Com 56 metros de largura e 26 km de leito canalizado dentro de São Paulo, o rio Tietê é uma das primeiras paisagens a cumprimentar quem chega à cidade pelo aeroporto de Guarulhos ou pelas rodovias Anhanguera e Bandeirantes.
E não é uma paisagem agradável: o cheiro de esgoto, o aspecto sujo e a falta de vida aquática tornam evidente que o maior rio do Estado está morto no trecho em que passa pela região metropolitana.
A mancha de poluição – onde a oxigenação é praticamente 0% – ocupa hoje 130 km, entre as cidades de Itaquaquecetuba, à leste da capital, e Cabreúva, à noroeste. Os dados são do monitoramento da ONG SOS Mata Atlântica.
É preciso ter no mínimo 5% de oxigenação para que haja peixes em um rio. O ideal é em torno de 7%.
A tentativa do governo do Estado de limpar o curso d’água começou há 25 anos, em 1992, após uma ampla campanha popular feita pela SOS Mata Atlântica e pela Rádio Eldorado, em que foram colhidas 1,2 milhão de assinaturas.
O Projeto Tietê foi então lançado com financiamento do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). O governador à época, Antônio Fleury Filho, chegou a dizer que beberia água do rio ao fim da iniciativa. Em 1993, a gestão prometeu publicamente limpar o rio até 2005.
Mas 25 anos e US$ 2,7 bilhões (R$ 8,8 bilhões) depois, ele está longe de ser despoluído. Afinal, o que deu errado?
Por que o Estado ainda não conseguiu recuperar o rio?
“Muitas pessoas têm uma ideia equivocada de que limpar o rio é pegar a água ali que está suja e tratá-la. teve um projeto de flotação para tirar a sujeira que já estava na água. Isso não funciona”, diz José Carlos Mierzwa, professor do Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).
Ele explica que limpar um rio é basicamente parar de despejar poluentes nele. “Se você manejar corretamente o esgoto, o que está ali vai embora e o rio se ‘limpa sozinho'”, afirma.
A maior parte dos detritos que vão hoje para o Tietê é de origem doméstica. Quando a despoluição começou, em 1992, 70% do esgoto residencial da região metropolitana de São Paulo era coletado e apenas 24% disso – 17% do total – passava por tratamento.
As duas primeiras fases do projeto foram focadas em criar estações de tratamento e rede de coleta. Na Grande São Paulo, hoje 87% é coletado e 59% do total é tratado, segundo a Sabesp (a companhia de saneamento). Na capital, 88% do esgoto é coletado e 66% do total é tratado.
É uma taxa de saneamento bem maior do que a média do Brasil, onde 61% do esgoto nas áreas urbanas é coletado e 43% é tratado, segundo dados de setembro da Agência Nacional das Águas (ANA). Mas ainda é insuficiente para evitar a contaminação do Tietê: 41% do esgoto doméstico da Grande São Paulo vai parar in natura no rio e em seus afluentes.
“Em uma região metropolitana como São Paulo, com 22 milhões de habitantes, 41% do esgoto não receber tratamento é um volume muito grande”, afirma Mierzwa.
Ele explica que a maior dificuldade – a parte mais cara e difícil – é a construção da rede de coleta de esgoto.
Nos bairros que já são consolidados, é preciso passar a tubulação por debaixo de ruas e prédios. Nos outros, a ocupação irregular impede que a concessionária do serviço passe a tubulação que levaria os detritos já coletados às estações de tratamento. Nesses locais o esgoto produzido cai direto nos córregos, que depois desembocam no Tietê.
“A principal dificuldade da despoluição é que são 39 municípios envolvidos e há uma falta de comprometimento dos prefeitos com o plano de uso e ocupação do solo”, afirma o professor.
Uma questão urbana
O problema da poluição do rio está intimamente ligado ao problema da habitação. Segundo os especialistas, eles precisam ser resolvidos em paralelo. Não adianta apenas remover famílias de áreas de várzea de rio e deixá-las em situações precárias – isso só empurra as ocupações e posterga o problema.
“São Paulo empurrou e continua empurrando as pessoas de baixa renda para as áreas de manancial, que tem baixo valor econômico”, afirma Malu Ribeiro, da Rede de Águas da SOS Mata Atlântica.
