Por Enio Fonseca*
“… o fogo é assim, um fenômeno privilegiado capaz de explicar tudo. Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente se explica pelo fogo.
O fogo é o ultrativo. O fogo é íntimo e universal. Vive em nosso coração. Vive no céu.
Sobe das profundezas da substância e se oferece como um amor. Torna a descer à matéria e se oculta, latente, contido como o ódio e a vingança.
Dentre todos os fenômenos, é realmente o único capaz de receber tão nitidamente as duas valorizações contrárias: o bem e o mal.
Ele brilha no paraíso, abrasa no inferno. É doçura e tortura. Cozinha e apocalipse.
É prazer para a criança sentada ajuizadamente junto à lareira; castiga, no entanto, toda desobediência quando se quer brincar demasiado de perto com suas chamas.
É um deus tutelar e terrível, bom e mal. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios da explicação universal.”
Gaston Bachelard.
Considerações iniciais
Nesse período do ano, onde as condições climáticas são desfavoráveis , assistimos de forma recorrente a um sem número de queimadas e incêndios florestais, que causam prejuízos enormes, angústia, perplexidade e revolta generalizada.
Trata-se de uma situação hoje observada em nosso País, de forma acentuada nas regiões do cerrado e de formações florestais, em especial aquelas situadas na Amazônia e no Pantanal..
Porém acontecem também em diversos países europeus, africanos e da América do Norte. Nesses países afetados por uma seca excepcional existem muitos registros de mortes humanas.
Somente na Europa, no ano de 2022, mais de 700 mil hectares de áreas florestais e de agricultura foram queimados, até o mês de agosto.
Os vídeos que ora rodam o mundo contêm geralmente cenas fortes , pela altura e intensidade das chamas, e de certa forma pela beleza destruidora do fogo, filho do Deus Prometeu.
No mundo, e também no Brasil, encontramos essa prática milenar de “limpar” o solo florestal , agrícola ou pecuário , com o uso do fogo.
Foi assim na “ocupação de extensas áreas da Mata Atlântica das florestas do sul do país, nos domínios dos cerrados, e acontece na região Amazônica desde os primórdios de sua ocupação .
Muitas vezes criminoso, tendo o homem como principal agente causador, o uso do fogo pode ser feito de forma autorizada pelos órgãos ambientais e florestais competentes, através da queima controlada, observada técnicas apropriadas, e em muitas regiões do mundo, as queimadas têm causas naturais como raios.
Geralmente seu uso está associado a custos mais baixos de preparo de solo, quando comparado a outras práticas agrícolas, e quando não se consegue dar aproveitamento econômico ao material lá existente.
Os incêndios criminosos podem ter ainda ter outras motivações. Com certeza, as queimadas e incêndios apresentadas nos vídeos que assistimos, não são episódios isolados, exclusividade dos anos recentes.
São recorrentes, em muitos biomas, ao longo de dezenas, centenas de anos.
Incêndios florestais são um problema crônico no mundo todo, e afetam de maneira grave a biodiversidade, a saúde da população, os transportes, além de acelerarem o processo de aquecimento global, entre outros fatores.
Neste artigo pretendo não esgotar o tema, e destacar um pouco da história que vivi , como Engenheiro Florestal, especialista em Prevenção e Controle de Incêndios Florestais, e as contribuições que pude dar ao País no contexto de se construir e implantar um Plano de Ação abrangente para essa questão.
Um pouco da História
Em 1985 , quando trabalhava no Instituto Estadual de Florestas de MG, fui enviado pelo Governo Brasileiro ao Chile para fazer uma Especialização em Prevenção e Proteção Florestal promovido pelo National Advanced Resourch Tecnology- NARTC, Corporacion Nacional Forestal- CONAF e pela FAO .
Lá aprendemos sobre a complexa relação do homem com o fogo, e dele com a natureza, as técnicas do seu uso como ferramenta de preparo do solo, legislação aplicável de vários países do mundo e práticas de prevenção e combate, tanto em áreas públicas, quanto em áreas de empresas florestais.
