O uso ancestral do fogo pode ser aliado da conservação, reduzindo grandes incêndios na savana mais biodiversa do mundo
Por Marcia Sousa
Um dos biomas mais ricos em biodiversidade do planeta, uma savana considerada a caixa d’água do continente por concentrar as principais nascentes, mas que evoluiu com a presença do fogo. Neste 11 de setembro em que se comemora o Dia do Cerrado, o CicloVivo ressalta a importância do fogo para este que é o segundo maior bioma da América do Sul.
O Cerrado é um ecossistema que evoluiu na presença do fogo. Há plantas e animais que são adaptados e dependem desse sistema. Desta forma, o MIF tem sido adotado como estratégia em áreas protegidas em diferentes estados, unindo ciência e conhecimento tradicional, para evitar grandes incêndios e garantir a manutenção de espécies únicas. Há plantas que só conseguem se reproduzir quando expostas às altas temperaturas das chamas, como a erva conhecida como cabelo-de-índio (Bulbostylis paradoxa).
As populações que vivem no Cerrado, os povos tradicionais em especial, sempre usaram o fogo. São comunidades que só têm o fogo como ferramenta para suas atividades agropastoris, como renovação de pastagem, por exemplo, mas passaram a sofrer represálias dos órgãos ambientais que adotaram a chamada política do “fogo zero”.
“As pessoas não deixaram de usar, porque elas não tinham alternativa. Elas passaram a queimar e virar as costas porque se sentiam criminosas. O fogo, que era mais fácil de ser controlado, passou a fugir do controle, virar grandes incêndios e atingir unidades de conservação. Os focos de incêndios que eu vejo ameaçando entrar na Reserva do Tombador ainda são de atividades de pequenos produtores rurais do entorno para queima de pastagem”, afirma André Zecchin, biólogo e gerente da RPPN Reserva Natural Serra do Tombador, mantida pela Fundação Grupo Boticário.
Foi graças à abordagem da bióloga e pesquisadora de Ecologia do Fogo da Unesp Alessandra Tomaselli Fidelis, que a Reserva do Tombador passou a adotar o Manejo Integrado do Fogo e, desta forma, quebrar o ciclo de grandes incêndios que ocorria na área a cada três anos.
Alessandra realiza uma pesquisa de longa duração apoiada pela Fundação Grupo Boticário e desenvolvida na Reserva há 10 anos, com objetivo de avaliar o efeito dos incêndios sobre o Cerrado. Desde 2011, a pesquisadora faz experimentos na reserva de manipulação do fogo.
Menos fogo, mais incêndios
Diferentemente do que possa imaginar o senso comum, deixar de queimar territórios no Cerrado pode acarretar diversos prejuízos. Um dos destaques da pesquisa de Alessandra é que áreas que não foram queimadas já há muito tempo estão ficando mais adensadas, ou seja, áreas que eram mais abertas estão ficando mais fechadas, com mais arbustos e árvores. Seria então essa uma boa notícia? Não, necessariamente. “Se você tem uma área aberta, de savana, muito rica em espécies, com animais que precisam deste habitat: eles estão perdendo esse habitat”, pontua.
À respeito do uso tradicional do fogo, Alessandra afirma que antes da proibição a população no entorno da Chapada dos Veadeiros sabia como queimar pequenas áreas para o fogo não se espalhar. “Com a política do fogo zero qualquer pequeno foco de incêndio era apagado nas unidades de conservação”, explica.
A consequência foi que quando de fato um grande foco ocorria a situação era totalmente descontrolada: grandes áreas sem queimar a muito tempo, com acúmulo de biomassa seca (de capins e pequenos arbustos) que funcionava como material inflamável, favorecia a entrada intensa do fogo.
Exemplo disso é o que ocorreu em outubro de 2017 no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. A área queimada foi justamente uma parte que não havia sido queimada nos 10 anos anteriores. O cenário foi propício para o desastre ambiental, sendo considerado o maior incêndio de sua história.
Para contrapor essa lógica nasceu a proposta do Manejo Integrado do Fogo ou simplesmente MIF, que indica a queima de diferentes áreas em diferentes anos como ferramenta para evitar grandes incêndios. A ideia é que mesmo que o fogo ocorra em determinada área não se espalhe e atinja proporções gigantescas.
O MIF faz uso de queimas controladas com objetivos pré-definidos, que agregam aspectos ecológicos, culturais, de conservação da biodiversidade e manutenção dos serviços ecossistêmicos.
“Os quilombolas no Jalapão hoje usam muito o fogo para colheita do capim dourado, mas é indicado não colocar fogo antes de setembro porque o capim dourado está dando flor e semente”. Tal entendimento, explica Alessandra, foi construído junto com os pesquisadores e povos tradicionais.
“O MIF trouxe para as comunidades tradicionais uma possibilidade de valorização do conhecimento [ancestral]. Parou-se de olhar o uso do fogo como algo criminoso e passou-se a olhar como uma fonte que a gente precisa beber. O “i” de integrado é a letrinha mais importante porque é um esforço conjunto de ações que vão ajudar não só a prevenir o fogo, mas saber como lidar com os incêndios”, ressalta Zecchin.
Fonte: Ciclo Vivo
Publicação Ambiente Legal, 13/09/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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