Decisões judiciais em Uberaba representam uma batalha de muitas, travadas na guerra dos biocentristas contra a nova lei florestal brasileira
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O EXERCÍCIO DA CRÍTICA É ESSENCIAL À DEMOCRACIA
Esse artigo pretende resgatar uma prática abandonada pelos operadores do direito brasileiro, massacrados pela estatolatria e pela hegemonia do jurisprudencialismo sobre a doutrina crítica.
Em alentado artigo recentemente publicado, o Procurador de Justiça gaúcho, Lenio Luiz Streck afirmou que:
“Exercer a crítica no direito é uma tarefa difícil. Principalmente em terrae brasilis. Por aqui, normalmente é magister dixti. Mormente se quem disse é ministro de Corte Superior. Não conseguimos construir ainda uma cultura em que as decisões judiciais – em especial as do Supremo Tribunal Federal – sofram aquilo que venho denominando de “constrangimentos epistemológicos”. O que é “constrangimento epistemológico”? Trata-se de uma forma de, criticamente, colocarmos em xeque decisões que se mostram equivocadas, algo que já chamei, em outro momento, de “fator Julia Roberts”, em alusão à personagem por ela interpretada no filme Dossiê Pelicano, que, surpreendendo o seu professor em Harvard, afirma que a Suprema Corte norte-americana errou no julgamento do famoso caso Bowers v. Hardwick. No fundo, é um modo de dizermos que a “doutrina deve voltar a doutrinar” e não se colocar, simplesmente, na condição de caudatária das decisões tribunalícias.”
Assim, a crítica doutrinária é a afirmação do direito, a legitimação do livre debate jurídico e institucional e o oxigênio que mantém vivo o Estado Democrático de Direito, sem o qual não há justiça.
É nesse espírito, direto e objetivo, que pretendo analisar o uso desmesurado de princípios não positivados em desfavor da lei e chamar a atenção para a armadilha silogística, recepcionada infelizmente por duas recentes decisões da Justiça Federal de Uberaba – MG.
A MISÉRIA DO ATIVISMO JUDICIAL
A crítica livre e aberta é a melhor e mais democrática resposta ao “ativismo judicial” – pelo qual alguns operadores públicos do direito buscam solucionar conflitos, aplicando o que entendem ser bons princípios ou comportamentos ideológicos politicamente corretos.
A postura estatólatra intrínseca a esse ativismo, no entanto, faz com que os seus operadores busquem o que entendem ser “o melhor” para o caso, sem, no entanto, debater suas concepções no campo doutrinário, com igualdade de armas, mais profundamente, no bojo da sociedade civil – destinatária direta das decisões.
O ativismo judicial é um paradoxo. Alimenta-se de princípios jurídicos para conferir validade à lei ou desconsiderá-la na tutela da economia, dos direitos fundamentais e do meio ambiente, entretanto com resultados funestos. Um tormento para cidadãos, gestores, juristas e autoridades pois, não raro, a “inovação” produzida fragiliza a lei e gera insegurança jurídica, sem, efetivamente, resolver o conflito.
No campo ambiental, investimentos deixam de ocorrer pelo temor da indefinição. Propriedades perdem função social e econômica. Pessoas perdem o seu ganha-pão e, não raro, o meio ambiente, que se pretendia proteger, degrada-se em meio a imprecisões jurídicas e à incapacidade econômica para bem geri-lo.
A PRINCIPIOLATRIA
O ativismo judicial é afetado pela principiolatria (às vezes delirante). Essa principiolatria, em vez de reforçar o império da Lei, a destrói.
A principiolatria contamina o tecido normativo estabelecido no bojo do Estado Democrático de Direito.
Por conta do fenômeno, a estrutura normativa é corroída pela aplicação de princípios não positivados – ou seja, não respaldados em tratado, norma legal ou constitucional expressa.
Petições iniciais e decisões judiciais transformam-se em tratados quilométricos, lotados de construções silogísticas agradáveis, que se traduzem em verdadeira poesia aos olhos de quem lê… com entendimentos metafísicos de fácil assimilação e efeitos materiais desastrosos.
Princípios constituem a razão deontológica que orienta a construção e a aplicação da Lei. Portanto, com ela não se confundem, e nem a ela se sobrepõem.
A própria Corte Internacional de Justiça assim já decidiu ao estabelecer que princípios internacionais, elencados em declarações ou preâmbulos uma vez não positivados em cláusulas de tratados ou convenções, só se aplicam à resolução de um conflito por analogia, de forma subsidiária, na ausência de disposição expressa.
