Empresa de confecção argentina pode ser paradigma de uma revolução na indústria da moda
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Citar a indústria do petróleo como principal vilã ambiental é fácil. Poucos, porém, sabem que o segundo lugar no ranking da poluição mundial pertence á indústria da moda. Mas há quem busque reagir à essa terrível tradição.
A moda gera a revolução industrial
Foi a fiação, a tecelagem e a malharia as primeiras atividades de confecção a demandarem uma linha de produção em escala no mundo, iniciando a revolução industrial.
A fiação demandou a industrialização da produção agrícola, em especial do algodão, da juta, da lã, e várias outras fibras, induzindo às grandes monoculturas por extensão e criações de animais por extensão e intensidade. A indústria do couro ganhou, também, enorme incremento, seguindo-se à mecanização dos processos de tecelagem e confecção.
As máquinas poluíram a atmosfera, os processos de tingimento, cromação e lavagem em escala poluíram rios e solos. E continuam na vanguarda das preocupações com o controle de poluição em todo o mundo até hoje.
O uso dos insumos em larga escala transformaram, por sua vez, o modo de produção no campo – isso nos últimos três séculos.
Com a tecnologia do século XX, o petróleo chega à confecção, não mais como insumo energético mas, sim, como material sintético e, com o advento das fibras sintéticas a questão ambiental se agravou.
O poliéster, a fibra sintética mais usada na indústria têxtil em todo o mundo, requer 70 milhões de barris de petróleo todos os anos. Descartada no ambiente, a fibra demora mais de 200 anos para se decompor.
A indústria da celulose, altamente poluidora, também se uniu à indústria da moda, para gerar a segunda fibra mais usada em todo o mundo, a viscose, que consome mais de 60 milhões de árvores todos os anos.
O bom e velho algodão, porém, continua campeão. Apesar de natural, a fibra do algodão é a que mais demanda o uso de substâncias tóxicas para seu cultivo no mundo – 24% de todos os inseticidas e 11% de todo os pesticidas, com óbvios impactos no solo e nos recursos hídricos.
Nem mesmo o algodão orgânico escapa: uma simples camiseta necessita de mais de 2700 litros de água para ser confeccionada.
Se as lavanderias industriais representam uma enorme carga de poluição, talvez o maior dano causado pela indústria da moda seja o descarte em massa do material consumido. A tendência da “moda rápida”, de qualidade menor e facilmente descartável, marcada especialmente pelos preços baixos, induz ao consumo insustentável, que multiplica os problemas ambientais.
O “segredo sujo” da moda
Somado às condições ambientais, o custo social de todo esse processo está na raiz de todas as revoluções, juntamente com a indústria de base.
O problema é que todas as conquistas sociais advindas de três séculos de sangue, suor e lágrimas, ainda não se consolidaram na indústria da moda.
É inacreditável como ainda se destacam as condições desumanas com que muitas vezes é produzido o vestuário.
A competitividade do mercado faz com que se busque a mão de obra mais barata possível. Assim, para atender muitas vezes grandes marcas internacionais, os centros de confecção foram deslocados dos grandes centros consumidores para os países periféricos, localizados na américa latina, áfrica e ásia. Como se sabe, são essas regiões que apresentam, “em escala industrial”, casos de trabalho escravo, baixa remuneração, exploração de mão-de-obra infantil e péssimas condições sanitárias e de segurança das instalações. Conforme a demanda comercial, jornadas de trabalho absurdas também são relatadas.
Outro grave efeito da competitividade globalizada, em pleno século XXI, é a exploração de comunidades inteiras, com devastação de biomas, vinculada ao uso predatório de culturas e estilos tradicionais de vestimentas e adereços – sem qualquer retorno à comunidade tradicional dona da cultura comercialmente explorada.
Esse custo sócio-ambiental, por não ser imposto à indústria, é simplesmente escamoteado. O marketing dos produtos se encarrega, então, de maquiar ou dissimular completamente a perversidade perpetrada em nome da competitividade das marcas.
A isso se dá o nome de “segredo sujo” da moda.
A reação por uma responsabilidade ambiental
Após enormes entreveros com relação ao uso de trabalho escravo e infantil por várias marcas importantes do mundo da moda, houve um movimento muito forte pela assunção da responsabilidade sócio-ambiental nas indústrias do setor.
Mas, embora o marketing seja forte, o fato é que poucas indústrias incluíram a sustentabilidade como OBJETIVO de sua atividade. Daí a importância de destacara empresas que o fizeram.
Foi o caso do Portal G1, que cobriu as atividades de uma indústria multinacional argentina comprometida com a causa da reação em prol da sustentabilidade na moda.
Na Argentina, foi fundada a IOAN – Industry of All Nations, uma “firma de design e desenvolvimento com o compromisso de repensar métodos de produção”, como consta de seu anúncio.
