Por Marcelo Szpilman
O público leigo pode ter uma noção absolutamente errada a respeito do comportamento de animais, a exemplo do que fez a notícia “Caçador de crocodilos morre ao ser atacado por raia”, veiculada nos principais portais da internet e em jornais do mundo inteiro. Como biológo marinho, acredito ser importante fornecer informações pertinentes sobre o assunto de modo a esclarecer os fatos.
O conhecido apresentador de TV australiano, Steve Irwin, era famoso por se aproximar demais dos animais selvagens quando captava imagens para seus documentários. Um de seus muitos “espetáculos”, que sempre geravam polêmica mundo afora, foi dar de comer a um gigantesco crocodilo enquanto segurava seu filho recém-nascido nos braços. No início de setembro do ano passado, quando filmava cenas submarinas para um novo documentário, na praia de Port Douglas, na Austrália, Irwin foi morto por uma raia. Ferido no peito pelo animal, chegou a ser socorrido por paramédicos, mas veio a óbito no local do acidente. Assim foi noticiado o trágico fato.
De acordo com o produtor de seus programas, “Steve segurou uma raia e o barbilhão entrou no peito dele, abrindo um buraco no coração”. Provavelmente, o que deve ter ocorrido, foi que uma raia-prego (do gênero Dasyatis), ao ser manipulada de forma irresponsável, penetrou seu aguilhão no tórax e no coração do apresentador. A suposta filmagem do acidente, já que eles estavam captando imagens para o documentário, provavelmente nunca será divulgada, pois só confirmaria a culpa de Steve Irwin.
Grande parte das raias costuma passar quase todo o dia em repouso na areia, onde algumas se enterram. As espécies potencialmente perigosas possuem em sua cauda um aguilhão (às vezes mais de um ao mesmo tempo) que pode inocular uma potente peçonha. O aguilhão é um grande espinho retroserrilhado e pontudo, composto de um duro material semelhante ao osso coberto por uma fina camada de tecido, no qual estão inseridas algumas glândulas produtoras de peçonha.
Quando o animal está tranqüilo e em repouso, o aguilhão fica encostado, paralelo à cauda, acondicionado em uma dobra membranosa e imerso em muco e peçonha produzidos pelas glândulas da epiderme. Ao ser perturbada ou estressada, a raia costuma dar violentas “chicotadas” com sua cauda. Nesse momento, seu aguilhão adquire uma posição perpendicular à cauda e, ao atingir sua vítima, provoca ferimentos profundos e graves com inoculação de peçonha.
No entanto, quando não molestadas, as raias são totalmente inofensivas e incapazes de atacar ativamente quem quer que seja. Para que ocorra um acidente, é necessário que a raia sinta-se muito ameaçada ou acuada, pois ao menor sinal de perigo ela costuma afastar-se do local com extrema rapidez. Cerca de 99% dos acidentes com raias são provocados por pescadores que insistem em capturá-las, e no ato de dominá-las ou retirá-las da rede ou anzol, são atingidos pelo aguilhão, ou mergulhadores inconseqüentes que acham que podem acariciá-las ou molestá-las até o limite do insuportável, como se elas fossem um animal doméstico e bobo. Apenas 1% dos casos ocorre por acidente, quando alguém inadvertidamente, ao desembarcar de sua lancha na praia, por exemplo, dá uma “pisada” em uma raia que esteja repousando na água rasa.
Esse acidente de Irwin foi um grande azar, pois só há um outro registro de morte por penetração de aguilhão de raia no coração, também na Austrália. A morte ocorreu em função de punhalada no coração e à subseqüente, e intensa, hemorragia interna. Caso Steve não tivesse morrido, certamente teria enormes complicações em função da inoculação profunda de peçonha e substâncias estranhas em seu organismo.
Os acidentes com as raias têm dois aspectos médicos importantes, cujos efeitos costumam atuar em conjunto: o trauma provocado pela penetração do aguilhão retroserrilhado e a inoculação da peçonha, facilitada pela lesão. O trauma provocado pelo aguilhão é puntiforme ou lacerante, muitas vezes profundo, e pode ocasionar graves conseqüências, muitas vezes com abundante sangramento. Além dos danos extensos e dolorosos, o aguilhão ou pedaços dele podem destacar-se da cauda da raia no momento da penetração e permanecer na lesão, ocasionando complicações futuras.
As peçonhas de todas as raias são similares e contêm várias substâncias tóxicas, cujos efeitos sistêmicos costumam afetar os sistemas cardiovascular e respiratório. Além disso, a peçonha possui uma poderosa ação local de necrose tecidual. A dor, imediata, intensa e persistente, com característica cortante, pulsátil, espasmódica ou latejante, é o sintoma inicial predominante. É seguida, usualmente, por alguns dos sintomas gerais, como hipotensão ou hipertensão arterial, arritmias, dor de cabeça, dores abdominais, náuseas, vômitos, febre, sudorese, tremores, fraqueza, vertigem, convulsão, linfagite, parestesia, paralisia muscular e choque, podendo até ocorrer o óbito. Embora as lesões ocorram com maior freqüência nos membros, há casos registrados de lesão no tórax com fatalidade. A penetração do aguilhão em qualquer parte do tronco ou cabeça é considerada uma grave emergência médica devido às hemorragias internas não controladas, à inexorável necrose tecidual das vísceras ou órgãos vitais atingidos e inoculados com peçonha e à infecção secundária.
Fatalidades como essa que ocorreu com o apresentador de TV australiano Steve Irwin são raras, mas mostram o quanto devemos ter respeito e cuidado ao interagir com esses e outros animais selvagens. O tipo de programa de televisão que o apresentador fazia, que tem sido copiado inclusive no Brasil, utiliza-se de domínio, manipulação e abuso de animais com o objetivo de mostrar quão corajosos são seus protagonistas. Ao contrário do que supostamente pretendem, além de se colocarem em perigo real, deseducam os telespectadores e mostram um grande desrespeito pela natureza.
* Marcelo Szpilman é biólogo marinho e autor dos livros Guia Aqualung de Peixes, Aqualung Guide to Fishes, Seres Marinhos Perigosos, Peixes Marinhos do Brasil e Tubarões no Brasil. Atualmente é diretor do Instituto Ecológico Aqualung e do Projeto Tubarões no Brasil (PROTUBA). É membro da Comissão Científica Nacional (COCIEN) e da Confederação Brasileira de Pesca e Desportos Subaquáticos (CBPDS).