Por Marcelo Kokke*
A confrontação entre Direito Ambiental e realidades sociocultural e socioeconômica brasileiras é por vezes conflitiva, tortuosa em seus caminhos. Essa relação de atritos e desafios requer um verdadeiro processo de hermenêutica reconstrutiva e contextualizadora, a fim de que não sejam as normas ambientais colocadas em uma constante adversidade para com a tutela das populações tradicionais brasileiras.
O tema proposto como problema diz respeito a danos ecológicos que resultam em danos ambientais individuais a populações tradicionais sob o aspecto do desenvolvimento de seu modo de vida e sobre suas atividades econômicas. Entretanto, um ponto de conturbação é aqui agregado. As atividades desenvolvidas pelas próprias populações tradicionais podem ser, por vezes, conotadas como irregulares ou ambientalmente ilegais. Em derivação, surge a questão a que se propõe esta análise. É possível pensar na reparação a populações tradicionais por danos ambientais com reflexo econômico em atividades que eram por elas desenvolvidas de forma irregular?
Situação emblemática pode ser referenciada pelo desastre de Mariana. Uma série de povos e populações tradicionais praticava mineração de baixo porte e baixo impacto sem qualquer autorização ou licença, seja por parte dos órgãos ambientais, seja por parte da Agência Nacional de Mineração. Práticas como de retirada de areia ou pequenas extrações de cascalho e outros minerais, com processos rudimentares, eram exercidas sem licenças ambientais. Portanto, eram exercidas irregularmente.
O desastre socioambiental e socioeconômico de Mariana, com o rompimento da barragem de Fundão, em 2015, acarretou volume de rejeitos tão intenso que houve degradação das áreas em que se fazia a prática minerária rudimentar. As atividades de extração, que possuíam impacto ambiental, sem dúvidas, foram inviabilizadas pelo dano ambiental proeminente do desastre. Haveria direito de serem reparadas as populações tradicionais pelo comprometimento de seu meio de vida embora não tivessem licença ambiental ou regularidade em seu exercício? Há dever de indenização por parte dos responsáveis pelo desastre?
A primeira tendência de resposta pode assumir dois caminhos. De um lado, há aqueles que sustentam toda e qualquer argumentação de resguardo de povos e comunidades tradicionais na Convenção 169 da OIT. Por esta linha, a argumentação seria de que sequer há ilegalidade, afinal, o modo de vida tradicional a ser reconhecido dotaria a prática de legalidade, embora confronte a legislação. De outro lado, há a alegação de que a atividade era irregular, donde não há dever de reparação por dano individual, já que a prática em si da extração, embora rudimentar, violava as normas ambientais e minerárias.
A proposta aqui desenvolvida caminha em sentido diverso. As atividades de mineração rudimentar exercidas por populações tradicionais, marcadas por seu baixo impacto e baixo nível proporcional de extração, são seculares, exercidas desde a época colonial brasileira. Em escala mais recente, o contexto normativo remonta ao Decreto n. 24.193, de 3 de maio de 1934, ainda na Era Vargas e que contou com a assinatura de Oswaldo Aranha. Este último e os diplomas legais que se seguiram enfrentaram o constante desafio de regularizar as práticas então desenvolvidas de forma puramente privada ao longo dos séculos e interiorizadas nas populações tradicionais nos diversos cantos do país.
A Constituição da República, a partir do artigo 43 do ADCT, fundamentou a edição da Lei n. 7.886/89, que por sua vez abriu prazo para a regularização de atividade rudimentar de faiscadores ou extratores de minerais em atividades de baixo impacto. A busca estatal pela regularização, assim como pela progressiva adoção de padrões de sustentabilidade e adequação ambiental, seguiu-se na legislação brasileira. O Estatuto do Garimpeiro, Lei n. 11.685/2008, que abrange as populações tradicionais, indica claramente a oportunidade de regularização apresentada. O artigo 5º da Lei reza que as cooperativas de garimpeiros terão prioridade na obtenção da permissão de lavra nas áreas nas quais estejam atuando, ou seja, reconhece a existência de um fato pretérito para o qual a lei pretende fazer face.
Art. 5º. As cooperativas de garimpeiros terão prioridade na obtenção da permissão de lavra garimpeira nas áreas nas quais estejam atuando, desde que a ocupação tenha ocorrido nos seguintes casos:
I – em áreas consideradas livres, nos termos do Decreto-Lei nº 227, de 28 de fevereiro de 1967;
II – em áreas requeridas com prioridade, até a data de 20 de julho de 1989; e
III – em áreas onde sejam titulares de permissão de lavra garimpeira.
Parágrafo único. É facultado ao garimpeiro associar-se a mais de uma cooperativa que tenha atuação em áreas distintas.
A questão avança para além da situação de irregularidade nas atividades. Passa-se a ter enfoque no lastro normativo que conduz à possibilidade da regularização. Se do ponto de vista minerário é possível ao faiscador ou garimpeiro rudimentar pleitear a regularização de suas atividades, é necessário avaliar se também será possível a regularização ambiental.
