A proibição dos canudinhos é mero placebo, face à dimensão econômica da poluição dos plásticos nos oceanos – entenda porque
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Só ingênuos acreditam no “efeito mariposa” protagonizado pelas campanhas “politicamente corretas” contra os canudos de plástico.
As estatísticas que suportam a propaganda contra canudinhos e copos descartáveis, seguem o formato dos biquínis: o que revelam é sugestivo, o que escondem é essencial…
De fato, não é o canudo da lanchonete da esquina que entope as tripas do peixe no mar. É a hipocrisia discursiva dos países exportadores de lixo, as gestões falhas de resíduos sólidos nos países, a falta de saneamento básico, a ausência de uma estrutura de drenagem urbana e a incompetência no combate á poluição marítima que formam o grande fluxo poluente da massa plástica poluidora com destino final nos oceanos.
Origem dos descartes no mar
A tragédia, de fato, termina concentrada nos oceanos, onde o acúmulo de detritos já forma verdadeiros “continentes” flutuantes. Segundo dados do PNUMA, estima-se que cerca de 80% de todo lixo plástico marinho seja proveniente de fontes terrestres e os 20% restantes venha de fontes no próprio oceano, dos navios e plataformas.
A origem do lixo plástico nos oceanos provém de quatro grupos de atividades:
a) A poluição provenientes do esgotamento sanitário, da drenagem de águas pluviais e descarte direto nos cursos d’água: inclui os esgotos, águas de bueiros, rios poluídos por detritos urbanos e poluição difusa – e esta é a principal fonte de todo plástico depositado nos oceanos;
b) turismo no litoral: detritos deixados pelos banhistas no litoral – praias enseadas e embarcadouros -como embalagens de alimentos, bebidas, brinquedos, entre outros;
c) decorrentes do descarte ocorrido na atividade de exploração dos recursos do mar, em especial a pesca – incluindo linhas e redes de pesca, iscas, boias, sinalizadores, embalagens, etc.; e
d) descartado pelos navios – alijado pelas embarcações mercantes – sejam resíduos próprios da embarcação dispensados clandestinamente em alto-mar – seja carga de lixo “exportado” por grandes países geradores.
A poluição criminosa do descarte das embarcações, diga-se é orientada por motivos exclusivamente econômicos, seja para não pagar as taxas de destinação portuárias, seja por decorrer do tráfico de resíduos – transportados para fora dos países de origem, ainda que coletados por meio de reciclagem (porém não absorvidos pela economia circular nativa).
Platisfera marinha
Com uma área estimada em mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados de superfície e com cerca de 10 metros de profundidade, o lixão do Pacífico cobre uma extensão maior que o estado do Pará. Como ele existem mais cinco grandes giros oceânicos semelhantes, no Atlântico Norte e Sul, Pacífico Norte e Sul, e no Índico.
Mas grande parte da sujeira não é visível. A ação do Sol e da água fragmenta boa parte dos plásticos diluindo-os me uma grande sopa. A própria Grande Mancha do Pacífico, com uma estimativa de 150 milhões de toneladas de plásticos, é na sua maioria uma grande sopa de água e fragmentos plásticos.
Toda a vida marinha está em risco pelo plástico. Por repelir a água, a resina do plástico acaba atraindo diversos outros tipos de poluentes hidrofóbicos, principalmente compostos orgânicos venenosos como pesticidas (DDT) e bifenilos policlorados (PCBs), funcionando como verdadeiras esponjas de sujeira. Estas substâncias – plástico e aditivos tóxicos como bisfenol A (que pode causar câncer e infertilidade), estão sendo consumidas pela fauna marinha. Vão se acumulando ao longo da cadeia alimentar e podem chegar aos seres humanos.
De fato, a ingestão da sopa de polímeros sintéticos já causa a morte de milhares de espécies todo ano. Os principais consumidores são os plânctons, base de toda cadeia alimentar marinha. Em coleta científica de plânctons já se detectou a presença, em mais de 60% dos espécimes, de traços e resquícios de polímeros.
O fenômeno decorrente desse consumo é ainda mais preocupante. Um estudo publicado na The Proceedings of the National Academy of Sciences, constatou que, quase 99% dos plásticos flutuantes nos oceanos desaparecem³, em virtude da fragmentação do material e seu consumo pela fauna.
Andres Cozar Cabañas, que liderou a equipe de cientistas autora do trabalho, elaborou o primeiro mapa com a rota dos resíduos de plástico, apontando a localização e movimento dos plásticos despejados no mar, com mais de 3.000 amostras coletadas .
O mapa revela a existência de um novo ecossistema baseado no plástico: a Platisfera (comunidades microbióticas que se desenvolvem no plástico e no lixo contido no mar).
Há vida, portanto, na sopa plástica da platisfera, formada por bactérias.
Assim, antes de sair caçando canudinhos de plástico em bares e lanchonetes, as autoridades deveriam observar o fluxo econômico mundial que determina a criminosa poluição marinha que forma a base das platisferas.
Os grandes vilões
Cerca de 90% do plástico descarregado pelas atividades terrestres nos oceanos, provém de dez rios, dos quais oito se situam na Ásia, sendo que na China, considerada o maior importador de lixo reciclável do mundo, nascem ou passam sete deles.
Assim, a China revela-se a principal fonte de poluição plástica marítima do mundo.
À China somam-se Rússia, Índia, Paquistão, Bangladesh, Tailândia e Laos, elevando a Ásia ao patamar dos vilões da poluição marítima proveniente de fontes terrestres. Acrescente-se, aí, a Malásia.
A África surge como o segundo continente, de longe, maior poluidor marítimo do planeta. Do estuário dos Rios Nilo e Niger são despejados no Oceano Índico e no Mediterrãneo o lixo plástico proveniente do Egito, Uganda, Quêniaa, Guiné, Mali e Nigéria.
A disparidade entre o que é descartado por esses continentes, em relação aos demais, por óbvio, não permite que se descure do combate intenso à poluição nos demais estuários. Porém, deveria servir para melhor “calibrar” o discurso raivoso dos que pretendem salvar o planeta fechando os olhos para as escalas mundiais…
Há uma necessidade controle de poluição nos estuários sul americanos – em especial os brasileiros e argentinos, e na costa ocidental da Àfrica, para impedir o acúmulo observado no Atlântico-Sul. angolanos, da Namíbia e África do Sul. Porém, é no Caribe que se formam platisferas que preocupam.
A identificação dos principais cursos ‘água fontes da poluição marítima provém de um estudo realizado pelo Helmholtz Center for Environmental Research (UFZ), divulgado pelo World Economic Forum em junho de 2018. Nesta análise, concebida com recurso à análise dos resíduos encontrados nos rios e na paisagem circundante, foi demonstrada a existência de “uma correlação clara” entre os dez rios e a quantidade de plástico descarregada no mar.
“Quanto mais lixo é descartado de forma inadequada pelos sistemas de drenagem, mais plástico acaba no rio e segue para o mar”, diz Christian Schmidt, um dos autores do estudo, acrescentando que a quantidade deste material por metro cúbico de água é significativamente maior em rios grandes do que em pequenos. Isso se deve, obviamente, à razão da concentração urbana nas grandes bacias, o acúmulo populacional e péssima gestão dos resíduos nesses núcleos.
Mas a desproporção não para aí. É óbvio que, ao introduzir por anos uma política absolutamente predatória de crescimento industrial, incluindo a importação de insumos obtidos com a coleta internacional de “resíduos recicláveis” em todo o mundo, a China descartou, propositadamente, TONELADAS de plástico nos oceanos.
O descarte criminoso também ocorreu – e ainda ocorre, dos navios-fábricas, que recolhem material reciclável (de eletro-eletrônicos a embalagens plásticas) dos continentes americano e europeu, processa o lixo nos porões e dispensa os rejeitos, em larga escala, em alto-mar.
Hipocrisia eurocêntrica e falha na economia circular
Há uma enorme hipocrisia eurocêntrica e norte-americana que a história ainda se encarregará de apurar.
Os países que se pretendem modelo de gestão de resíduos sólidos constituem-se nos maiores exportadores de lixo do planeta.
Há hoje, flutuando na sopa de polímeros da platisfera, um enorme volume de resíduo plástico “reciclado” pelo sistema-modelo europeu… e pela América do Norte, cuja economia circular – ainda que se busque “queimar” o excedente, prefere simplesmente “sonegar” o que recolhe, exportando lixo maquiado como “CDR” – material combustível destinado a outros continentes, ou sucata eletrônica, carimbada como “doação tecnológica” aos países africanos e asiáticos.
As políticas de ecodesign de embalagens… na verdade terminam no marketing.
ITALIANOS, FRANCESES, ESPANHÓIS, E GREGOS, de fato, quando não conseguem “exportar” seus resíduos para países asiáticos, africanos e latino-americanos, descartam enormes volumes em alto mar,
O descarte oriundo do tráfego marítimo também ganha escala. Importante anotar que o fluxo no oceano Atlântico aumentou 20 vezes em vinte anos e, por óbvio, isso gera uma “razão” estatística entre tonelagem transportada e tonelagem de resíduos descartada em alto mar.
No Pacífico, então, essa razão explodiu nos últimos quinze anos. Atingindo níveis alarmantes.
Isso demonstra uma distância razoável entre o desenho teórico da economia circular e sua implementação prática nos continentes, com efeitos sinérgicos nos países receptores dos excedentes produzidos.
Há muito o que se fazer em termos de regulação dessa economia e controle dos seus efeitos sinérgicos e externalidades no aspecto internacional. Os oceanos não podem tornar-se hospedeiros de externalidades – e o são.
A necessária reação
Mas já há um forte movimento intergovernamental sendo implementado pelos países asiáticos, no sentido de combater e reduzir o estrago.
O Governo da Indonésia, a partir de abril de 2018, passou a aceitar garrafas e copos de plástico como forma de pagamento nos transportes públicos – procurando, assim, evitar o descarte sem controle pós consumo. Surabaya, a segunda maior cidade do país – onde aproximadamente 15% do lixo produzido é plástico, foi a primeira a seguir com a iniciativa.
Já na China, as medidas de redução estão mais avançadas.
A China está implementando uma enorme reforma institucional visando combater a poluição. De fato, essa reforma implica de mudanças radicaiss nos marcos legais, até as prioridades no design estratégico de sua economia.
Em 2018, após proceder a um volume enorme de reformas internas, o país , que durante anos importou milhões de toneladas de lixo reciclável do exterior – adquirindo mais da metade dos resíduos plásticos, eletroeletrónicos, têxteis e de papel gerados no globo, resolveu proibir importações de lixo estrangeiro e, recentemente, estendeu a proibição aos metais, elevando, assim, as exigências da importação de resíduos.
Tudo começou em julho de 2017, numa reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Genebra, na qual Pequim anunciou que reduziria suas importações de resíduos plásticos e de papel.
Até então, a China importava mais da metade do lixo plástico do mundo para reciclá-lo, juntamente com uma parcela significativa de resíduos de papel – 60% dos gerados nos EUA e mais de 70% dos da Europa. Pequim justificou a decisão de cortar as importações com argumentos ambientais e afirmando querer proteger a saúde de seus cidadãos.
A medida fez com que o sistema global de reciclagem entrasse em colapso e inaugurou uma nova era da gestão de resíduos. Uma era em que metade do mundo imerso na hipocrisia da exportação do lixo, incluindo EUA, Canadá, Europa, Japão e Coreia do Sul – foi obrigada a buscar novos aterros sanitários e destinação adequada para seus resíduos.
“Foi um grande choque para a indústria global de reciclagem”, afirmou Arnaud Brunet, do Escritório Internacional de Reciclagem (BIR, na sigla em inglês), sediado em Bruxelas.
Preço do lixo despenca e a economia circular se modifica
A decisão da China teve amplas consequências. Nos meses após a medida, a Malásia, por exemplo, triplicou suas importações de lixo plástico.
Também ocorreu uma mudança drástica na oferta e na demanda. Em 2018, o preço de resíduos mistos de papel caiu de 75 para apenas alguns dólares por tonelada. O comércio de lixo entre a China e os EUA chegou a cair 38%, ou 3,5 bilhões de dólares. Essa pedra no sapato dos custos comerciais está também na raiz do desbalanceamento de contas entre os dois países – motivando a guerra comercial.
As restrições asiáticas ao mercado americano de lixo já tiveram consequências perceptíveis. “Hoje, mais plástico definitivamente acaba em aterros sanitários e incineradores nos EUA do que há um ano”, diz Jospeh Pickard, economista-chefe do Instituto das Indústrias de Reciclagem de Sucata, em Washington.
O lixo, agora, terá que ir para algum lugar, nos termos da legislação nativa. E a hora da verdade chegou para vários países desenvolvidos que parecem ter esgotado sua capacidade de recicla milhões de toneladas de plástico e papel – especialmente porque o plástico ainda sofre limitações tecnológicas na reciclagem.
Mas os comerciantes de lixo, desesperados, buscam novos “clientes” no Sudeste Asiático (em lugares como Malásia, Tailândia, Vietnã, Indonésia e Índia), e América Latina – países com menos regulamentações de importação e controles menos rigorosos, ou até mesmo nenhum controle.