A ideia representa um contra-conceito à externalidade do mundo da moda. O objetivo da Industry of All Nations é produzir “roupa limpa”.
“Eu e meus irmãos nos demos conta de que, em um mundo tão grande, quase todos os produtos são feitos em dois ou três países asiáticos. E a única razão é porque é mais barato produzi-los lá”, explicou Juan Diego Gerscovich, fundador da empresa familiar, ao portal.
“A IOAN, como diz o nome, existe para que voltemos à produção e aos produtores originais, para que regressemos à fonte”.
Os hermanos Gerscovich vivem em Los Angeles, onde começaram produzindo sandálias, usando os serviços de uma fábrica há 120 anos no ramo.
“Era uma empresa sustentável sem saber, pois as sandálias eram de juta e algodão. A empresa produzia um milhão de unidades. A única coisa que fizemos foi mudar as tiras, que eram de material sintético, para algodão”.
Mas foi um segundo produto que soou o “alarme da contaminação”.
Os irmãos queriam produzir jeans, mas abandonaram a ideia quando “se deram conta de que se tem uma questão muito tóxica”.
Decidiram resgatar o método tradicional de produção do tecido, com o uso de algodão orgânico e índigo – uma tintura obtida da planta Indigofera tinctoria.
Gerscovich encontrou um pequeno vilarejo no sul da Índia, Auroville, onde levaram anos investigando como reviver a indústria local.
“Era uma indústria muito importante e conectada à cultura indiana, mas a Revolução Industrial trouxe os corantes químicos, e a indústria do tecido natural desapareceu… era muito mais econômico e rápido com os métodos modernos”.
O processo natural requeria ainda mais tempo e investimento, mas o empresário argentino constatou que era muito menos agressivo para o meio ambiente.
O desaparecimento das indústrias havia destruído a mão de obra local. Então, fez-se necessário treinar tecelões, pois ninguém na comunidade sabia fazer jeans.
A iniciativa dos irmãos argentinos induziu a revitalização de todo um arranjo produtivo local, com efeitos internacionais.
Mais que um negócio
A busca pela sustentabilidade tornou-se parte da busca pelo aprimoramento do processo industrial da IOAN.
A empresa passou a se dedicar à produção de suéteres, com lã de alpacas bolivianas. “E sem corantes”, ressaltou Gersovich à reportagem.
“A cooperativa que produz os suéteres na Bolívia conhece nossa filosofia e montou um pequeno laboratório para começar a desenvolver tintas naturais”.
A idea original dos irmãos Gerscovich era não apenas fazer a roupa, mas empoderar comunidades.
“O mais importante é que, como seres humanos, mudemos de mentalidade: precisamos consumir menos”, disse o empresário.
Arranjos produtivos e racionalidade produtiva
A IOAN, assim como outras iniciativas do gênero, acabam produzindo suas peças demandando maior tempo e maior custo. Um par de jeans, por exemplo, custa US$ 170, valor bem superior ao de muitas marcas no varejo mundial.
No entanto, representam um esforço heroico e vanguardista na luta contra o “segredo sujo” da indústria da moda. A atividade dos irmãos argentinos cria um parâmetro incômodo para as grandes multinacionais do setor e desenvolvem um novo tipo de competitividade que já chama a atenção, não apensas do público consumidor mais consciente, como também dos governos.
Atividades de produção como as desenvolvidas pela IOAN, e foi uma pena que a reportagem da G1 não tenha nisso se aprofundado, geram arranjos produtivos locais – clusters de desenvolvimento de significativo impacto positivo, no campo cultural, social e econômico. Deviam merecer tratamento privilegiado no campo fiscal e receber incentivos financeiros e regulatórios dos governos locais e dos países hospedeiros desses arranjos produtivos.
O Brasil mesmo – um berço de conhecimentos tradicionais e culturas produtivas diversas – deveria estar atento a esses arranjos produtivos, como forma de preservar sociedades e incentivar o desenvolvimento local em bases sustentáveis.
“Vamos reduzir custos à medida que as vendas cresçam. Mas jamais chegaremos aos níveis das grandes cadeias (de lojas de roupa). Seus preços são uma invenção. Estão desrespeitosos 100% com seus produtores”, afirmas os empresários da IOAN.
É um recado. Hora da sociedade exigir e dos governos se mobilizarem para cobrar dos grandes sua parcela de contribuição para além dos regimes fiscais e, ao mesmo tempo, incentivarem empresas que estimulam os arranjos produtivos locais.
Não se trata de uma questão de durabilidade e qualidade – fatores de sustentabilidade que já foram tratados por este articulista em outras ocasiões. Trata-se , aqui, de gerar valor ambiental e social na raiz da produção.
Após a revolução industrial, esse novo paradigma poderá representar uma grande revolução na indústria da moda.
Fonte: G1 Natureza
Leia também: