O totalitarismo das “boas intenções” contra o Estado Democrático de Direito
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Este artigo procura atender a um desafio proposto pelo professor e amigo Jorge Alex Nunes Athias e pela direção do IBRAM – Instituto Brasileiro de Mineração, na pessoa do Rinaldo Cesar Mancin. Ele reproduz conferência proferida por mim no 16o. Congresso Brasileiro de Mineração, em 2015, sobre o princípio da não regressão em direito ambiental.
O texto também constitui uma tentativa de desalojar aqueles que pensam o direito ambiental, da zona de conforto das certezas absolutas e das unanimidades óbvias – ambas absolutamente falaciosas.
O Estado Democrático de Direito
Estado é a sociedade politicamente organizada.
A palavra Estado vem do latim status que significa posição e ordem. O termo transmite idéia de organização e poder, daí o conceito tradicional de Estado como uma forma de sociedade politicamente organizada.
O filósofo e jurista Hans Kelsen, justifica: “O Estado é uma sociedade politicamente organizada porque é uma comunidade constituída por uma ordem coercitiva(…)”
Essa organização (que detém a primazia legal da coerção), é uma conjunção do instinto gregário, da capacidade de reagir racionalmente às circunstâncias da vida e do privilégio de poder abstrair, ser artífice do próprio destino – naturais da raça humana.
O grande pensador gaúcho Darcy Azambuja definiu o Estado como “uma sociedade natural, no sentido de que decorre naturalmente do fato de os homens viverem necessariamente em sociedade e aspirarem naturalmente realizar o bem geral que lhes é próprio, isto é, o bem público. Por isso e para isso a sociedade se organiza em Estado”.
O fato é que, para realização do bem comum, o homem submeteu-se a pactos sociais, por meio dos quais renunciou à parcela de sua capacidade de auto-tutela em prol de um soberano – do latim superãnus, alguém que está sobre todos – traduzido como o interesse público, prevalente. Esta a cláusula de outro contida no conceito rousseauniano de “Contrato Social”, cuja figura do soberano se dilui e evolui com a organização do Estado, e a estabilidade social e segurança jurídica se fundem, fazendo surgir uma autoridade, como todos, igualmente submetida à lei.
A figura do Estado se aperfeiçoa, portanto, por meio de uma arte em constante evolução e tipicamente humana: o Direito.
Estado de Direito, expressão dessa evolução, é forma de organização política da sociedade, onde todos, indistintamente, submetem-se à lei – e o princípio da legalidade confere segurança jurídica às relações sociais e econômicas. Essa estrutura, por sua vez, é aperfeiçoada na medida em que se torna progressivamente inclusiva e democrática.
Estado Democrático de Direito, portanto, é a mais avançada forma de organização política da sociedade, baseada na vontade soberana do povo, no respeito à pluralidade e na valoração dos direitos humanos. Sua estrutura de poder possui caráter representativo e submete-se ao sufrágio universal. Suas regras são elaboradas, legisladas, implementadas e aplicadas por poderes independentes, harmônicos entre si e tutelados por um regime constitucional consolidado.
O Estado Democrático de Direito é regido por princípios consolidados em tratados, internalizados por cartas constitucionais e modulados por regras legais, visando garantir a dignidade, a liberdade, a propriedade, a livre associação e a capacidade de influir, dos cidadãos comuns, nos processos de decisão do Estado moderno.
Princípios e a Normatividade Jurídica
No Estado Democrático de Direito a normatividade jurídica forma a coluna mestra que confere segurança aos cidadãos.
Essa normatividade obedece a princípios expressos pela carta que constitui o Regime de Estado – os chamados princípios constitucionais. Segue, também, outros princípios adotados pelo regramento ordinário, infraconstitucional – os chamados princípios legais (positivados, ou seja, expressos em lei).
Princípios legais possuem força vinculante. Configuram premissa da atividade administrativa e judicante, seja de interpretação, integração ou de aplicação da lei.
Princípios constitucionais, por outro lado, devem ser observados em qualquer situação, sob pena de invalidade do ato jurídico (vício de inconstitucionalidade). Na verdade, eles devem informar a própria atividade legislativa e a atuação de todos os entes estatais.
Princípios Gerais e atividade procedimental
A normatividade jurídica contempla, ainda, principios gerais moralmente consolidados.
Princípios gerais são regras que, embora não positivadas, informam o direito. Eles orientam a criação, integração e aplicação de normas jurídicas – respaldados no ideal de justiça e na resposta moral da sociedade.
Os princípios gerais podem nortear o comportamento dos poderes de Estado. Eles não se confundem com a regra legal positivada, expressa. No entanto, podem traduzir-se por meio dela, ou seja, nortear sua elaboração, compor o cenário que a justifica. Podem, também, influir na interpretação finalística de uma norma legal e nortear exegeticamente sua aplicação.
Orlando Gomes, eterno professor do direito brasileiro, lecionava que os princípios gerais devem informar o juiz quando a lei é omissa, a analogia é falha e os costumes ainda não se adequam à causa.
Na aplicação judicial, portanto, os princípios gerais seriam determinados pelo “espírito da ordem jurídica” e se manifestariam por meio da “valoração da camada dirigente” – da autoridade, como último refúgio do magistrado.
Esse fenômeno, no entanto, é observado na resolução dos conflitos ocorrentes nos processos legislativo, administrativo e judicial – as três formas de procedimento tutelar para elaboração de regras e tomada de decisões no Estado de Direito.
É na atividade procedimental do Estado, portanto, que os princípios gerais são demandados.
Alcance dos Princípios Gerais
No direito internacional, Princípios Gerais são aqueles constantes das declarações expressas nos documentos subscritos pelos Estados Nacionais, consensualmente estatuídas. São, portanto, extraídos consensualmente das declarações, preambulos, tratados e protocolos internacionais – jamais conjecturados ou presumidos.
Sua aplicação, no âmbito da resolução de conflitos internacionais, pode ser reclamada quando não há norma expressa em convenção ou tratado – ainda que por analogia.
No campo do direito interno, princípios gerais são regras de entendimento que encontram-se presentes em todo o sistema, informando-o. Um bom exemplo é a tradicional parêmia do direito romano, segundo a qual “o direito não socorre os que dormem” (dormientibus non succurrit jus).
Essas regras de entendimento não se sobrepõe às regras expressas positivadas – na Constituição e nas leis – mesmo porque dificilmente as contradizem, pois são extraídas do aprendizado contínuo das escolhas e do comportamento humano.
Em termos materiais, princípios constitucionais de alta carga valorativa, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da legalidade e da proporcionalidade, afirmam a justiça e constituem forma de compatibilização com a realidade material.
Legalismo estrito, obviamente não atende á demanda pretendida para a pacificação social. Assim, a lei deve ser utilizada em cotejo com outros valores, traduzidos em princípios, sempre visando a Justiça e a razoabilidade. Isso, no entanto, não autoriza o agente público encarregado da decisão fazer uso do esforço mental como forma de decidir. A legalidade deve prevalecer, balanceada pela justiça e razoabilidade.
Eles, os princípios, constituem, assim, a razão deontológica que orienta a construção e a aplicação da Lei. Portanto, com ela não se confundem, e nem a ela se sobrepõem.
Princípios são deontológicos
DEONTOLOGIA é uma teoria normativa, segundo a qual as escolhas humanas são moralmente necessárias, proibidas ou permitidas – o que deve ser feito – observada a lógica, a jurisdicidade, a política e a economia.
O termo deontologia foi introduzido em 1834, por Jeremy Bentham, para referir-se ao ramo da ética cujo objeto de estudo são os fundamentos do dever e as normas morais – “Teoria do Dever“. Assim, o ápice das ciências deontológicas é a Ética.
“Toda Moral é um sistema de regras e a essência de toda a moralidade consiste no respeito que o indivíduo sente por tais regras”, lecionava o epistemologista Piaget, em sua obra “O juízo moral na criança” (São Paulo, 1977).
Há nesse sentido, um sentido moral, de conforto, essencial para entender a lógica que orienta a extração deontológica de um princípio geral de direito, como fruto do senso natural, de justiça e moral, do comportamento humano, ainda que se vislumbre na extração principiológica a vontade de alterar o próprio comportamento.
“Eu sei o que é moral apenas quando você se sente bem após fazê-lo e o que é imoral é quando você se sente mal após”. (Ernest Hemingway. “Morte à Tarde”, 1932).
Portanto, não se constrói um princípio e, sim, se extraí um princípio – pela observação científica das escolhas morais e da conduta humana.
Princípios não são teleológicos
“Construir” significa um esforço silogístico, teleológico, que não se coaduna com a aferição natural do que se pretende moralmente adequado para orientar a conduta ou a interpretação normativa balizadora de uma decisão de Estado.
Uma “construção” principiológica, revela perigosa malversação de valores – geralmente com resultados desastrosos para a normatividade jurídica do Estado Democrático de Direito.
TELEOLOGIA é o estudo filosófico dos fins, isto é, do propósito, objetivo ou finalidade das ações humanas e do universo.
Termo criado pelo filósofo alemão Christian Wolff (1728), a teleologia é inseparável da teologia (a afirmação de que um ser superior, Deus, realiza seus propósitos no universo).
Embora o termo seja mais recente, a análise teleológica remonta à grécia antiga. Para Platão, qualquer fenômeno físico tem uma explicação teleológica pois, segundo ele, o fenômeno é determinado pelas finalidades impostas pelo demiurgo (Deus-artesão).
Aristóteles por sua vez, desenvolveu a ideia de “causa final” – explicação determinante de todos os fenômenos. Pela ética aristotélica, “Todo ser dotado de razão aspira ao Bem como fim que possa ser justificado pela razão.”
Finalidade, portanto, é entendimento, não é premissa para gerar um princípio como regra de entendimento.
Na lição de Carnelutti, o “o juízo é um prius, o silogismo um posterius. Não se silogisla para julgar e, sim, para demonstrar como se julgou”.
Finalidade teleológica é bem moral objetivado por um princípio já consolidado. Ela é auferida, não estatuída.
Assim, no campo dos princípios gerais, extraídos como regras de entendimento, cuja finalidade moral está inserta na própria conduta comportamental que os originou, e que deverá seguir reproduzida socialmente e por eles orientada, seria um mero esforço mental inversão silogística que justificasse a construção de um novo princípio, visando alterar ou atingir uma finalidade teleológica adrede estatuída por determinado seguimento. Esta finalidade, então, não mais seria auferida e, sim, induzida.
Esse equívoco torna-se mais complexo nos dias de hoje, quando a ideologia, como forma usual de representação social, não é mais vinculada unicamente ao poder constituído, classe ou organização postada no poder central.
Em nossa era dos interesses difusos, posturas ideológicas são adotadas e propagadas por movimentos de todo tipo, da cor ao matiz político. Esse fenômeno degradou a atividade deontológica, confundindo-a com estética. Fez com que o proselitismo substituísse a moral e, com isso, o principiologismo acabou poluído, propiciando o surgimento de recalques doutrinários e ecologismos de toda ordem, travestidos de princípios.
No Brasil, a academia já busca denunciar esse travestismo principiológico. Vitor Vieira Vasconcelos (consultor ALMG) e Paulo Pereira Martins Junior (geólogo – Professor UF Ouro Preto), em alentado artigo, advertem:
“Atualmente, muitos grupos e doutrinas seguem utilizando as explicações teleológicas para oferecer explicações alternativas às explicações contemporâneas denominadas ‘científicas’ (Design inteligente). Correntes espiritualistas-ecológicas procuram conciliar a teleologia conservacionista com aspectos finalistas mais amplos.
É preciso atentar para que as argumentações não partam de concepções confusas e pouco definidas de teleologia, sob pena de resultarem raciocínios falhos e conseqüente desconfiança frente meio acadêmico tradicional.”
Como dizia o grande filósofo Karl Popper: “A tentativa de trazer o céu para a terra invariavelmente produz o inferno”.
Pan-Principiologismo e ativismo judicial
Karl Popper, aliás, já lecionava que o conhecimento é uma aventura em aberto, “o que significa que aquilo que saberemos amanhã é algo que desconhecemos hoje; e esse algo pode mudar as verdades de ontem.”
“A ciência será sempre uma busca, jamais uma descoberta. É uma viagem, nunca uma chegada”, concluía o grande pensador do Século XX.
Ora, no mundo principiologista que se pretende teleológico, ocorre hoje um verdadeiro liberticídio em nome de doutrinas de ocasião.
Há uma onda de “princípios de proibição” – como se o mundo pudesse ser congelado a partir do papel. Há outra onda de “princípios abolicionistas” cujo efeito desastroso é confundir direito de minorias com direito à hegemonia e, com isso, fragilizar instituições consolidadas no seio da sociedade.
Esse principiologismo extermina o princípio da legalidade, causa inseguranças jurídicas de toda ordem, e degrada o Estado de Direito.
De fato, há hoje uma verdadeira fábrica, uma usina proselitista de produção de princípios despidos de qualquer normatividade.
Exemplos, dos mais poéticos aos mais esdrúxulos, não faltam: princípio da felicidade, “princípio” (sic) da confiança no juiz da causa, princípio “da cooperação processual”, “da afetividade”, da “proibição do atalhamento constitucional”, da “pacificação e reconciliação nacional”, da “rotatividade”, do “deduzido e do dedutível”, da “proibição do desvio de poder constituinte”, da “parcelaridade”, da “verticalização das coligações partidárias”, da “possibilidade de anulamento”, “subprincípio da promoção pessoal”, “do estado de coisas inconstitucional”, “do não-retrocesso”…
Enfim, presenciamos no mercado pan-principiológico a formação de uma “bolha especulativa dos princípios – subprime do direito – fábrica de derivados e derivativos . Estado de Natureza Hermenêutico que sustenta ativismos e decisionismos – como se o direito estivesse à disposição de qualquer coisa, como se pudesse o judiciário ser usado como laboratório” – como muito bem disse o procurador de justiça gaúcho Lenio Luiz Streck no seu artigo com o sujestivo título de “Pan-Principiologismo e o Sorriso do Lagarto”.
Aliás, a advertência irônica e irada do brilhante procurador gaúcho nos lembra a definição ácida de Nelson Rodrigues, perfeitamente aplicável aos modernos especuladores pan-principiologistas – refugiados no bolsão do ativismo judicial, no seio do biocentrismo ou na trincheira liberticida dos radicalismos estatocráticos ou abolicionistas:
“Cretino fundamental é aquela pessoa capaz de deturpar o que é óbvio”.
De fato, não há mais espaço para contemporizar com principiologismos de toda ordem. A crítica livre e aberta é a melhor e mais democrática resposta a esse “ativismo judicial” – pelo qual alguns operadores públicos do direito buscam solucionar conflitos, aplicando o que entendem ser bons princípios ou comportamentos ideológicos politicamente corretos, destruindo as bases sobre as quais se consolida o Estado Democrático de Direito.
A postura estatólatra, intrínseca a esse ativismo, faz com que seus operadores busquem o que entendem ser o melhor para o caso, sem debater suas concepções no campo doutrinário com igualdade de armas, e mais profundamente, no bojo da sociedade civil – destinatária direta das decisões. De forma absolutamente cômoda, submetem-se ao esforço mental para construir regras principiológicas, baseadas unilateralmente na sua concepção de mundo.
O ativismo judicial é um paradoxo. Alimenta-se de princípios jurídicos para conferir validade à lei ou desconsiderá-la na tutela da economia, dos direitos fundamentais e do meio ambiente, sempre com resultados funestos. Um tormento para cidadãos, gestores, juristas e autoridades pois, não raro, a “inovação” produzida fragiliza a lei e gera insegurança jurídica, sem efetivamente resolver o conflito.
No campo ambiental, investimentos deixam de ocorrer pelo temor da indefinição. Propriedades perdem função social e econômica. Pessoas perdem o seu ganha-pão e, não raro, o meio ambiente, que se pretendia proteger, degrada-se em meio a imprecisões jurídicas e à incapacidade econômica para bem geri-lo.
A doença da Principiolatria
Como observamos, o ativismo judicial é afetado por uma principiolatria às vezes delirante. E essa principiolatria, em vez de reforçar o império da Lei, a destrói.
A principiolatria contamina o tecido normativo estabelecido no bojo do Estado Democrático de Direito. Por conta do fenômeno, a estrutura normativa é corroída pela aplicação de princípios não positivados – ou seja, não respaldados em tratado, norma legal ou constitucional expressa.
