Religiões podem ser decisivas para a defesa do meio ambiente. Especialistas explicam como diferentes matrizes se relacionam com a pauta climática
Por Micael Olegário
Sinais do apocalipse e do final dos tempos ou consequências ainda reversíveis da ação humana no planeta? Os eventos extremos estão cada vez mais frequentes e intensos, o que leva especialistas, inclusive, a fazerem alertas de um possível colapso ambiental de grandes proporções. Mas, afinal de contas, como interpretar os efeitos e as causas das mudanças climáticas em relação à perspectiva religiosa e espiritual da vida? Como as diferentes religiões ou sistemas de crenças abordam a degradação ambiental e a crise climática? É possível estabelecer um diálogo entre religião e clima que colabore para diminuir a desinformação e ansiedade climática?
Na opinião do sociólogo e pesquisador do tema Frederico Salmi, inserir a questão religiosa nos debates sobre o futuro do planeta não somente é possível, como é algo crucial para transformar a forma como as pessoas enxergam o meio ambiente. “Quando a gente vai falar de recursos da natureza, os termos importam. Então, é recurso da natureza eu chamar de água, mas os povos indígenas e algumas tradições africanas vão chamar de uma entidade viva”, explica o pesquisador do programa de pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e membro do grupo Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade (Temas/UFRGS).
Escritor, professor de história e babalaô no culto de Ifá, Luiz Antônio Simas explica que na visão das religiões afro-brasileiras, criadas no Brasil a partir de referências africanas – como o candomblé – e nas religiosidades indígenas, a natureza é vista como o próprio sagrado. “Você sacraliza a sua relação com o rio, com a folha, com a árvore, você sacraliza a sua relação com o mar, com o vento, sacraliza a sua relação, portanto, com o meio ambiente, com aquilo que nos cerca”, descreve Simas, que é neto da Mãe Deda, dona Ribeira Silva Rocha, iniciada em uma casa de santo vinculada à tradição do Xangô pernambucano.
A partir de suas vivências em terreiros e com os sistemas de organização do mundo afro-brasileiros, como o escritor define, Simas explica que os ritos destas crenças dependem da preservação ambiental: “Eu costumo dizer que essas religiosidades, esses sistemas de organização do mundo, são naturalmente vinculados ao respeito à natureza, ao ambiente, àquilo que nos cerca, porque quando você destrói um rio, você a rigor está dissipando a energia do Orixá, está dissipando a energia do encantado”.
Nascido e criado na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, Marx Reis sempre teve sua trajetória atravessada por questões sociais, o que o levou a entrar para a ordem católica dos frades franciscanos. Atualmente, Frei Marx participa do Sefras, uma Ação Social Franciscana que atua no combate à fome e na defesa dos direitos humanos de comunidades vulneráveis. Durante suas experiências junto a essas comunidades, Marx percebeu diversas vezes a ligação entre as questões sociais e ambientais. Segundo ele, a interpretação feita pelas religiões cristãs da ideia de dominação do homem sobre a natureza é uma das razões para a forma predatória como a humanidade age em relação ao meio ambiente. “Essa dificuldade de pensar todo esse universo vai fazer com que a gente contribua no pensamento ocidental, com uma ideia de domínio sobre todas as criaturas”, afirma o frei.
A atuação dos franciscanos é inspirada na figura de São Francisco de Assis, frade que viveu na Itália no século XII, e que ficou conhecido pela defesa dos animais e pela visão diferente com relação à natureza. “São Francisco inaugura uma visão nova, dizendo que toda vez que a gente diminui a grandeza de todas as vidas, é como se tivesse sequestrado o louvor a Deus”, pontua Marx.
Nos últimos anos, a questão ambiental passou a ser discutida com maior ênfase por diferentes setores da Igreja Católica, principalmente, depois do lançamento da encíclica Laudato Si’ pelo Papa Francisco, uma série de textos e orientações sobre consumismo e desenvolvimento sustentável. “O Papa Francisco e, também nós franciscanos, começamos a dizer o seguinte: ou a gente muda de vida ou o sangue dos mais vulneráveis será nossa culpa, porque quem vai sofrer e quem mais sofre são os mais pobres. São os ribeirinhos que não têm para onde recorrer, são os indígenas que vão tomar água envenenada, são as mulheres de favela que vão ver suas casas sendo derrubadas sobre suas cabeças”.
A questão do fim do mundo ou o fim da humanidade
Segundo Frederico Salmi, as narrativas apocalípticas sempre estiveram presentes nas religiões “adâmicas” (com origem a partir da figura de Adão), como o cristianismo, o judaísmo e o islamismo. Por outro lado, existem críticas a essa visão, feitas principalmente a partir dos povos originários e das religiões afro-brasileiras. Frederico Salmi cita como exemplo as obras “Ideais para Adiar o Fim do Mundo” de Ailton Krenak e “A Queda do Céu” de Davi Kopenawa. “Quando o céu está caindo, não deixa de ser uma referência direta a esse apocalipse, que é o fim do mundo, quando o céu vai cair. Então, aí você vê a fusão nessa narrativa religiosa, espiritualizada, de outras comunidades”.
O final do mundo, nesse caso, representaria a extinção da espécie humana, mas não necessariamente de todas as formas de vida no planeta. “Tem uma lógica muito bonita dos povos indígenas: o Krenak usa isso, que somos comedores de montanhas. Porque a gente, como a gente não enxerga a montanha como uma entidade viva, supra, espiritualizada, eu vou lá e posso comer, porque é só uma coisa, para eu degustar”, comenta Frederico Salmi.
Entre os efeitos da disseminação da crise climática e das narrativas apocalípticas, o professor da UFRGS menciona a ansiedade e a depressão climática, o que, de acordo com ele, leva a um estado de congelamento. “Já que o mundo vai acabar, então, acabou a minha própria vida, enquanto sujeito no mundo”.
A partir de um outro lugar, Luiz Antônio Simas contextualiza o entendimento da destruição da vida a partir das crenças afro-brasileiras. “Elas trabalham com a ideia de que se nós não cuidarmos do sagrado, a vida pode se extinguir. Isso é uma questão de responsabilidade. Então, a gente tem que dar uma resposta responsável a esse tipo de coisa”. Segundo o escritor, essa perspectiva leva a uma atuação mais ativa na defesa da natureza/sagrado e torna essas religiões visceralmente ecológicas. “O humano é que vai ser expelido desse ecossistema, por conta, em larga medida, de tudo que cometeu. Mas o mundo continua”, complementa Simas.
Fé no Clima
Uma das questões levantadas por Frederico Salmi é como as religiões podem ajudar a combater a desinformação climática. “Como eles podem ajudar a ter informação científica qualificada para uma ampla parcela da sociedade, nos seus diferentes nichos religiosos?”. Sobre isso, o professor cita como exemplo positivo do diálogo entre religião e clima, a iniciativa “Fé no Clima”. “A religião não é neutra, ela tem uma posição política no mundo, e na questão climática, agora ela começa a se posicionar de maneira direta”, afirma Salmi.
Criado pelo Instituto de Estudos da Religião (Iser), o projeto reúne pessoas de diferentes religiões, cientistas e representantes dos povos originários em prol da defesa do meio ambiente e da justiça climática. “Ela é muito benéfica, porque ela busca juntar os diferentes para discutir uma questão de maneira qualificada. Todo mundo no mesmo espaço, pautando como é que a gente vai evitar o fim do mundo”, comenta o sociólogo da UFRGS.
De acordo com o pesquisador, esses diálogos têm o potencial de estimular a troca de conhecimentos e visões de mundo, principalmente a partir dos saberes e tradições dos povos originários e afro-brasileiros. “Se eu entender que o rio é um ser vivo, na visão da matriz africana e dos indígenas no Brasil, muda a minha relação com o outro e com o mundo”. Como resultados, Frederico Salmi cita a possibilidade de buscar direitos para a natureza. “Por isso que alguns países na América Latina já colocaram na sua Constituição, estou falando de Equador, Colômbia e Bolívia, reconhecendo os direitos da natureza. Isso é religioso, é uma entrada pelo âmbito religioso, que faz diferença direta na vida das pessoas”, explica.
Luiz Antônio Simas defende a necessidade de reconstrução da relação do ser humano com o mundo, algo que, segundo ele, deveria ser ensinado nas escolas, mas não na ideia de buscar a conversão das pessoas para as religiosidades afro-brasileiras e indígenas, e sim como alternativa para evitar a destruição da vida humana. “Eu acho que a gente precisa, eu vou falar uma coisa aqui, que muita gente já falou, muito preto velho já falou, muito caboclo já falou, mas a gente precisa se desumanizar”. Simas explica que esse desumanizar está ligado a ideia de que a existência humana só faz sentido se integrada ao meio ambiente.
“Então, a rigor é você derrubar essa casa e usar a construção de uma outra ideia de casa, outra ideia de moradia. É ousar uma outra relação com o planeta, é ousar uma outra relação com os seres e com as comunidades, porque senão, a gente vai assistir mais uma destruição, não da Terra, mas mais uma destruição dessa forma de vida que a gente tem”, atesta o escritor ao lembrar que em diversos momentos da história do planeta, outras extinções em massa já aconteceram.
Pautar a defesa da vida no planeta a partir da religião
Marx Reis relaciona a religiosidade com as questões culturais que fazem parte da sociedade. De acordo com o frei, mesmo que uma pessoa não pratique uma religião, diferentes aspectos da sua vida vão ter relação com as crenças predominantes na sociedade, exemplo disso são as celebrações e festas realizadas em datas como o Dia de Iemanjá e o dia de Nossa Senhora Aparecida. “Todas elas, a cristã, a judaica, a islâmica e as de matriz africana, todas têm uma responsabilidade, porque aglomeram sujeitos que constroem tecidos sociais”, explica Marx, para quem as religiões precisam assumir compromissos com a defesa da vida e a justiça ambiental.
“É justo nós pegarmos um pedaço de madeira, derrubar e botar o rosto de Nossa Senhora, acender vela e acabar com a Amazônia pela exploração dos altares, das imagens, das catedrais? Não, não é justo”. Na visão do frade franciscano, as religiões possuem poder e influência inclusive em debates políticos, como foi durante as eleições presidenciais brasileiras no confronto entre Lula e Bolsonaro, com direito a participação de um suposto padre em um debate eleitoral.
Frederico Salmi vai na mesma direção de pensamento, o sociólogo aponta que para existir uma mudança real na sociedade, as religiões precisam assumir seu papel nas discussões políticas, como um caminho para pautar políticas climáticas em contraponto ao modelo neoliberal e extrativista. “Não dá para não discutir crise climática sem discutir a premissa, por exemplo, da liberdade absoluta. A liberdade absoluta é um engodo para garantir a manutenção do capitalismo. Então, se a religião consegue pautar isso, no sentido de, vamos discutir liberdade religiosa como respeito à visão do outro, desde que essa visão do outro, essa liberdade, não permita que ele me destrua”.
*Micael Olegário – Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Micael Olegário é repórter e editor-chefe do Pampa News: webtelejornal da Unipampa e redator da Rádio São Luiz. Foi bolsista da Assessoria de Comunicação Social da Unipampa.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal,12/12/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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