Conforme a cidade foi se desenvolvendo e expandindo, as pessoas mais pobres foram expulsas de regiões centrais, com infraestrutura, para a periferia, onde acabaram ocupando áreas de várzea e mananciais.
“É um problema de gestão. Equivocadamente as pessoas pensam só em tratamento de esgoto, não têm o entendimento de que está tudo interligado”, explica Ribeiro.
Gráfico sobre coleta e tratamento de esgoto
A competência em lidar com os problemas é dividida entre diferentes instâncias. A do saneamento é majoritariamente dos municípios, e o uso do solo também. Mas o governo federal também lida com a questão da habitação e fornece financiamento para obras de infraestrutura; e a responsabilidade pela bacia hidrográfica é do Estado.
“Não há integração. Um exemplo: o Estado de São Paulo, que contrata a Sabesp, está há mais de 20 anos sob a gestão política do PSDB. E a cidade de Guarulhos ficou 13 anos sob governo do PT. Nesse meio tempo, não houve entendimento para tratar o esgoto de Guarulhos na estação do Parque Novo Mundo, que é a mais próxima”, diz Malu Ribeiro.
Segundo dados da própria Sabesp, o Sistema Parque Novo Mundo foi projetado para atender parte de Guarulhos, mas atende apenas trechos das zonas leste e norte de São Paulo.
Na Coreia do Sul, que conseguiu limpar os quatro rios que cortam a capital, Seul, a despoluição foi uma ação integrada entre diversos órgãos. O setor do governo responsável pelo projeto assumiu a competência de lidar com todas as questões envolvidas e organizar os outros agentes. Além da parte técnica, houve questões culturais, ambientais e sociais – como habitação e transporte.
Já o Tâmisa, em Londres, foi despoluído ao longo de 50 anos com o estabelecimento da coleta de esgoto a partir dos anos 1960, endurecimento da regulação do uso de pesticidas e fertilizantes nas décadas de 1970 e 1980 e maior controle sobre metais pesados no tratamento dos dejetos industriais a partir dos anos 2000.
Em 1957, o Museu de História Natural local declarou que o rio estava morto. Hoje existem 125 espécies de peixes ali, segundo a autoridade portuária da cidade. Também podem ser vistas focas e golfinhos. Mas o crescente acúmulo de plástico nos últimos anos pode ser uma ameaça aos avanços.
Uso do solo
Assentamento irregular é um fator crucial quando se fala sobre como a ocupação do solo prejudica o curso d’água, mas não é o único.
A ocupação de beira de rios e córregos em São Paulo é comum na metrópole toda – as próprias marginais Pinheiros e Tietê impermeabilizaram uma área de várzea que deveria ser reservada para o transbordamento natural do rio.
Há muitos bairros regulares – alguns até de alto padrão – onde existe a captação do esgoto, mas ele nunca chega às estações de tratamento. Cerca de 32% do que é coletado não é tratado.
“A pessoa liga a casa à rede pública de coleta e vê que o esgoto está sendo retirado. Ninguém vê o que acontece depois, se existem interceptores (tubulações maiores que recebem o esgoto de vários bairros e levam às estações de tratamento)”, diz o engenheiro Francisco Toledo Piza, professor de saneamento da Universidade Mackenzie e ex-funcionário da Sabesp.
O despejo de esgoto in natura direto no rio pela própria Sabesp levou o Ministério Público de São Paulo a entrar com uma ação contra a empresa, citando a contaminação da bacia do Tietê e das represas Billings e Guarapiranga.
A Justiça considerou que havia provas robustas de prática ilícita por Sabesp, Estado e município, mas a ação foi indeferida. Entre outros pontos, a juíza considerou que a companhia estava cumprindo sua obrigação, inclusive com a apresentação de um cronograma de metas razoável quando se analisa a magnitude da empreitada. A Promotoria recorreu, afirmando que a empresa não vinha cumprindo as etapas do cronograma.
Na apelação, o Ministério Público afirma que a empresa pratica em sua estratégia de gestão negocial “forte marketing enganoso quanto às metas atingidas e sua responsabilidade ambiental”. A ação está em análise em segunda instância.
Mudanças no zoneamento sem preocupação com o reforço da infraestrutura também são um problema, segundo Mierzwa.