Os efeitos nefastos são vários: petições e decisões judiciais traduzem-se em tratados quilométricos – há casos de votos de ministros em tribunais superiores que superam duzentas laudas (chegando a demandar índice remissivo…). Pareceres e decisões, administrativas e judiciais, perdem-se em construções silogísticas agradáveis, que se traduzem em verdadeira poesia aos olhos de quem lê… com entendimentos metafísicos de fácil assimilação e efeitos materiais desastrosos.
Sempre é bom repetir: princípios constituem a razão deontológica que orienta a construção e a aplicação da Lei. Portanto, com ela não se confundem, e nem a ela se sobrepõem. A própria Corte Internacional de Justiça já decidiu que princípios internacionais, elencados em declarações ou preâmbulos, uma vez não positivados em cláusulas de tratados ou convenções, só se aplicam à resolução de um conflito por analogia, de forma subsidiária, na ausência de disposição expressa – e nesse ponto nos tornamos repetitivos propositadamente, pois, no Brasil, princípios “construídos” silogisticamente, já fundamentam a desobediência à norma legal, por autoridades que deveriam, antes de tudo, zelar pelo cumprimento da Lei.
É o caso sobre o qual iremos nos deter, do chamado Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental.
O Princípio da Proibição de Retrocesso Ambiental
O chamado Princípio de Proibição de Retrocesso enquadra-se nessa febre doutrinária que se confunde com o mais puro proselitismo.
A começar pelos aspectos puramente ecológicos: à guisa de respaldar a manutenção da higidez ambiental, o princípio ignora o fato científico, a física, a biologia, a geografia e, assim, nega o caráter dinâmico do equilíbrio ecossistêmico.
Com efeito, o meio ambiente ecologicamente equilibrado envolve todos os elementos biológicos, econômicos, sociais, climáticos, muitos dos quais refogem ao domínio do direito – e por isso mesmo precisam ser reconhecidos por ele.
Se já é complexo entender equilíbrio numa relação dinâmica, muito mais difícil é aplicar o freio da “proibição de retrocesso” a algo que não se sabe se recua, desborda ou avança…
A certeza principiológica não resiste a três questões:
1- Que meio ambiente é indisponível? E em função do que e de quem ocorre essa indisponibilidade?
2- Sendo qualquer ecossistema, física e biologicamente dinâmico, que bem jurídico em causa nele pode se tornar ‘indisponível’?
3- Se o processo legislativo pode ser desprezado em nome de direitos ambientais adquiridos, que ambiente pretende-se tutelar contrariamente ao ambiente legal que nos mantém a todos – ou seja, o Estado Democrático de Direito?
O problema é de ordem teórica: maus argumentos podem construir más decisões. E isso é algo que deve ser evitado.
A confissão totalitária de Michel Prieur
Um dos maiores especialistas do mundo em Direito Ambiental e Rejeitos Radiativos, presidente do CIDE – Conseil International du Droit de l´Environnement (Centro Internacional de Direito Ambiental), Michel Prieur é professor emérito da Universidade de Limoges, França, e consultor de organizações internacionais. Além de clássicos como “O Direito do Meio Ambiente”, a obra de Michel Prieur inclui estudos de riscos industriais e naturais e gestão urbana, estudos de impacto e proteção da natureza, pesquisa jurídica em meio ambiente.
Em que pese o respeitável histórico de contribuições para o direito ambiental, Michel Prieur é um biocentrista e, como tal, põe toda sua genialidade a serviço da desumanização da norma legal e, ainda que não se aperceba disso, faz uso da racionalidade instrumental.
Da racionalidade instrumental tratou o expoente da Escola de Frankfurt, Max Horkheimer. Em Eclipse da Razão, Horkheimer denuncia desumanização instrumental da razão e o abandono da razão cognitiva.
“A doença da razão está no fato de que ela nasceu da necessidade humana de dominar a natureza”, aponta o filósofo.
Com isso a ideia do homem, isto é, sua humanidade, sua emancipação, seu poder de crítica e de criatividade acham-se ameaçados, porque o desenvolvimento do “sistema” da civilização industrial substituiu os fins pelos meios e transformou a razão em instrumento para atingir fins, dos quais a razão não sabe mais nada.
Em outros termos, segundo Horkheimer, “o pensamento pode servir para qualquer objetivo, bom ou mau. É instrumento de todas as ações da sociedade, mas não deve procurar estabelecer as normas da vida social ou individual, que se supõe serem estabelecidas por outras forças”.
A razão, portanto, não nos diz mais verdades objetivas e universais as quais possamos nos agarrar, mas somente instrumentos para objetivos já estabelecidos.
Assim, traído pela racionalidade instrumental, Michel Prieur e seus seguidores nessa inglória operação de transplante principiológico, trataram de tomar emprestado um princípio positivado da doutrina de vedação do retrocesso social – aplicada expressamente às conquistas no campo dos direitos fundamentais da pessoa humana e dos direitos sociais nas relações de trabalho – reproduzido nas constituições ocidentais, incluso a brasileira – para malversar o seu uso, criando um casuismo principiológico.
A doutrina da proibição do retrocesso social foi ideologicamente construída e refletida jurisprudencialmente na Europa em meados da década de 70, no século passado, quando países como Alemanha, Inglaterra e Portugal foram forçados, pelas circunstâncias da economia em crise, a rever suas políticas de benefícios sociais aos cidadãos. A reação da esquerda europeia partiu da premissa de que “o avanço civilizatório de uma sociedade é linear, contínuo e inexorável”, uma ideia que o jurista portugués, então convertido ao marxismo, J.J. Gomes Canotilho chamou de “otimismo inabalável”.
Ora, como já dito acima, não se transpõe a fronteira do pensamento para encontrar amparo na realidade formulando construções principiológicas a partir de posturas ideológicas pré-definidas. Tanto assim é que o próprio Professor Canotilho, um dos formuladores dessa construção intelectual, hoje formula forte crítica à doutrina.
De fato, a vedação de retrocesso foi transplantada casuísticamente por Prieur, para o direito ambiental, não para garantir que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao desenvolvimento sustentável fossem cristalizados como cláusulas pétreas no campo dos direitos humanos, mas, sim, para impedir o Estado de produzir qualquer norma que viesse a desagradar sua forma peculiar de entendimento do que poderia entender por “avanço ambiental” na legislação…
Vale para esse exercício biocentrista de Prieur e seus seguidores, toda a crítica acima desenvolvida, tamanha a distorção contida no esforço silogístico para transformar sua busca teleológica em causa principiológica – e dane-se o Estado Democrático de Direito…
Deslumbrado com o próprio protagonismo principiológico, confessou o brilhante professor, como num ato falho, todo o esforço mental para introduizir seu recalque liberticida em favor de um biocentrismo reacionário, um verdadeiro sonho totalitário contra a dinâmica do processo democrático no Estado Moderno:
“ Em nome da soberania dos parlamentos, o tempo do direito recusa a ideia de um direito adquirido sobre as leis: ‘o que uma lei pode fazer, outra lei pode desfazer’.
Não estaria aí, na seara ambiental, uma porta aberta ao retrocesso do direito, capaz de prejudicar as gerações presentes e futuras?
O ambiente é uma política-valor que, por seu peso, traduz uma busca incessante de um melhor ser, humano e animal, em nome do progresso permanente da sociedade. Assim, em sendo as políticas ambientais o reflexo da busca de um melhor viver, de um respeito à natureza, elas deveriam vedar todo tipo de regressão.
O objetivo principal do Direito Ambiental é o de contribuir à diminuição da poluição e à preservação da diversidade biológica. Contudo, no momento em que o Direito Ambiental é consagrado por um grande número de constituições como um novo direito humano, ele é paradoxalmente ameaçado em sua essência. Em vista disso, não deveria o Direito Ambiental entrar na categoria das regras jurídicas eternas, irreversíveis e, assim, não revogáveis, em nome do interesse comum da Humanidade? ”
(Texto publicado pela Comissão de Meio Ambiente do Senado Federal)
Observe o atento leitor, o Digno professor não se limitou a conferir irrevogabilidade ao direito de todos ao equilíbrio ambiental. Ele pretende congelar o Direito Ambiental positivado, tal como hoje se encontra.
Faltou apenas – se é que não se encontra subentendido, apontar que esse macro-reacionarismo em forma de princípio irá se submeter à iluminação dele, o doutrinador – guardião-aiatolá encarregado (sabe-se lá por quem…talvez pelos seus seguidores incrustrados nos estamentos burocráticos no Brasil e alhures) de subentender o que seja a “ameaça à essência” desse direito.
Poucas vezes se teve a chance de vislumbrar, dito de próprio punho, a verve totalitária e liberticida de um doutrinador biocentrista, como no texto acima…
A Vedação de Retrocesso Ambiental e a Assembleia Nacional da França
Em Sessão de 15 de janeiro de 2015, o parlamento francês travou interessante debate a respeito de algumas proposições ambientais.
O Partido Verde pretendeu estabelecer redução de exigências e imposição de um prazo de dois meses para o licenciamento ambiental de empreendimentos de energia limpa (eólica) na França.
Por óbvio, as proposições foram rejeitadas por incompatibilidade com as normas em vigor para o licenciamento ambiental e por não guardar proporção com os prazos de avaliação de impactos.
Em meio aos debates, surge a seguinte sucessão de pronunciamentos:
“Christophe Castaner – Relator: ‘o senhor Baupin, realmente parece estar satisfeito com a referência feita à Carta dos Direitos do Meio Ambiente, e quando você diz que não quer incluir o princípio da não-regressão em cada linha, tratou de apresentar seis alterações idênticas. Ora, o princípio da não-regressão é um CONCEITO complexo, que não é consenso. Consequentemente, a sua introdução no texto implica um risco jurídico – o que é, não tenho nenhuma dúvida, um argumento que não pode deixar de ser sensível a você’.
Presidente François Brottes – ‘Parece-me que não podemos regredir um direito sem alterar a lei e como é lei já estabelecida, não pode haver regressão’.
Arnaud Leroy – ‘A Lei europeia que supervisiona a legislação nacional já prevê ademais, alguma segurança’.”
Com efeito, desume-se desse atualíssimo debate, que não há consenso quanto ao conceito sequer no país do professor Prieur…
O que diz a Corte de Justiça Européia
Em recente acórdão, a Corte de Justiça Européia abordou a regra de vedação de retrocesso ambiental, de forma transversal, justamente para reduzí-la a uma regra de entendimento, excepcional, secundária e subsidiária – meramente auxiliar. Senão vejamos:
Acórdão da Corte Européia – 1ª. Câmara de 15 de setembro de 2011, interessado Franz Mucksch OHG C-53/10
Diretiva 96/82/CE – 1996 Instalações industriais Seveso
Urbanismo (manutenção de distância apropriada entre atividades perigosas e locais frequentados pelo público – Hessen – loja a 250 m distante da MERK – Vila de Darmstadt
“O tribunal, logicamente, observa que, no presente caso, é a autoridade local a responsável pela avaliação do dossiê, e que deve avaliar se é possível ou não o projeto da loja ser realizado no perímetro de segurança .
Este requisito deve ser apreciado a longo prazo pela autoridade responsável pela avaliação do arquivo.