Éramos cerca de 40 profissionais da América do Norte, Central e Sul, sendo eu o único representante do Brasil. Os professores pertenciam aos organismos florestais dos Estados Unidos, México, Chile, Espanha e Portugal.
Ao retornar ao Brasil, participamos, ainda no Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal- IBDF e na sequência no IBAMA, da criação por meio da Portaria Nº 0254/88 de 28 de agosto de 1988, da CONACIF, Comissão Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais, que cheguei a presidir, e que criou as bases para criação do Sistema Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais- PREVFOGO, por meio do Decreto nº 97.635, atribuindo ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (IBAMA) a competência de coordenar as ações necessárias à organização, à implementação e à operacionalização das atividades de educação, pesquisa, prevenção e controle dos incêndios florestais e queimadas.
Como curiosidade , ao transcrever os procedimentos operacionais sobre o tema, que foram ministrados em espanhol, nos deparamos com o conceito do grupamento de combatentes, conceituado como “Quadrilha”. Tivemos de modificar para “Brigada”
Em 12 de outubro de 1988 o Governo Federal promulgou o Decreto Nº 96.944, que criou o Programa de Defesa do Complexo de Ecossistemas da Amazônia Legal, denominado Programa Nossa Natureza, com a finalidade de estabelecer condições para a utilização e a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais renováveis na Amazônia Legal, mediante a concentração de esforços de todos os órgãos governamentais e a cooperação dos demais segmentos da sociedade com atuação na preservação do meio ambiente.
Neste Programa existiu um capítulo dedicado aos Incêndios Florestais, onde eu, e o Professor Ronaldo Viana Soares da UFV, juntamente com outros especialistas propusemos um robusto programa de prevenção aos incêndios florestais na região, focando ações preventivas de conscientização e educação ambiental e estruturas de combate contemplando capacitação de profissionais e compra de equipamentos.
Posteriormente novas estruturas de gerenciamento desse tema foram implementadas no âmbito do governo federal, a partir do PREVFOGO, e em vários governos estaduais, como o Programa de Prevenção e Controle de Queimadas e Incêndios Florestais na Amazônia Legal – PROARCO, criado pelo Decreto Federal 2.662, de 8 de setembro de 1998, restabelecendo normas de precaução relativas ao emprego do fogo em práticas agropastoris e florestais e ainda instituem medidas de prevenção, educação ambiental, monitoramento e combate a incêndios a serem implementadas na Amazônia Legal.
A CONACIF, primeira coordenadoria capaz de lidar, a nível nacional, com a problemática dos incêndios florestais e das queimadas, consistiu e publicou normas relacionadas ao uso do fogo no meio rural, e deu as bases ao difícil e complexo programa oficial de prevenção e combate aos incêndios florestais, atuando de forma participativa com vários setores da sociedade interessados no tema .
A partir de 1990, o PREVFOGO e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, implantaram o monitoramento e controle dos incêndios florestais no Brasil, por meio dos satélites NOAA, Land-Sat e Spot, monitoramento que continua sendo feito de forma permanente.
Dentre iniciativas desenvolvidas nos Estados, destaca-se aquela sob responsabilidade do Grupo de Trabalho Incêndios Florestais (GTIFLOR), instituído pelo Decreto nº 28.621 de 12/09/88, do Governo de Minas Gerais, que tratou da prevenção e combate a incêndios florestais, do qual fui o relator, e cujos resultados, junto com as iniciativas levadas a efeito pelo governo federal, inspiraram muitas normas legais estaduais sobre a prevenção e combate aos incêndios florestais.
Esse grupo de trabalho teve na sua constituição a participação de diversos órgãos e instituições públicas: Secretaria de Estado de Agricultura, IBAMA, IEF, Polícia 90 Militar, Polícia Florestal e Corpo de Bombeiros, empresas, federações e associações oriundas da sociedade civil, entre outros.
A partir do Plano de Ação construído pelo GTIFLOR, o Estado de Minas promulgou a Lei Estadual nº 10.312 que estabeleceu regras robustas para disciplinar o uso do fogo e permitiu a consolidação do Sistema de Prevenção, Controle e Combate aos Incêndios Florestais no Estado, hoje conhecido como PREVINCENDIO, coordenado pelo Instituto Estadual de Florestas.
Importante pontuar que hoje temos um conjunto robusto de normas aplicáveis ao tema, tanto a nível federal quanto nos estados . São normas rígidas que não permitem a queima pura e simples das formações florestais, nem quando se implantam empreendimentos de utilidade pública, como usinas hidrelétricas e estradas.
Atualmente se encontra em análise do Senado o p PL 4996, de 2019, que altera a Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa, para estabelecer medidas de participação e de transparência relativas à Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas, Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais.
O PL aprimora a Política Nacional de Manejo e Controle de Queimadas, Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais, prevista no Código Florestal, a partir de três elementos centrais: a ampla participação de todos os setores da sociedade envolvidos com a matéria; o estabelecimento de um processo contínuo de avaliação e revisão da política; e exigência do envio dos resultados dos processos de avaliação ao Congresso Nacional.
Em função dos grandes impactos ambientais e econômicos causados pelas queimadas e incêndios florestais no Brasil, o Governo Federal vem anualmente suspendendo os atos autorizativos de queima controlada, como foi feito em 2022, com a promulgação do Decreto Nº 11.100, de 22 de junho de 2022.
Merecem destaque os robustos programas de prevenção aos incêndios florestais, focados em ações educativas e de conscientização , promovidos em todo o país, pelo MMA, IBAMA, ICMBIO, órgãos estaduais florestais e de meio ambiente, empresas do ramo, corpo de bombeiros e ONGs.
Registro ainda uma iniciativa importante que participei, que foi a criação e implantação de um Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais, numa parceria da Universidade Federal de Viçosa, UFV, Instituto Estadual de Florestas, IEF, Centro Mineiro para Conservação da Natureza, hoje Centro Brasileiro, Sociedade de Investigações Florestais, SIF e CEMIG. Segue o link
CONCLUSÃO:
Este tema- Incêndios Florestais, é complexo , tanto nos aspectos da sua prevenção quanto do combate. É fato que causa destruição e prejuízos de toda monta , aqui e também em muitos países que possuem boas estruturas de fiscalização e combate, e mais uma vez registro que o que estamos vendo vem se repetindo ano após ano.Pretendi mostrar um pouco a minha atuação nesse assunto, desde o ano de 1985, quando me especializei no Chile.
E por fim pontuo o reconhecimentos aos milhares de brigadistas dos órgãos ambientais e florestais, e também aos que o são de forma voluntária, e aos bombeiros militares ou civis, que nesse período de clima seco fazem um hercúleo trabalho na defesa da natureza e de importantes ativos produtivos. E finalizo com a máxima de que nesse tema, é mil vezes melhor a prevenção que o combate.
*Enio Fonseca – Engenheiro Florestal, Senior Advisor em questões socioambientais , Especialização em Proteção Florestal pelo NARTC e CONAF-Chile, em Engenharia Ambiental pelo IETEC-MG, , em Liderança em Gestão pela FDC, em Educação Ambiental pela UNB, MBA em Gestão de Florestas pelo IBAPE, em Gestão Empresarial pela FGV, Conselheiro do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico,FMASE, foi Superintendente do IBAMA em MG, Superintendente de Gestão Ambiental do Grupo Cemig, Chefe do Departamento de Fiscalização e Controle Florestal do IEF, Conselheiro no Conselho de Política Ambiental do Estado de MG, Ex Presidente FMASE, founder da PACK OF WOLVES Assessoria Ambiental, parceiro da Econservation.
Fonte: Direito Ambiental
Publicação Ambiente Legal, 13/10/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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