“As companhias de saneamento criam uma rede de coleta para uma região de casas. Depois a prefeitura decide mudar o zoneamento, empreiteiras compram os terrenos e constroem prédios, mas a rede de coleta não tem capacidade de lidar com o novo fluxo”, afirma.
O que a rede de esgoto não consegue absorver extravasa para as galerias pluviais – que recebem a água da chuva – e desemboca diretamente nos rios.
Sobrecarregadas, as tubulações que recebem esgoto também acabam tendo uma série de rupturas. “Quando isso acontece, muitas vezes as concessionárias vão fazer o conserto dos canos rompidos e liga na rede pluvial em caráter emergencial, o que piora a situação”, explica Toledo Piza.
As galerias pluviais também acabam recebendo ligações irregulares de casas que ligam o encanamento na rede errada por diversos motivos – por não existir rede de esgoto ou pelo fato de as pessoas não quererem pagar a taxa de saneamento.
Na Região Metropolitana de São Paulo há mais de 134 mil imóveis com rede de coleta passando na porta, mas que não fizeram a ligação.
São 67 mil só na região oeste, que inclui bairros como Butantã e Rio Pequeno e cidades como Carapicuíba, Cotia e Barueri. O dejeto de todos esses imóveis poderia estar sendo tratado na estação de Barueri, que foi recentemente ampliada.
O que tem no rio Tietê?
Há três principais contaminantes no rio hoje.
O esgoto doméstico é a maior parte, já que as regulações sobre dejetos industriais obrigaram as indústrias a passar a entregar a água tratada.
Mas, segundo Toledo Piza, existe ainda um residual industrial. Ele vem de produções que burlam o regulamento ou de pequenas manufaturas, como fábrica de bijuterias de fundo de quintal. A quantidade é pequena, o problema é o tipo de material que esse esgoto pode conter.
Há ainda a chamada “carga difusa” – sujeira que está nas ruas e é levada pela chuva para os córregos ou para a rede pluvial, que desemboca no rio. Isso inclui fuligem de carros, bitucas de cigarro, lixo que as pessoas jogam nas ruas, cocô de animais e água com detergente da lavagem de quintais que vai para a rua, e não para o ralo, entre outros.
Esse lixo todo gera o assoreamento: o acúmulo de lixo, entulho e outros detritos no leito do rio, diminuindo a capacidade de vazão da água e gerando enchentes. A isso se soma o desmatamento da mata ciliar ao longo dos córregos da bacia, que causa erosão do solo e ida de ainda mais detritos para o curso d’água.
Outros projetos contemplam o desassoreamento, mas de nada adiantam se os detritos continuarem a chegar ao rio.
“A cada década é um novo vilão. Nos anos 1990 havia muito despejo industrial. Agora é esgoto doméstico, responsabilidade do poder público. Quando isso for resolvido, teremos que lutar para limpar os tóxicos farmacológicos”, explica Malu Ribeiro.
Boa parte dos remédios que são consumidos pelas pessoas não é assimilada pelo organismo e vai também para o esgoto.
“A quantidade desses contaminantes é pequena em termos de massa, mas pode ser grande em termos de efeito”, explica Mierzwa. “Nos EUA, uma pesquisa da agência ambiental viu que há presença desse tipo de contaminante na água de abastecimento. Os efeitos possíveis nas pessoas estão sendo estudados agora.”
O problema é que o tratamento não retira esse tipo de poluente da água. Hoje, ele é feito com lodos ativados.
Resíduos sólidos são retirados por um processo de sedimentação e a decomposição da matéria orgânica ocorre com o uso de bactérias.
“O projeto feito nos anos 1990 e a tecnologia selecionada na época não asseguram que o despejo do esgoto já tratado não impacte o rio”, explica Mierzwa.
“Ela tem uma eficiência limitada de remoção da matéria orgânica – em condições ótimas remove 80% a 90% da carga orgânica. Mas não remove certos contaminantes, como fósforo e nitrogênio”, afirma. E também não remove remédios e hormônios.
Hoje já existem tecnologias mais avançadas. Os sistemas de filtragem com uso de membranas, por exemplo, retira esse tipo de poluente, fósforo, nitrogênio e 99% da matéria orgânica.