Reserva-se todavia, o Tribunal, validar a interpretação de que deve-se manter a longo prazo as distâncias adequadas, e mantê-las quando as distâncias já são observadas (n.º 47 do acórdão). Mas o Tribunal não considera que esta regra de não-regressão é uma regra obrigatória (ponto 48): para remover a aparente contradição entre estes dois pontos, é provável que a regra geral será a não-regressão, mas esta regra é excepcional pois sua aplicação mecânica a tornaria uma regra absurda.”
Assim, para tristeza dos biocentristas, o judiciário europeu não engoliu a não regressão sequer como um princípio, quanto mais como regra de aplicação prevalente – e observe-se que o parlamento europeu já ousou, após forte lobby ambientalista, encaminhar moção de inserção do princípio na declaração da ONU a ser editada na Rio +20 – moção devidamente rechaçada, por não obter consenso…
O que pensa a ONU – PNUMA
Antes mesmo da Rio +20, o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, já havia abordado a questão na reunião preparatória de Buenos Aires, Argentina, chegando à seguinte conclusão:
“No contexto da Conferência de Estocolmo de 1972 e da Cimeira do Rio de 1992, vários princípios do direito ambiental têm sido desenvolvidos. No entanto, eles não são exaustivos, e podem ser complementados e reforçados por princípios complementares.
Um exemplo de princípio que expande as fronteiras da legislação ambiental é o princípio de não regressão.
Mais comum no domínio do direito dos direitos humanos, este princípio é entendido como exigência que as normas que já foram adotadas pelos Estados não podem ser revistas de forma a “andar para trás” no padrão anterior de proteção.
Contudo, dado o poder soberano dos parlamentos, como legisladores, e a noção implícita que normas geralmente podem ser alteradas ou anuladas em qualquer momento posterior, isso levanta a questão de como a existência de normas irreversíveis podem ser justificadas.
Os defensores argumentam que o propósito do direito ambiental implica a proibição de medidas regressivas. Eles apontam para o fato de que a legislação ambiental é regida por princípios fundamentais, tais como a prevenção, a pública participação, a equidade geracional e a precaução – não se destina apenas a regular, mas também a melhorar constantemente o meio.
O princípio da não-regressão já é reflectido, em certa medida, na legislação ambiental, como no caso de normas multilaterais em acordos ambientais, que proíbem as partes de celebrar outros acordos com níveis mais baixos de proteção. No caso de regras constitucionais, tais como o compromisso da constituição de Butão para manter um mínimo de sessenta por cento da área total do Butão sob a floresta.Do ponto de vista profissional do direito, isto levanta várias questões, como por exemplo: é o princípio da não regressão um conceito justificado e viável? Como e por quem, devem os limiares e critérios de regressão e não-regressão ser determinados? Poderiam tribunais nacionais estabelecer o princípio como uma norma permanente da legislação ambiental, invocando a relação e o objetivo da legislação ambiental para melhorar constantemente o ambiente, ou fazer os contornos desta necessidade serem concretizados em mais detalhes, em primeiro lugar?”
O questionamento das Nações Unidas é fortíssimo e revelador: “Como e por quem, devem os limiares e critérios de regressão e não-regressão ser determinados?”
A questão denota com muita clareza o viez absolutamente arbitrário e autoritário, encetado no esforço de construção principiológico do Professor Prieur e seus seguidores lá, aqui e alhures…
O que pensam os Norte-Americanos a respeito da não-regressão ambiental
Terry Anderson, diretor do respeitável centro de estudos norte americano, sobre propriedade, mercados e meio ambiente, às vésperas da Conferência da ONU – Rio+20, em 2012, teceu considerações que refletem toda a dúvida já reproduzida acima, sobre a legitimidade, conveniência e moralidade do princípio da não regressão no campo do direito ambiental. Vejamos:
Em 29 de setembro(2011), os parlamentares europeus adotaram uma resolução apelando à Conferência das Nações Unidas do próximo mês de Junho, sobre o Desenvolvimento Sustentável, no Rio de Janeiro, exigir de todas as nações adesão ao ‘princípio de não regressão’. Em poucas palavras, a reivindicação é que o direito internacional proíba nações de alterar ou revogar leis destinadas a proteger o meio ambiente.
Não há nenhum mistério sobre o porquê o princípio da não-regressão é tão atraente para muitos ambientalistas. Seria o mesmo que isentar os regulamentos ambientais existentes, de avaliação, reforma e revogação – mesmo que os custos se demonstrem maiores que os alegados benefícios.
O mistério é por que um parlamento de um continente em crise econômica concordaria com isso.
Ambientalistas norte-americanos também insistem em políticas com enormes custos economicos sem benefícios ambientais, como evidenciado pelos esforços para impedir o oleoduto Keystone. Devemos seguir as políticas econômicas fracassadas da Europa e o seu disparate ambiental, também?
O PERC- The Property and Environment Research Center -é o primeiro e maior instituto dos EUA dedicado a melhorar a qualidade do ambiente através de direitos de propriedade e dentro da economia de mercado. Fundada há quarenta anos em Bozeman, Montana, o PERC começou como um “think tank”, onde estudiosos documentaram a excessiva regulamentação do governo e apontaram como a burocracia, muitas vezes, levou à degradação ambiental.
A decisão da Suprema Corte Constitucional de Madagascar
(O limite do principiologismo é o próprio Estado de Direito)
A Suprema Corte Constitucional de Madagascar, no último mês de junho de 2015, analisando um conflito de normas da própria constituição, ocorrente naquele país, descartou o impeachment do presidente Hery Rajaonarimampianina, considerando a manobra do Parlamento da ilha “infundada”. Com isso a Côrte evitou uma grave crise política.
