Por Georges Humbert*
O tema dos princípios jurídicos, notadamente sobre a ótica dos denominados “neoconstitucionalismo” e “pós-positivismo”, marcos teóricos e filosóficos que, por carência de base metodológica, ontológica e epistemológica, se quer se sustentam enquanto teorias[1], mas dominam a cena – e moda – jurídica brasileira há décadas, causa grande prejuízo ao desenvolvimento econômico, social e a sustentabilidade do país, os quais são fundamentos da República Federativa do Brasil, enquanto estado democrático de direito, a teor dos artigos 1º a 4º da Constituição de 1988.
Esse problema se agrava em matéria ambiental, onde vigora o maior inimigo do direito individual fundamental e humano basilar da segurança jurídica: a principiologização do direito[2]. Com efeito, esta é grave risco para o estado democrático de direito. Desse modo, tal qual Streck, “afastei-me do neoconstitucionalismo porque ele aposta em elementos não democráticos, como a ponderação e a discricionariedade judicial.” [3]
É neste contexto, de ausência de razão e racionabilidade teórica, e mesmo de ofensa ao estado democrático de direito, notadamente ao direito individual fundamental à segurança jurídica e aos deveres fundamentais de desenvolvimento nacional econômico, social e de sustentabilidade, que se enquadram os denominados Princípios da “Vedação ao Retrocesso” e “Prevalência da Norma Mais Restritiva”, sustentando por alguns como valores jurídicos máximo do direito ambiental brasileiro.
Pelo suposto princípio da “Vedação ao Retrocesso”, sugere-se que “a ordem constitucional brasileira não assegura proteção constitucional às iniciativas legislativas estaduais que se afastem do dever de proteção dos direitos fundamentais [neste caso, do dever de proteger o ambiente], e mesmo à iniciativa do poder central que proponha semelhante redução nos níveis de proteção sem que seja proposta realidade compensatória, configurando-se os excessos em seu exercício, desvios censurados sob o ângulo dos artigos 24, caput, inciso VI, §§ 2º e 3º e, 225, caput, e inciso VII, da CRFB de 1988.”[4]
Não sendo este espaço, de artigo curto e direto, apto e adequado para desconstruir, metodológica, racional e científica a inexistência dessa suposta norma, de suposta natureza principiológica, na ordem jurídica constitucional brasileira, basta se valer de um argumento meramente fático, lógico e concreto para revelar sua total impropriedade. Se essa norma existisse, levaria à seguinte consequência: toda vez que os avanços de pesquisa demonstrassem que uma norma com padrões de controle menos restritivos às liberdades econômicas e sociais fosse descoberto, dever-se-ia manter o antigo, mais insustentável, ineficiente, caro, pelo simples fato de se reduzir nível de proteção, mesmo que se aumente a qualidade e o benefício à ordem econômica, social e ambiental, mesmo que sem qualquer medida de compensação.
Por sua vez, pela tal suposta norma jurídica princípio do direito ambiental brasileiro, da “Prevalência da Norma Mais Restritiva”, ter-se-ia que uma regra de precedência lógica‖, que estabelece que em casos de conflitos de fontes o juiz deve aplicar de modo prevalente a que tutela, de modo mais restritivo, a intervenção econômica ou social no ambiental.[5]
Igualmente, nem precisamos entrar no mérito da impropriedade na teoria geral do direito e da Constituição desta construção, notadamente quanto as questões jurídicas formais relacionadas à competência[6] e também materiais, especialmente no que se refere ao devido processo legal substantivo e a sustentabilidade. Isto porque, basta perceber que a norma mais restritiva do Código Florestal, que requer 15 ou 30 metros de área de vegetação nativa e intocável às margens em todo rio urbano brasileiro, não se verifica em nenhum, ou quase nenhum, os quais, pelo contrário, são margeados por cimento, ruas, avenidas, esgotos ou grama, em regra. Será que uma norma, menos restritiva, com 2 a 5 metros, não protegeria mais o meio ambiente? Claro que sim, pois nem sempre o mais restritivo é o mais protetivo, sustentável, razoável, eficiente e eficaz.
Portanto, tais princípios, recorrentemente aplicados pelo Superior Tribunal de Justiça e outros tribunais brasileiros, derivados de marcos teóricos e práticos equívocos, não resistem a uma mínima análise meramente lógica e de razoabilidade, para não se firmar que se tratam de teratologia que confronta todos os fundamentos da Constituição de 1988 e mesmo o próprio art. 225, que determina que o meio ambiente seja ecologicamente equilibrado, não que as normas sejam estagnadas e vedadas as mudanças de níveis e padrões de comportamentos em matéria de preservação e proteção do meio ambiente.
Forçoso, assim, concluir, que os Princípios da “Vedação ao Retrocesso” e “Prevalência da Norma Mais Restritiva” são mais dois mitos, ou mesmo aberrações, de nosso direito ambiental – também em outros países.
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Notas:
[1] Confira-se, por todos: DIMOULIS, Dimitri. Neoconstitucionalismo e moralismo jurídico. In: SARMENTO, Daniel. (Org.). Filosofia e Teoria Constitucional. Contemporânea. 1ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, v. 1, p. 213-226; STRECK, Lenio Luiz. Contra o Neoconstitucionalismo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2011, n. 4, Jan-Jun. p. 9-27. E o nosso HUMBERT, Georges Louis Hage. Conceito de Direito, de Norma Jurídica e de Princípios Jurídicos. Salvador: Ed. Dois de Julho, 2015.
[2] A principiologização jurídica é risco para o estado democrático de direito. Desse modo, tal qual Streck, “afastei-me do neoconstitucionalismo porque ele aposta em elementos não democráticos, como a ponderação e a discricionariedade judicial.” STRECK, Lenio Luiz. Contra o Neoconstitucionalismo. Constituição, Economia e Desenvolvimento: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional. Curitiba, 2011, n. 4, Jan-Jun. p. 25.
[3] Confira nosso artigo “30 anos de meio ambiente na Constituição: insegurança jurídica via usurpação judicial e executiva já publicado por esse portal. Link: https://direitoambiental.com/30-anos-de-meio-ambiente-na-constituicao-inseguranca-juridica-via-usurpacao-judicial-e-executiva/
[4] PRIEUR, Michel. Et All. O princípio da proibição de retrocesso ambiental. Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle, Brasília/DF. 2012.
[5] Neste sentido, por todos: MACHADO, Paulo Affonso Leme. Federalismo, amianto e meio ambiente: julgado sobre competência. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 395-458; MARCHESAN, Ana Maria Moreira. As áreas de preservação permanente: avanços e retrocessos desconsiderando a escassez. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 7, n. 33, 2005. AYALA, P.A. O novo paradigma constitucional e a jurisprudência ambiental no Brasil. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 395-458. FERREIRA, Heline Sivini. Competências ambientais. In: CANOTILHO, J.J. Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental brasileiro. 3ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 227-241. FIGUERÓ, Fabiana da Silva; COLAU, Suzane Girondi. Competência legislativa ambiental e aplicação da norma mais restritiva como forma de resolução de conflitos: uma análise crítica. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v. 11, n. 21, p. 255-280, 2014.
[6] Confirma-se, por todos, BIM, Eduardo Fortunato. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015 p. 203-245 e KRELL, Andreas Joachim. Subsídios para uma interpretação moderna da autonomia municipal na área de proteção ambiental. Revista Interesse Público, v.3, n. 10, 2001.
*Georges Louis Hage Humbert – Advogado. Pós-doutor em direito (Coimbra). Doutor e mestre em direito (Puc-Sp). Professor titular da UniJorge (BA). Membro titular do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
Fonte: DireitoAmbiental.com