A regularização ambiental de atividades que se façam sem autorizações ou licenças é possível. Exemplificativa no ponto é a licença corretiva. O fato de estar um empreendimento sendo desenvolvido sem conformidade com o marco legal não significa sua irrefreável condenação e inviabilidade ambiental. É possível ao seu responsável sempre buscar a conformidade para com as normas legais.
A oportunidade de regularização ambiental é uma abertura constante na legislação brasileira. Em âmbito federal, o IBAMA já dispunha desde o artigo 41 de sua Instrução Normativa n. 184/2008 quanto ao processo de regularização do licenciamento ambiental. A legislação do Estado de Minas Gerais caminha no mesmo sentido. A Deliberação Normativa do Conselho Estadual de Política Ambiental – COPAM – n. 217/2017 possui uma seção específica a tratar da regularização ambiental. O artigo 9º da norma dispõe expressamente que caso a instalação ou a operação da atividade ou empreendimento tenha sido iniciada sem prévio licenciamento, este ocorrerá de forma corretiva, sem prejuízo da aplicação das sanções cabíveis.
Uma primeira conclusão já se expressa. As populações tradicionais que se dediquem à extração rudimentar por meio da garimpagem ou sejam faiscadores possuem o direito a pleitear em face do Estado sua regularização minerária e ambiental. Se haverá ou não conformidade, o tema é exclusivamente ligado ao Poder Público.
A ocorrência de um desastre antropogênico socioambiental e socioeconômico como o de Mariana, ao inviabilizar a exploração minerária sustentável da área em que ocorria a atividade tradicional, não atinge propriamente um direito constituído em título minerário ou em licença ambiental a expressar base legal de utilização da área impactada.
Atinge-se sim o direito da população à potencial regularização minerária e ambiental para continuidade de suas atividades tradicionais, de forma sustentável e em conformidade para com a legislação. O dano é existente justamente por privar a população tradicional de uma chance de se regularizar, por privar a comunidade de usufruir da possibilidade normativa de pleitear em face do Estado a continuidade do exercício das atividades.
Ocorre a configuração de responsabilidade civil por parte dos responsáveis pelo dano ambiental ou desastre, como no caso de Mariana, por provocarem a perda de uma chance à regularização das atividades. Não se tematiza o dever de indenizar em face da atividade ser legal ou ilegal quando do dano, mas sim pela existência de um direito de regularizar a atividade, com reflexos econômicos e mesmo existenciais na comunidade.
A Teoria da Perda de uma Chance é reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (v.g., REsp 1540153), que remete diretamente ao conceito expressado por Daniel Amaral Carnaúba:
A perda de uma chance é técnica decisória, criada pela jurisprudência francesa, para superar as insuficiências da responsabilidade civil diante das lesões a interesses aleatórios. Essa técnica trabalha com o deslocamento da reparação: a responsabilidade retira sua mira da vantagem aleatória e, naturalmente, intangível, e elege a chance como objeto a ser reparado” (CARNAÚBA, Daniel Amaral. A responsabilidade civil pela perda de uma chance: a técnica na jurisprudência francesa. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 922, ago, 2012).
A lesão se caracteriza pelo agente provocar uma situação de privação ilegítima, por inviabilizar o sujeito lesado de alcançar um resultado positivo e favorável que seria palpável no contexto fático e jurídico. A perda de uma chance provoca situação de retirada ilegítima de potenciais vantagens ou benefícios patrimoniais e extrapatrimoniais que poderiam ser efetivamente alçados à situação jurídica do lesado.
A conjuntura extraída não afere a relação entre a população tradicional atingida e a regularidade de suas atividades junto ao Estado. Analisa-se a lesão sofrida pelas populações tradicionais a partir do momento em que o ilícito ecológico com reflexos em sua situação jurídico-econômica e ambiental priva a população tradicional da chance real de lograr a regularização de atividade em face do Estado.
Portanto, faz-se sim possível pensar na reparação a populações tradicionais por danos ambientais com reflexo econômico em atividades que eram por elas desenvolvidas de forma irregular. Os danos e desastres ambientais, tal como o desastre de Mariana, que privem as populações tradicionais da chance de regularizar suas atividades econômicas junto aos órgãos minerário e ambientais irão desencadear o dever de reparação. Este dever implica efeitos patrimoniais e extrapatrimoniais, inclusive em relação a eventuais lesões existenciais provocadas sobre a comunidade atingida.
*Marcelo Kokke – Pós-doutor em Direito Público – Ambiental pela Universidade de Santiago de Compostela – ES. Mestre e Doutor em Direito pela PUC-Rio. Especialista em processo constitucional. Pós-graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental. Procurador Federal da Advocacia-Geral da União. Professor da Faculdade Dom Helder Câmara. Professor de Pós-graduação da PUC-MG. Professor do IDP – SP. Membro da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil e da União Brasileira da Advocacia Ambiental.
Fonte: Direito Ambiental
Publicação Ambiente Legal, 12/07/2020
Edição: Ana A. Alencar