No entanto, o pronunciamento brilhante da Côrte foi além – analisou o chamado princípio de não-regressão – não o pretendido “sonhaticamente” por Prieur e seus seguidores mas, sim, o verdadeiro princípio de não-regressão, relacionado às garantias fundamentais da pessoa humana e do respeito aos fundamentos do regime democrático – cotejando-o com os demais princípios gerais que devem nortear a aplicação das normas constitucionais. A conclusão não poderia ser outra: a “não regressão” não pode interferir na razão de ser do Estado de Direito, dos Poderes da República e da integridade territorial.
Vale a pena acompanhar o raciocínio da Côrte africana (alíás, profundamente enraizada com o direito francês):
“(…)
Considerando que o regime constitucional da Quarta República, com base no princípio da “separação e (é) o equilíbrio de poderes exercidos através de processos democráticos”, como afirma no preâmbulo da Constituição; que a natureza intangível do princípio da separação de poderes é confirmada pelas disposições do artigo 163 parágrafo 1 da Constituição que enfatizam que, como a forma republicana de governo, o princípio da integridade territorial da autonomia das autoridades regionais e locais, a duração eo número do mandato do Presidente da República, “o princípio da separação de poderes (pode) ser sujeito a revisão (Constituição)”; assim o princípio da separação de poderes é “o fundamento da ordem republicana democrática”, pois representa “um princípio fundamental da ordem constitucional”;
Considerando que, como garantia da legalidade constitucional, este órgão jurisdicional observa que ele tem, e pretende assumir, a obrigação mínima para assegurar o respeito pelos valores constitucionais da não-regressão e de “não retorno”, no acervo jurídico do Estado de direito democrático. Porém, como tal, não pode tolerar que esta atitude envolva confusão de poderes, que além de sua inconstitucionalidade óbvia, representará regressão na consolidação e conclusão do Estado de Direito.
(…)”
(Décision n°24-HCC/D3 du 12 juin 2015 relative à la résolution de mise en accusation du Président de la République Hery RAJAONARIMAMPIANINA)
Sem dúvida, em nosso país, muita autoridade que deveria zelar pelo Estado de Direito e pela legalidade, também deveria evitar propalar “princípios de proibição”, sem atentar para as contradições neles intrínsecas.
A batalha principiológica contra a Lei Florestal
Essa orientação cabal deveria ser aplicada para o caso específico do novo Código Florestal, costurado pelo parlamento visando estabelecer regras mais claras para a política florestal em nosso território.
O diploma legal seguiu o regular processo legislativo, que é a razão de ser de nossa democracia pluralista, assimétrica e poli cultural.
Sancionado pela Presidente da República, tornou-se lei – a Lei Federal 12.651 de maio de 2012.
Em janeiro de 2013, entretanto, a Procuradoria Geral da República (PGR) ajuizou três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs 4901, 4902 e 4903), com pedidos de liminar, no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando dispositivos do novo Código Florestal brasileiro (Lei 12.651/12) relacionados às áreas de preservação permanente, à redução da reserva legal e também à anistia para quem promove degradação ambiental. Tais ações foram distribuídas aos Ministros Luiz Fux (ADIn 4901), Rosa Weber (ADIn 4902) e Gilmar Mendes (ADIn 4903), respectivamente.
Nas ações, a PGR pediu liminarmente a suspensão da eficácia dos dispositivos questionados até o julgamento do mérito da questão. Também foi pedida a adoção do chamado “rito abreviado”, o que permite o julgamento das liminares diretamente pelo plenário do STF em razão da relevância da matéria.
Quase três anos depois, tanto o pedido de liminar, quanto as próprias ações, continuam aguardando julgamento. Dormem nos escaninhos do Supremo Tribunal, justamente por representarem enorme fator de insegurança jurídica e desestabilização da autonomia dos poderes no Estado de Direito.
O desastre da judicialização ocorre quando todo o esforço de agências ambientais e setores econômicos é justamente a regularização fundiária coligada ao registro de áreas de preservação – como manda o texto questionado pelo Ministério Público.
De fato, a economia agrícola – que vislumbrou alguma luz no fim do túnel, com a edição de novo estatuto florestal, observa o horizonte nublado pelas nuvens tempestuosas da judicialização e corre o risco de se perder no labirinto da principiolatria, não encontrar saída no beco do biocentrismo e sucumbir afogada no mar das indefinições jurídico-ambientais.
A articulada desobediência à nova lei – e isso é o pior – não advém de infratores recalcitrantes. Ela vem justamente dos operadores do direito que deveriam aplicá-la, dos agentes que deveriam zelar pela legalidade. A base para a desobediência articulada está, justamente, no malfadado Princípio da Vedação ao Retrocesso Ambiental.
Despiciendo dizer mais sobre a sociopatia representada por tamanho ativismo oficial, baseado em uma doutrina mais que questionável, em todos os sentidos, seja no filosófico, seja no científico, seja mesmo no campo político e de Estado.
O que se espera é que a crítica se reproduza até fazer os pan-principiologistas recalcitrantes corarem de vergonha, ante os estragos que produzem com a insistência em laborarem contra o Estado Democrático de Direito, ainda que acreditando pretenderem “o melhor” para o país e o “meio ambiente” (seja lá o que devam entender como tal…).
Enquanto isso não ocorre, perde o Estado de Direito, perde o Desenvolvimento Sustentável.
A proporcionalidade no trato dos conflitos atuais
O princípio da proporcionalidade, largamente adotado pelo direito alemão do pós-guerra, preceitua que nenhuma garantia constitucional goza de valor supremo e absoluto, de modo a aniquilar outra garantia de valor e grau equivalente.
Esse princípio, embora não se encontre expresso na Constituição Federal brasileira, reflete-se textualmente nos dispositivos que instituem garantias e direitos fundamentais, expressos na Carta.
Não por outro motivo, o princípio da proporcionalidade é critério utilizado de forma estrita pelo STF, para solucionar conflitos entre direitos fundamentais, comparando valores e interesses que estão envolvidos no caso posto sob análise judicial.
No campo da resolução de conflitos assimétricos, difusos, onde o principiologismo passa suplantar a legalidade, o critério da proporcionalidade torna-se meio essencial para que o Estado possa identificar, diferenciar, legitimar, avaliar, aferir, sopesar e tutelar atores e interesses em causa.
É o que se espera como forma de barrar essa progressão, esse empoderamento da subjetividade como forma de proibir o respeito à normatividade do Estado de Direito.
Conclusão
A normatividade jurídica constitui a coluna mestra do Estado Democrático de Direito e obedece a princípios constitucionais e legais expressos e devidamente positivados.
Os chamados princípios gerais são regras de entendimento que informam o direito. Porém não se sobrepõem à normas principiológicas expressas em lei.
Princípios constituem uma razão deontológica. Portanto, não se constrói um princípio e, sim, se extraí um princípio – pela observação científica das escolhas morais e da conduta humana.
Em nossa era dos interesses difusos, posturas ideológicas são adotadas e propagadas por movimentos de todo tipo. Esse fenômeno degradou a atividade deontológica, confundindo-a com a busca por uma estética teleologicamente idealizada. Como isso, o proselitismo substituí a moral e polui o principiologismo, propiciando o surgimento de recalques doutrinários e ecologismos de toda ordem, travestidos de princípios.
No mundo principiologista, que se pretende teleológico, ocorre verdadeiro liberticídio em nome de doutrinas de ocasião. Há uma onda de “princípios de proibição” – como se o mundo pudesse ser congelado a partir do papel. Há outra onda de “princípios abolicionistas” cujo efeito desastroso é confundir direito de minorias com direito à hegemonia e, com isso, fragilizar instituições consolidadas no seio da sociedade. Esse principiologismo extermina o princípio da legalidade, causa inseguranças jurídicas de toda ordem, e degrada o Estado de Direito.
O chamado Princípio de Proibição de Retrocesso enquadra-se nessa febre doutrinária que se confunde com o mais puro proselitismo.
Traídos pela racionalidade instrumental, os defensores da vedação de retrocesso ambiental operaram um transplante principiológico – trataram de tomar emprestado o princípio positivado de vedação de retrocesso – aplicável expressamente às conquistas no campo dos direitos fundamentais da pessoa humana e dos direitos sociais nas relações de trabalho, e reproduzido nas constituições ocidentais, incluso a brasileira – para malversar o seu uso, criando um casuismo principiológico.
De fato, o pretendido princípio de vedação de retrocesso ambiental não se limita a conferir irrevogabilidade ao direito de todos ao equilíbrio ambiental. Ele pretende congelar o Direito Ambiental positivado, tal como hoje se encontra.
Trata-se de um macro-reacionarismo em forma de princípio, que reserva à iluminação subjetiva de alguma autoridade – um guardião-aiatolá encarregado (sabe-se lá por quem…talvez pelos seguidores biocentristas incrustrados nos estamentos burocráticos do ministério público ou judiciário), de subentender o que seja “ameaça à essência” do que se considera uma “conquista do direito ambiental”, para, então, decidir aplicar a “vedação de retrocesso”, impedindo que um dispositivo venha a ser alterado ou reescrito pelos poderes constitucionais da república – principalmente o Poder Legislativo.
A proibição de retrocesso, portanto, é uma espécie de sociopatia típica do chamado ativismo oficial, baseado em uma doutrina mais que questionável, em todos os sentidos, seja no filosófico, seja no científico, seja mesmo no campo político e de Estado.
Essa sociopatia travestida de princípio é, portanto, atentatória ao Estado Democrático de Direito.
obs: artigo originalmente publicado no blog The Eagle View (www.theeagleview.com.br)
Fontes:
PNUMA – UNEP – World Congress on Justice, Governance and Law for Environmental Sustainability – 2nd Preparatory Meeting, 23 – 24 April 2012
Buenos Aires, Argentina – Issue Brief No. 3
POPPER, Karl. Autobiografia intelectual. São Paulo: Cultrix, 1977
Acórdão da Corte Européia – 1ª. Câmara de 15 de setembro de 2011, interessado Franz Mucksch OHG C-53/10
Horkheimer, Max. Eclipse da Razão – São Paulo: Centauro, 7ª Ed. 2007
http://www.hcc.gov.mg/avis/avis-n02-hccav-du-13-juin-2015-sur-lapplication-simultanee-des-articles-103-et-131-de-la-constitution/
http://www.theeagleview.com.br/2014/02/principio-demais-lei-de-menos.html?q=codigo+florestal
http://www.theeagleview.com.br/2013/12/morte-ao-biocentrismo-fascista-ii-o.html?q=codigo+florestal
http://www.theeagleview.com.br/2013/11/por-um-novo-codigo-florestal-justo.html?q=codigo+florestal
http://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/242559
http://www.perc.org/blog/principle-non-regression-environmental-laws-cant-be-repealed#sthash.FGaglSFK.dpuf
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=228842
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2011/09/frase-de-sempre-karl-popper.html#sthash.Ez9xg4CN.dpuf
http://www.seer.furg.br/ambeduc/article/view/1676
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal, do Mural Eletrônico DAZIBAO e responsável pelo blog The Eagle View.
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