De acordo com um relatório do Banco Mundial de 2018, mais de 90% do lixo de países de baixa renda é “frequentemente descartado em lixões não regulamentados ou queimado a céu aberto… com graves consequências para a saúde, a segurança e o meio ambiente”. Somente 10% do lixo é de fato reciclado – muitas vezes fazendo com que trabalhadores e moradores dos entornos adoeçam e matando plantas e animais.
Alguns países, no entanto, incluindo Tailândia, Malásia e Indonésia, decidiram que não querem mais ser a lixeira do mundo. Nos últimos meses, eles introduziram novas restrições à importação de resíduos para lidar com a nova situação após a decisão da China.
O governo da Indonésia baniu a importação de certos tipos de resíduos plásticos de países ocidentais para “minimizar a possibilidade de degradação ambiental e de ecossistemas causada pelo lixo”. A embaixada da Indonésia em Bruxelas afirmou que a questão dos resíduos, agora, é um desafio.
“Apesar das restrições às importações, resíduos plásticos mistos ainda seguem da Europa e EUA para a Malásia em contêineres. O contrabando de resíduos está florescendo, e o fato está sobrecarregando a fiscalização dos países destinatários.
Conclusão: a saída está na política e na tecnologia
A expectativa, no entanto, é que esta proibição impulsione uma nova política de gestão de resíduos sólidos na China e nos países exportadores, nos quais o envio de plástico e outros resíduos para aterros sanitários é proibido por lei. Isto vai obrigar os governos nacionais a planejar políticas públicas e buscar novas tecnologias, para resolver o problema e assumir seus próprios custos, ao invés de exportar problemas – em especial os campeões de cinismo e hipocrisia: o Canadá e os países europeus.
A China, como sempre, pode vir a surpreender com uma nova tecnologia aplicada á economia circular. No intuito de melhorar as políticas ambientais, em 2018, o Governo chinês ordenou que 46 cidades estratégicas começassem a separar os resíduos, de forma a atingir uma taxa de reciclagem de 35% até 2020.
No Brasil, as políticas de Saneamento Básico e gestão de resíduos sólidos praticamente não saíram do papel, e necessitam complementação – seja no campo legal seja no regulatório. Se houver vontade política, o Brasil poderá representar o grande exemplo de implementação verdadeira de uma economia circular pra valer e, assim, estará contribuindo para muito além do canudinho na redução da poluição marinha. Se continuar com suas políticas de saneamento apenas no papel, porém, até a China nos imporá embargos…
Enquanto isso, os oceanos esperam o resultado, plastificados.
Portanto, que fique claro, o canudinho de plástico proibido pelo prefeito esverdeado da esquina… face à dimensão do problema, é mero placebo.
Melhor seria repensar o design dessa produção, que simplesmente proibir.
Notas:
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “A MORTE NAVEGA NO PLÁSTICO”, Publicado em Ambiente Legal – 2014, visto em 4 de junho de 2019, in https://www.ambientelegal.com.br/a-morte-navega-no-plastico/
PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro, “China Declara Guerra à Poluição”, publicado em The EagleView, 2014, visto em 10 de junho de 2019, in https://www.theeagleview.com.br/2014/07/china-declara-guerra-poluicao.html
ALLSOPP Michelle; WALTERS Adam; SANTILLO David; JOHNSTON Paul, “Plastic Debris in the World’s Oceans”, PNUMA, ed. 2011, in http://www.unep.org/regionalseas/marinelitter/about/distribution/default.asp
DEMERITT, Sean Bennjamin. Marine plastic pollution: varying impacts on marine wildlife in Oregon’s coastal zone. University of Oregon, EUA; 1990.
https://www.dw.com/pt-br/o-que-fazer-com-o-lixo-que-a-china-parou-de-comprar/a-48231807
https://zap.aeiou.pt/90-plastico-oceanos-rios-asia-234921
https://www.cidp.pt/publicacoes/revistas/ridb/2013/12/2013_12_14473_14500.pdf
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. Foi presidente da Comissão de Meio Ambiente da OAB/SP, da Câmara Técnica de Legislação do CEBDS, do Comitê de Meio Ambiente da AMCHAM, consultor do governo brasileiro, do Banco Mundial, da ONU e vários outros organismos encarregados de aperfeiçoar o arcabouço legal e institucional do Estado no Brasil. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View