Um conto burocrático
Por Marco Aurélio Arrais
Eu tinha meus dezoito anos, dois anos após o golpe dos milicos, quando eles passaram a mandar no povo. Meu pai, funcionário público estadual, trabalhava na extinta Organização de Saúde de Goiás. Um dia, quando fui lá a chamado dele, vi que todo mundo estava alvoroçado.
Havia chegado uma partida de carimbos novos, para uso obrigatório em todos os ofícios e memorandos, a partir de então, com os dizeres: “A revolução de 1964 é irreversível e consolidará a democracia no Brasil”; “O preço da democracia é a eterna vigilância” entre outras coisas. Achei estranho a afirmação do primeiro, que pretendia dar eternidade a uma situação que, fatalmente, um dia teria de acabar, pois havia aprendido que a única coisa imutável é a obra divina, além de afirmar que, naquele momento, não havia democracia no país. E o segundo, de maneira categórica, afirmava que estavam de olho em todo mundo.
Os milicos tinham a mania de baixar uns decretos meio esquisitos. Um deles até me favoreceu, pois cheguei a ganhar uns cobrinhos um tanto avultados. Inventaram que todo brasileiro era obrigado a saber cantar o Hino Nacional. Não seria mais útil construir escolas e pagar melhor os professores? As crianças aprenderiam o Hino Nacional se o cantassem ao menos uma vez por semana. E uma reforma no ensino daria ao povo uma instrução decente.
Então, como não tinham meios concretos de fazer a população do país aprender a letra e música do hino no grito, decretaram que pelo menos as pessoas a serem nomeadas para o serviço público, tinham que cantá-lo diante de uma comissão com competência para avaliar se o futuro funcionário conhecia a letra do hino, já que a afinação era dispensada. Era umas quinze pessoas numa sala apertada, cada uma em sua mesa, tendo uma pilha de certidões com espaços em branco no lugar dos dados do pretendente a servidor público. Então era cantar o hino, ter a certidão devidamente preenchida nos espaços em claro à mão, e carimbada regularmente. O futuro empregado do governo juntava esse documento imprescindível aos muitos outros, que iriam habilitá-lo a exercer a honrosa função de funcionário público.
Naquele tempo, eram poucos os concursos para o preenchimento dos cargos nas repartições públicas. Tinha muita indicação e apadrinhamento, bem mais que hoje. E muita gente, principalmente os mais humildes, mal sabia assinar o nome, quanto mais cantar o Hino Nacional. E havia também os que, embora capacitados, não iam por timidez.
Mas para tudo tem remédio e jeito. Foi permitido que o futuro servidor público se fizesse representar por um procurador regularmente constituído na hora de abrir o peito, cantando o hino. Foi aí que surgiu o cantor substituto.
Em um prédio da Avenida Goiás, logo acima da Praça do Bandeirante, no primeiro andar, funcionava a tal Ouvidoria do hino (vamos chamar assim). Na calçada tomada por mais de vinte mesas, datilógrafos com suas respectivas máquinas de escrever preenchiam as procurações com os dados do pretendente ao cargo, e do cantor. Com o papel preenchido, e após ter feito o pagamento ao datilógrafo e ao cantor, o documento era levado ao cartório mais próximo para reconhecimento de firma. Após isso o cantor-procurador, de posse do documento habilitatório dirigia-se à competente comissão ouvidora, para cantar o hino.
Para mim foi uma benção. Desempregado e duro, passei a faturar o equivalente a uns duzentos reais de hoje, para representar cada beneficiado com o cargo público. Era entrar e entregar a procuração. O escutador de hino, com uma régua na mão para marcar o compasso, dava ordem para iniciar. E tinha que cantar alto, para ser ouvido e conferido. Agora imagine uma sala apertada, sem ventilação, num calor desgraçado, com quinze “cantadores” desfiando o Hino Nacional, cada um no seu tempo. Quando uns começavam, outros já estavam pelo meio ou no final, pois a audição era individual. Tínhamos que prestar a maior atenção no que se cantava e tentar não ouvir a cantoria dos outros, pois não podíamos errar ou engasgar, já que os cobres estavam no bolso. O funcionário escutador de hino, todo solene, ficava o dia inteiro em meio àquela ópera de loucos, com o saco cheio, ouvindo e sendo obrigado a aguentar, por dever de ofício, o desafinamento de muitos, pois o que importava era não errar a letra. Teve um que deu de implicar comigo e com os outros cantores-procuradores que se faziam mais presentes, nos chamando de cantores profissionais de hino, de gente sem civilidade e sem patriotismo. Dizia que aquilo tinha que mudar, pois estavam sendo admitidos funcionários que não sabiam cantar o Hino Nacional como mandava a lei, o que não atendia a exigência do decreto. E olha que alguns de nós, eu inclusive, cantávamos umas oito vezes por dia. A despesa era pouca, só se gastava com duas ou três garrafas de água mineral para molhar a garganta.
Um dia, infelizmente, revogaram o tal decreto cantativo, e eu fiquei sem meu ofício de “cantador” do Hino Nacional.
Marco Aurélio Arrais, natural de Goiânia, advogado (PUC-GO), contador de causos, é pesquisador da história do Brasil ou, como ele mesmo se denomina, “um curioso de nossa história”.
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Muito legal essa crônica do Marcão, revelando de um jeito bem humorado fatos hilário e/ou bizarros da nossa história, como esse protagonizado pela Redentora de 64.