O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE RETROCESSO AMBIENTAL
O chamado Princípio de Proibição de Retrocesso enquadra-se nessa febre doutrinária. À guisa de respaldar a manutenção da higidez ambiental, nega o caráter dinâmico do equilíbrio ecossistêmico.
Com efeito, o meio ambiente ecologicamente equilibrado envolve todos os elementos biológicos, econômicos, sociais, climáticos, muitos dos quais refogem ao domínio do direito – e por isso mesmo precisam ser reconhecidos por ele.
Se já é complexo entender o “equilíbrio” numa relação dinâmica, muito mais difícil é aplicar o freio da “proibição de retrocesso” a algo que não se sabe se recua, desborda ou avança…
A certeza principiológica não resiste a três questões:
1- Que meio ambiente é indisponível? E em função do que e de quem ocorre essa indisponibilidade?
2- Sendo qualquer ecossistema, física e biologicamente dinâmico, que bem jurídico em causa nele pode se tornar ‘indisponível’?
3- Se o processo legislativo pode ser desprezado em nome de direitos ambientais adquiridos, que ambiente pretende-se tutelar contrariamente ao ambiente legal que nos mantém a todos – ou seja, o Estado Democrático de Direito?
O problema é de ordem teórica: maus argumentos podem construir más decisões. E isso é algo que deve ser evitado.
A BATALHA PRINCIPIOLÓGICA CONTRA A LEI FLORESTAL
Essa orientação cabal deveria ser aplicada para o caso específico do novo Código Florestal, costurado pelo parlamento visando estabelecer regras mais claras para a política florestal em nosso território.
O diploma legal seguiu o regular processo legislativo, que é a razão de ser de nossa democracia pluralista, assimétrica e poli cultural. Sancionado pela Presidente Dilma Rousseff, é Lei – a Lei 12.651 de maio de 2012.
A articulada desobediência à nova lei, no entanto, não advém dos infratores recalcitrantes. Ela vêm justamente dos operadores do direito que deveriam aplica-la.
A base para a desobediência articulada está, justamente, no malfadado Princípio da Vedação ao Retrocesso Ambiental.
A guerra recrudesce, no entanto, na medida em que os biocentristas encontram respaldo em decisões judiciais.
Recentemente, o juízo da 2ª Vara Federal de Uberaba (MG) declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 62 da Lei nº 12.651/2012. O artigo altera o regime de proteção das áreas de preservação permanente localizadas às margens de reservatórios artificiais.
O juízo pronunciou-se em decisões proferidas em duas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público Federal (MPF) contra pessoas que desmataram e construíram edificações às margens dos reservatórios de usinas hidrelétricas instaladas no Rio Grande, no Triângulo Mineiro, invadindo o perímetro da área demarcada na legislação anterior, no entanto, beneficiadas pela nova regra.
O conflito, no entanto, não é antigo… data pouco mais de dez anos.
O antigo Código Florestal havia sido remendado e deformado pela Medida Provisória 2.166, editada em 2001, seguida de regulamentação draconiana editada por Resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Res. CONAMA 302/2002), estabelecendo um perímetro de 30 metros nos reservatórios artificiais situados em área urbana e de 100 metros naqueles situados na zona rural. Esse quadro legal construído ás pressas, unilateralmente, sem qualquer debate com a sociedade, na década passada, gerou um volume incomensurável de atritos e conflitos, atingindo ocupações já consolidadas e fragilizando direitos.
O novo Código Florestal brasileiro, visando pôr um fim nas centenas de conflitos originados pelo quadro anterior, dispôs que os reservatórios artificiais passariam a ter a respectiva área de preservação permanente fixada pela distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum.
Segundo a sentença proferida na ação civil pública, no entanto, “percebe-se, sem qualquer dificuldade, que o legislador ordinário atuou deliberadamente no sentido de extinguir a proteção ambiental no entorno dos reservatórios artificiais, pois se no quadro normativo anterior à Lei 12.651/2012, este espaço recebia proteção de 15 a 100 metros (Resolução 302/2002 Conama), atualmente a faixa de proteção recai apenas sobre a área normalmente inundável (a chamada cota máxima maximorum), que é ínfima, quando não inexistente”.
A decisão poderia evitar o comentário sobre o legislador e se circunscrever ao fator técnico da inocuidade da regra para a proteção por ela pretendida no local, atentando-se para circunstâncias especialíssimas no caso.
Porém, a fundamentação transcendeu. Fundiu o conceito descritivo das funcionalidades do instituto da área de preservação permanente ao rol das cláusulas pétreas da Constituição, para entender ter ocorrido um “retrocesso ambiental” intrínseco à norma legal – negando-lhe vigência.
Desconsiderou a decisão, ainda, que o próprio conflito armado pela confusão normativa, somava pouco mais de uma década, não se tratando, portanto, de infração face legislação que pudesse se considerar “consolidada”.
Com todo o respeito, houve esforço de raciocínio, com premissas seletivas.
A razão adotada permite que se confira subjetivamente validade a normas legais, na medida em que se adequem ou não ao entendimento do intérprete do que seja “ir para a frente” ou “retroceder”, em relação ao conflito em causa…
LABIRINTOS SILOGÍSTICOS
Lembrando que as áreas de preservação permanente dos reservatórios artificiais desempenham papel importante no equilíbrio da biodiversidade, protegendo o solo de erosões e garantindo a recarga do aquífero, a respeitável decisão destacou que o artigo 62 do Novo Código Florestal constitui “flagrante retrocesso jurídico-ambiental”, o que é “inadmissível no plano normativo dos direitos fundamentais” assegurados pela Constituição.
Na sentença proferida em outra ação, ficou salientado que “qualquer desobediência e consequente afronta às normas constitucionais deve ser repelida pelo Poder Judiciário no exercício do controle de constitucionalidade, pois é preciso reconhecer que se está diante de um pacto nacional pela preservação do meio ambiente”.
Além disso, segundo a decisão, “o novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada”.
O silogismo inoculado na decisão é evidente: que a rigidez métrica, referida no regime legal anterior da área de preservação permanente, encontra respaldo expresso na Constituição Federal – o que não é verdade e, o mais grave, que a situação anterior – montada a partir de uma medida provisória, configura “direitos ambientais adquiridos” …
SILOGISMO NÃO É RAZÃO DE DECIDIR
É lição antiga: a decisão é um prius, o silogismo um posterius. Não se silogiza para julgar e, sim, para demonstrar como se julgou.
Essa sutileza é a razão de ser da magistratura, o limite do magistrado – absolutamente dispositivo e vinculado – indene de esforço mental.
Nas duas ações, do triângulo mineiro, os réus foram condenados a demolir as edificações erguidas. Os infratores também deverão recuperar a área degradada, conforme Plano de Recuperação Ambiental previamente aprovado pelo órgão ambiental competente, e se absterem de realizar novas ocupações, corte, exploração ou supressão de qualquer tipo de vegetação na área de preservação permanente.
Importante notar que os efeitos decorrentes dessas decisões reforçam judiciariamente um ramo doutrinário bastante preocupante, razão suficiente para que haja uma abordagem crítica clara, aberta, democrática e não circunscrita ás partes, aos magistrados, aos patronos e interessados diretamente nos processos referidos.
O TEATRO DE OPERAÇÕES É MAIS AMPLO
A batalha de Uberaba, no entanto, é apenas um episódio na guerra do Biocentrismo Panprincipiológico contra o império da lei ambiental que não lhe agrada…
Em janeiro de 2013, a Procuradoria Geral da República (PGR) ajuizou três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 4901, 4902 e 4903), com pedidos de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando dispositivos do novo Código Florestal brasileiro (Lei 12.651/12) relacionados às áreas de preservação permanente, à redução da reserva legal e também à anistia para quem promove degradação ambiental.
Nas ações, a PGR pediu liminarmente a suspensão da eficácia dos dispositivos questionados até o julgamento do mérito da questão. Também foi pedida a adoção do chamado “rito abreviado”, o que permite o julgamento das liminares diretamente pelo plenário do STF em razão da relevância da matéria.
Um ano depois, tanto o pedido de liminar, quanto as próprias ações, continuam aguardando julgamento.
Enquanto isso, a economia agrícola, que vislumbrou alguma luz no fim do túnel, com a edição de novo estatuto florestal, observa seus rumos de novo se nublarem, perdidos na neblina da judicialização, no labirinto da principiolatria, no beco do biocentrismo e no mar das indefinições jurídico-ambientais.
Perde o Estado de Direito, perde o Desenvolvimento Sustentável.
Fontes: Ministério Público Federal em Minas Gerais (ACP nº 2004.38.02.003081-7 e ACP n. 1588-63.2013.4.01.3802), Portal EcoDebate (18/02/2014), CONJUR (17/11/2011), Portal Ambiente Legal.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado e consultor ambiental, com serviços de consultoria prestados ao Banco Mundial, IFC, ONU (PNUD, UNICRI), Governo Brasileiro (SAE, MME, DNIT, MMA, CEF, EB, etc), membro do Green Economy Task Force da CCI, entre outras entidades. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal.