Até onde é possível permitir que o direito seja instrumentalizado pela canalhice?
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
No lodaçal da política brasileira, a ética já sucumbiu.
A morte da ética atinge a Administração da Justiça e conspurca a advocacia.
Este artigo aborda a deformação sofrida pelos operadores da justiça, cujos efeitos afetam a estabilidade e vigência do próprio Estado de Direito no Brasil.
Chicaneiros e canalhas
Desde sempre há profissionais do direito que detém posturas canalhas e sarcásticas. Arrogantes responsáveis por estimular profunda distorção de valores na justiça e na advocacia. No Brasil, entretanto, a falha moral parece hoje constituir requisito.
A instrumentalização nociva de princípios caros ao Direito, sujeita a norma jurídica a interpretações manipuladas, que protegem poderosos ou projetam ativistas. Isso ocorre na exata proporção da lassidão moral das Instituições.
Deontologicamente, há certa tolerância no mundo jurídico para com a chicana – quando resulta do desespero ou visa “ganhar tempo” na busca de elementos que realmente importem ao deslinde dos fatos.
No entanto, a chicana torna-se molecagem intolerável quando desmoraliza instituições, usa má-fé, garante manobra capciosa e utiliza trapaça ou tramoia para obstar o efetivo cumprimento da lei ou obstruir a justiça.
Essa molecagem parece estar sendo deliberadamente inoculada na cultura judiciária nacional, elevando a chicana à categoria de jurisprudência.
A Pirâmide da Arrogância
Essa degradação não é só moral, ela tem origem no fenômeno social que denomino “pirâmide da arrogância” – estrutura comportamental cuja base exclui quem pensa diferente e o vértice só admite ouvir quem reproduz o pensamento que já está ali sedimentado.
Esse comportamento estrutural reproduz mediocridades e provoca sucessão de desastres.
A pirâmide nos transforma em párias nos processos globais que deveríamos protagonizar.
A síndrome da arrogância afeta a Administração da Justiça. Ela gera arbitrariedade recalcitrante e provoca a ascenção sinérgica de operadores escolhidos justamente pela falta de méritos.
A desonestidade intelectual é incrementada pelo comodismo burocrático, paradoxalmente estimulado pelo ativismo idiota e comprometedor. Ocasiona estragos profundos no equilíbrio de poderes da república. Esfarela a credibilidade da Justiça.
Os poucos que hoje se empenham em romper com o círculo vicioso do populismo e da corrupção, são ovacionados pela população, odiados pelos canalhas e reprimidos pelo establishment.
A profunda distorção de valores expõe o escárnio, que transcende militâncias, destrói currículos e mancha biografias. A opinião pública passa a ser informada que o cinismo é rentável e a podridão é socialmente aceitável.
A jurisprudência da sordidez
A má fé é teleológica. Por isso mesmo contraria a deontologia profissional e distorce todos os princípios – jurídicos e morais.
A cegueira da Justiça, nesse ambiente, toma um sentido sórdido.
A distorção moral avança pela cegueira deliberada e revela-se na promoção do ódio, no estímulo à desobediência civil e no desrespeito às instituições. Também encontra-se embutida nos pronunciamentos ameaçadores, plenos de certeza e ditos sob o argumento pobre da autoridade.
Cria-se a máquina de insultos, que substitui a cordialidade por manifestações desairosas a colegas que exercem o direito constitucional e moral de discordar ou se indignar. Destrói o contraditório e estimula a arbitrariedade. Essa distorção se cristaliza nas manobras administrativas, legislações fisiológicas, condenações e absolvições estapafúrdias.
A confusão entre engajamento ideológico e interesse econômico derrete e amolece as colunas mestras do ministério público, destrói e corrói a magistratura, degrada a advocacia pública e a privada, corrompe instituições de controle de contas, fiscalização e atividades policiais.
Nesse terreno contaminado, a construção do direito se perde na sordidez jurisprudencial. Desta forma, a sordidez corrói o direito e passa dominar a estrutura do Estado.
A raiz histórica da mediocridade atual
Essa sordidez tem propósitos, base e método.
O processo de degradação moral no meio jurídico está na origem dos escândalos de corrupção lulopetistas, iniciados na escalada eleitoral hegemonista do partido esquerdista, nas eleições municipais de 1996, e expostos na sua inteireza com a assunção do partido e seus aliados ao governo federal, no século XXI.
A exacerbada defesa dos envolvidos por militantes partidários, ante o natural descompromisso de todos para com a “estrutura de Estado burguês”, acarretou o aparelhamento e partidarização das instituições da jusburocracia. O processo terminou coonestado pelo populismo de direita, que, por sua vez, dado ao inefável pendor ao caudilhismo, também premiou bajuladores e “alfaiates da roupa do rei”, em contexto procedimental similar. Com isso, o descompromisso dos operadores para com os ditames das instituições aparelhadas… se consolidou como norma.
O hiperpartidarismo, introduzido com o “presidencialismo de coalização” e alimentado por fundos partidários públicos (decisão do STF), descolou completamente o sistema de representação parlamentar do eleitorado que o elege. Vinculou justiça eleitoral (uma jabuticaba tupiniquim), legislativo e partidos políticos, numa relação descompromissada com a soberania popular. Dessa forma, a cara Soberania Popular tornou-se algo “judicializável”, submetida a regras de exercício progressivamente restritivas.
A fiscalização do Poder Legislativo desapareceu, dando lugar às peripécias procedimentais de gabinete, no Poder Judiciário…
Em meio à onda dos favorecimentos e mutualidades, estampada nos escândalos políticos nas duas primeiras décadas do século XXI, destaca-se a “porta giratória” – indicação de “companheiros” (ou premiados por “bons serviços”), para os chamados quintos constitucionais dos tribunais dos estados e dos tribunais regionais federais.
As indicações para os tribunais superiores deixaram de colecionar sumidades para abrigar utilidades – forma explícita de “aparelhar” a instituição em causa e indiretamente reforçar a “blindagem” de quadros prestes a sofrerem julgamento pelo órgão.
A porta giratória se estendeu para outros setores, como conselhos de estatais, tribunais de contas, órgãos colegiados de controle externo, agências reguladoras, bancos públicos, fundos de pensão e até organismos multilaterais.
A degradação da imagem das instituições, a desmoralização das funções e a perda de credibilidade pública, são consequências naturais.
Mentes brilhantes foram substituídas por carecas lustrosas, goma no cabelo e tintura cajú. E a queda de qualidade da atividade das instituições torna-se notória.
As prerrogativas profissionais passaram a ser conspurcadas pelo abuso persecutório, muitas vezes pelo simples estigma da culpa por suspeita em função das relações suspeitas ou não aprovadas ideologicamente pelo persecutor.
A oralidade pública – razão de ser da boa advocacia e da publicidade da justiça, hoje dá lugar ao mimimi por escrito – prolixo, cheio de citações vazias, grafado por extensas laudas de decisões sem nexo – geralmente “terceirizadas” e lidas sem expressão – razão de ser da justiça desfeita nos arranjos de gabinetes. Basta medir a mediocridade pelo número de laudas que hoje são consumidas pelas mais banais decisões.
Entidades intermediárias, tão caras á defesa do Estado Democrático, também sucumbiram no mar de omissões – destaque especial à Ordem dos Advogados do Brasil, à Associação Brasileira de Imprensa, dentre outros entes importantes.
Já o Supremo Tribunal Federal, hoje, acolhe uma judicatura considerada por muitos a pior de sua história.
O “Grande Susto” e a “Grande Acomodação”
As manifestações de junho de 2013 expuseram a podridão que fermentava abaixo da história oficial, mas também revelaram a capacidade de reação do povo – deixando claro que não há zona de conforto que sempre dure.
Com o grande susto, os canalhas abriram a guarda para não serem devorados pela população que tomou as ruas. Graças à pressão popular, sobreveio a aprovação da Lei de Repressão ao crime organizado – em agosto de 2013, que permitiu a uma parcela de homens e mulheres que ainda acreditavam fazer algo pelo império da lei e da ordem, projetar luz sobre os malfeitos.
Com o reforço da lei, “companheiros”, amigos dos amigos, laranjas e prepostos, começaram a ser encarcerados ás pencas.
Ironicamente, a luta contra a corrupção gerou um mercado de lavanderias jurídicas. Surgiram novos operadores, assentados em escritórios nababescos, ao tempo em que corporações multinacionais, grandes estatais, fundos de pensão, fundos de investimentos e bancos eram impactados por escândalos. Reputações foram destroçadas no moedor de carne humana das operações da Polícia Federal.
O novo negócio rentável da indulgência com deduragem premiada atingiu patamares de “estratégia corporativa”. Os “tubarões” persecutores se perderam na confusão entre colaboração e acordo de leniência – o que permitiu a contaminação dos procedimentos criminais pelas fórmulas de sobrevivência corporativa em tempos de crise. Verdadeiros “cases” empresariais, ao invés de casos criminais…
A “Grampolândia” e a “República dos Delatores” formaram um novo risco de contumélia institucionalizada. Foi o mote para mobilizações de jurisconsultos, com manifestos e manifestações de toda ordem: de advogados contra juízes e promotores, de juízes e promotores contra advogados, de advogados contra advogados, juízes contra juízes, etc.
Com certeza, isso não era o objetivo da Lei, não era o objetivo das forças-tarefa do Ministério Público e Polícia Federal, da Justiça Federal e do STF (as instituições possuem estatura bem mais elevada que isso). Também não é algo que denigra o trabalho bem feito de uma defesa profissional eficaz.
Porém, o imbróglio – e sua péssima condução, não se tenha dúvida, processam hoje o downsize do Estado Democrático de Direito e do Regime Republicano.
É preciso se indignar para resgatar a ética!
Em respeito à profissão que amo, aos colegas que lutam e trabalham, dia e noite, para sustentar suas famílias com dignidade, cabe perguntar:
1- Será que a miséria humana, a mesquinhez, a falta de princípios, a estreiteza ideológica, a falta de caráter e dignidade, chegou a tal nível de baixeza que, ao fim e ao cabo, sobrou apenas dinheiro?
2- Há quem possa afirmar-se bem sucedido, quando o alegado “sucesso” ocorre às custas da saúde e da dignidade dos outros, da educação, da segurança e do futuro da população mais pobre?
3- A carga de contribuição fiscal indireta – inversamente proporcional à miséria em que vive a população espoliada pela corrupção, não afeta a consciência de quem fatura com o conflito?
Tiranetes pululam nos escaninhos do serviço público – como miniaturas do “Inspetor Javert” de Victor Hugo. Promovem arbitrariedades a título de promover a Justiça. No entanto, o combate às tiranias não pode servir de pretexto à manutenção da corrupção e da injustiça. Este padrão não escolhe lado. Basta tão somente o deslumbre com o poder para se repetir, independente da bandeira do plantonista.
Não questiono a figura e a importância histórica e conceitual da advocacia. Muito menos questiono a dignidade da profissão de advogado. Como advogado sei bem da dureza que é assumir casos que causam antipatia popular, e a necessidade de ser bem remunerado por isso.
Porém, muito profissional envolvido, talvez por se encontrar absolutamente deslumbrado com a oportunidade do próprio protagonismo, não se apercebe que, de tanto lidar com canalhas, termina por patrocinar ou tutelar a canalhice.
Há uma ética a ser seguida
A preocupação deste artigo não é vã. Ela encontra respaldo, por exemplo, nas regras de conduta da advocacia.
Reza o Código de Ética da Advocacia Brasileira, art. 2o., VII, que o advogado deverá abster-se de :
“a) utilizar de influência indevida, em seu benefício ou do cliente;b) patrocinar interesses ligados a outras atividades estranhas à advocacia, em que também atue;c) vincular o seu nome a empreendimentos de cunho manifestamente duvidoso;d) emprestar concurso aos que atentem contra a ética, a moral, a honestidade e a dignidade da pessoa humana.”
Assim, antes dos desagravos de praxe, das acusações, dos debates inúteis sobre as origens de autoria dos favorecimentos; antes da polarização entre salvacionistas e nostálgicos, deveriam todos fazer silêncio, reduzirem-se à reflexão.
Vaticina Esopo, que “todo tirano usa de um pretexto justo para exercer sua tirania”.
O destino é implacável. Queimará a todos na fogueira de suas próprias vaidades, tal qual o incinerador gera seu calor na autocombustão do lixo nele depositado.
Vaticina Esopo, que “todo tirano usa de um pretexto justo para exercer sua tirania”.
O destino é implacável. Queimará a todos na fogueira de suas próprias vaidades, tal qual o incinerador gera seu calor na autocombustão do lixo nele depositado.
Tout d’abord l’avocat! Le courage, pour un avocat, c’est l’essentiel, ce sans quoi le reste ne compte pas * – ensinava Robert Badinter – o grande jurista e político socialista que lutou para abolir a pena capital na França.
Permanecerá, ao fim e ao cabo, o verdadeiro advogado. O profissional corajoso, heroico e batalhador.
Quanto aos canalhas, não sobrará nem a cinza. Restará o opróbrio e o esquecimento. Mas remanescerá o enorme dano moral praticado.
Nota:
*Primeiro de tudo, o advogado! A coragem, no advogado, é essencial, caso contrário, o resto não importa…
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor institucional e ambiental. Sócio fundador do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrou o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, foi professor da Academia de Polícia Militar do Barro Branco e foi Consultor do UNICRI – Interregional Crime Research Institute, das Nações Unidas. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, do Conselho Superior de Estudos Nacionais e Política da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 11/08/2023
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.
Nobre Colega Antonio Fernando: Você conseguiu iluminar este túnel com suas colocações. Sua reflexão é excelente! Pergunto: – Viveremos a Rússia de 1917? Att, Marianci
Não há condições mais para isso. No entanto, o projeto de poder… criminoso… vai dar trabalho para ser desmontado.