“É uma tecnologia que hoje é um pouco mais cara, mas conforme o país se apropria e vai desenvolvendo, vai ficando mais barata. Caro é não ter água para abastecimento porque os rios são poluídos, caro é o sistema de saúde atender um monte de gente com doença resultante de contato com a água mal tratada”, afirma Mierzwa.
Quanto dinheiro?
Para Malu Ribeiro, da SOS Mata Atlântica, os R$ 8,8 bilhões já investidos na despoluição do rio não foram desperdiçados – mesmo que os avanços tenham sido em um ritmo muito mais lento do que o prometido.
“Na verdade é um valor pequeno para o tamanho do problema. E não chega nem pertos dos números da Lava Jato ou do investimento do país na Copa, por exemplo”, afirma.
O Brasil investiu cerca de R$ 28 bilhões com a Copa do Mundo. Disso, R$ 8,3 bilhões foram gastos só com estádios.
O banco Morlan Stanley estimou que o total desviado com propina na Petrobras tenha sido de R$ 21 bilhões – oficialmente, o rombo causado por corrupção nas contas da estatal é de mais de R$ 6 bilhões.
Para Ribeiro, o investimento em saneamento precisa ser alto e constante. “Senão corremos o risco de perder os avanços que já foram feitos. Aí sim o dinheiro gasto terá sido por nada.”
A mancha de poluição, por exemplo, já foi menor: em 2014 estava contida em 71 km. No ano seguinte, a Sabesp diminuiu o investimento na despoluição do rio de R$ 516 milhões para 378 milhões, e a mancha mais do que dobrou.
No ano passado o investimento caiu de novo, para R$ 342. Isso em um ano em que o lucro da empresa foi de R$ 2,9 bilhões, muito acima dos anos anteriores.
A companhia afirma que seu investimento total em água e esgoto na verdade aumentou, e que o investimento em abastecimento de água foi priorizado em relação ao esgoto por causa da crise hídrica.
A Sabesp diz que investiu em água e esgoto, com ajuda de financiamentos, cerca de R$ 3,8 bilhões no ano passado – mas não detalha que tipo de gasto foi considerado nessa conta.
A empresa afirma também que o Projeto Tietê “é o maior programa de saneamento do Brasil”.
“O projeto tem resultados claros, como a redução de 400 quilômetros da mancha de poluição do rio e a despoluição de 151 córregos na capital”, diz em nota.
O projeto está hoje em sua terceira fase, que deve terminar até o ano que vem. A quarta etapa, segundo a Sabesp, está em fase de planejamento e captação – mas não há previsão de quantidade de recursos investidos ou quais serão as fontes de financiamento.
Segundo a companhia, algumas obras da quarta fase foram antecipadas, como a construção de um interceptor de 7,5 km embaixo da marginal Tietê.
Obra enterrada
Para Malu Ribeiro, outra dificuldade é que saneamento não é prioridade eleitoral no Brasil.
“Nunca foi. Nem saneamento nem água. É só ver como a crise hídrica não colou no (governador Geraldo) Alckmin”, afirma. “Temos a cultura de uma falsa ideia de abundância.”
“E a questão que sempre se fala de ser uma obra enterrada, que ninguém está vendo.”
“Existem soluções para essa falta de interesse. Uma delas é monetizar o processo: incluir o saneamento no ciclo econômico. É preciso responsabilizar. Você gerou, você paga.”
O dinheiro poderia ser usado inclusive para compensar quem é prejudicado.
A cidade de Pirapora do Bom Jesus, por exemplo, recebe todos os poluentes da região metropolitana. Há estâncias naturais que não poluem e também deveriam ter incentivos”, afirma.
Para Ribeiro, as falsas promessas feitas por políticos fazem com que as pessoas desacreditem que é possível uma solução.
Em 1993, o governo de Antônio Fleury Filho prometeu a limpeza para 2005. Em 2004, o então secretário de recursos hídricos afirmou que o rio teria peixes até 2010. Em 2012, o governador Geraldo Alckmin disse que a cidade poderia ter 94% do esgoto coletado até 2015. Em 2014, ele prometeu a despoluição do rio até 2019.
Segundo Ribeiro, a solução é possível, mas só virá quando houver mudanças culturais em relação aos recursos naturais, maior integração entre as instâncias competentes e a recuperação das águas for um projeto de Estado.
Fonte: BBC