis de regulamentar a intervenção específica.
“O coeficiente de generalidade que a Constituição exige para o plano diretor não determina que ele apresente uma regulamentação detalhada a respeito de cada umas das formas admissíveis de aproveitamento do solo, mas apenas que ele indique onde poderão ser aplicadas essas diferentes modalidades de urbanização no plano global da cidade”, decidiu o ministro relator.
Caracterizada repercussão geral, o STF, por maioria de votos, fixou entendimento no sentido de que os municípios com população acima de 20 mil habitantes, sujeitos à elaboração de plano diretor, “podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”.
O Supremo, assim, admitiu a possibilidade de instituição dos “loteamentos fechados” no Distrito Federal e, portanto, que outros Municípios brasileiros também possam fazê-lo.
Mais uma vez, andou bem o Supremo Tribunal, invertendo a máxima pretendida pelos biocentristas, de que a realidade concreta deve se adaptar ao papel…ou então desaparecer. O supremo agiu com maturidade e, permitiu à lei tutelar a realidade.
Leia a ementa da decisão do STF:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO 607.940 (346)
ORIGEM : ADI – 20070020064867 – TRIBUNAL DE JUSTIÇA ESTADUAL
PROCED. : DISTRITO FEDERAL
RELATOR :MIN. TEORI ZAVASCKI
RECTE.(S) : MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DE JUSTIÇA DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS
RECDO.(A/S) : DISTRITO FEDERAL
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO DISTRITO FEDERAL
RECDO.(A/S) : CAMÂRA LEGISLATIVA DO DISTRITO FEDERAL
ADV.(A/S) : SIDRAQUE DAVID MONTEIRO ANACLETO E OUTRO (A/S)
AM. CURIAE. : CONSELHO REGIONAL DE ENGENHARIA ARQUITETURA E AGRONOMIA DO ESTADO DO PARANÁ – CREA/PR E OUTRO (A/S)
ADV.(A/S) : NELSON LUIZ GOMEZ
AM. CURIAE. : MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE
PROC.(A/S)(ES) : PROCURADOR-GERAL DO MUNICÍPIO DE BELO HORIZONTE
Decisão: Após o voto do Ministro Teori Zavascki (Relator), que conhecia e negava provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelo Ministro Roberto Barroso, e o voto do Ministro Marco Aurélio, que dele conhecia e lhe dava provimento, pediu vista dos autos o Ministro Luiz Fux. Ausentes, justificadamente, os Ministros Celso de Mello e Cármen Lúcia. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski, Vice-Presidente no exercício da Presidência. Plenário, 21.08.2014.
Decisão : Após os votos dos Ministros Luiz Fux e Rosa Weber, conhecendo e negando provimento ao recurso extraordinário, pediu vista dos autos o Ministro Dias Toffoli. Presidência do Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 29.04.2015.
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 348 da repercussão geral, negou provimento ao recurso, vencidos os Ministros Marco Aurélio, Edson Fachin e Ricardo Lewandowski. O Tribunal, também por maioria, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Edson Fachin, fixou tese nos seguintes termos: “Os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”. Ausentes, justificadamente, o Ministro Celso de Mello e, nesta assentada, o Ministro Luiz Fux, que proferiu voto em sessão anterior. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 29.10.2015.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. ORDEM URBANÍSTICA. COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS. PODER NORMATIVO MUNICIPAL. ART. 30, VIII, E ART. 182, CAPUT, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PLANO DIRETOR. DIRETRIZES BÁSICAS DE ORDENAMENTO TERRITORIAL. COMPREENSÃO.
1. A Constituição Federal atribuiu aos Municípios com mais de vinte mil habitantes a obrigação de aprovar Plano Diretor, como “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” (art. 182, § 1º). Além disso, atribuiu a todos os Municípios competência para editar normas destinadas a “promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso do solo, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” (art. 30, VIII) e a fixar diretrizes gerais com o objetivo de “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos habitantes” (art. 182, caput). Portanto, nem toda a competência normativa municipal (ou distrital) sobre ocupação dos espaços urbanos se esgota na aprovação de Plano Diretor.
2. É legítima, sob o aspecto formal e material, a Lei Complementar Distrital 710/2005, que dispôs sobre uma forma diferenciada de ocupação e parcelamento do solo urbano em loteamentos fechados, tratando da disciplina interna desses espaços e dos requisitos urbanísticos mínimos a serem neles observados. A edição de leis dessa espécie, que visa, entre outras finalidades, inibir a consolidação de situações irregulares de ocupação do solo, está inserida na competência normativa conferida pela Constituição Federal aos Municípios e ao Distrito Federal, e nada impede que a matéria seja disciplinada em ato normativo separado do que disciplina o Plano Diretor.
3. Aprovada, por deliberação majoritária do Plenário, tese com repercussão geral no sentido de que “Os municípios com mais de vinte mil habitantes e o Distrito Federal podem legislar sobre programas e projetos específicos de ordenamento do espaço urbano por meio de leis que sejam compatíveis com as diretrizes fixadas no plano diretor”.
4. Recurso extraordinário a que se nega provimento.
Brasília, 24 de fevereiro de 2016.
Guaraci de Sousa Vieira
Coordenador de Acórdãos
Fontes:
http://www.jusbrasil.com.br/diarios/109856819/stf-26-02-2016-pg-33
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=273420
http://www.theeagleview.com.br/2014/01/lei-demais-pra-pouco-municipio.html?q=lei+demais
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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