Ambiente Legal entrevista o Ministro Herman Benjamin
Por Simone Silva Jardim*
Praticamente uma unanimidade no Plenário do Senado Federal. O novo integrante do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, empossado em setembro, obteve a aprovação de 51 senadores – houve uma abstenção e dois votos contrários. O ministro Benjamin tem 48 anos e é um dos mais jovens integrantes do STJ, sendo a oitava indicação do presidente Lula a essa Corte.
Paraibano nascido na pequena Catolé de Rocha, o ministro Benjamin sempre teve vocação para abraçar idéias sintonizadas com o exercício pleno da cidadania e, sem perda de tempo, capitanear os esforços para trazê-las à realidade. Em 1982, dois anos após se formar em Direito, iniciou, em São Paulo, sua carreira de promotor no Ministério Público Estadual. Naquele mesmo ano, passou a liderar uma iniciativa arrojada, que seria o embrião do Código de Defesa do Consumidor, que só foi sancionado oito anos mais tarde.
O ex-procurador também participou ativamente da elaboração da Lei de Crimes Ambientais, sancionada em 1998. Na University of Illinois College of Law concluiu um mestrado e nos últimos doze anos acumulou sua atuação no MP paulista com a nobre função de educador, ministrando as disciplinas de Direito Ambiental Comparado e Direito da Biodiversidade na Universidade do Texas.
“O Direito Ambiental da Biodiversidade nasceu e tem grande força no Hemisfério Norte e não, como seria natural, em países como o Brasil, denominados de megabiodiversos, onde sequer essa disciplina tem a importância que merece. É uma contradição lamentável, pois a matéria ambiental não pode mais ser encarada como algo de pouca relevância ou que interessa tão-somente a advogados ou operadores do direito. Essa disciplina jurídica interessa, sim, a todas as profissões e carreiras, pois hoje não se pode admitir que economistas, biólogos, administradores, entre outros recém-formados e também seus colegas mais experientes não detenham esse tipo de conhecimento”, ressalta o ministro que, nesta entrevista exclusiva à Revista Ambiente Legal analisa vários outros temas de máxima atualidade.
Segue a entrevista:
Ambiente Legal – Fazendo um paralelo entre o Código de Defesa do Consumidor, de 1990, e a legislação ambiental, especialmente o artigo 225 da Constituição Federal que trata da matéria, é possível que, em um futuro próximo, o conhecimento que hoje praticamente toda a população tem sobre seus direitos básicos de consumidor venha a acontecer em relação aos direitos e deveres na área ambiental?
Ministro Antonio Herman Benjamin – Na área dos direitos do consumidor, os problemas afetam o bolso ou a saúde de pessoas individualmente, mesmo que esses problemas tenham conotação coletiva. No campo ambiental, tirando casos excepcionais, como o da contaminação, na década de 1970, dos moradores de Vila Socó, em Cubatão, a sociedade, vamos dizer que “enxerga” a degradação, mas não tem a dimensão de seu verdadeiro impacto. Por isso é muito mais fácil a mobilização de pessoas no campo do direito do consumidor. No campo ambiental as pessoas estão lutando pelo interesse coletivo quase sempre por um sentimento de solidariedade. Elas não conseguem perceber o interesse próprio envolvido em danos que já estão sofrendo, como a poluição sonora e a atmosférica nas grandes cidades. Acham natural se adaptar a essas más condições e ainda não têm a percepção de que seu bolso e qualidade de vida já estão sendo enormemente atingidos em razão desses problemas de ordem ambiental.
Ambiente Legal – Talvez porque a idéia, ainda dominante, seja que este é o preço que a sociedade tem de pagar para alcançar o progresso. E aí adentramos uma outra discussão, que na área acadêmica tem rendido debates exaltados entre os chamados biocentristas, de um lado, e os desenvolvimentistas, do outro. É possível a conciliação desses dois pontos de vista?
MAHB – Pelo menos no meu entender, o biocentrismo não é uma corrente anti-desenvolvimento. O biocentrismo apenas prega que o ser humano é parte da Natureza e que ele não está acima, como a divindade na hierarquia, em relação aos outros seres. Dessa perspectiva, entre o Homem e os outros seres há uma relação de permanente simbiose, de articulação, de cooperação e, naturalmente, de antagonismo em certos momentos. Portanto, é equivocado, na minha visão, dizer que os biocentristas estão em oposição ao desenvolvimento. Pode-se perfeitamente trazer a concepção biocêntrica para o direito ambiental, o que nos faz perceber que todos somos parte da Natureza e, por sua vez, essa visão holística pode contribuir para a superação da pobreza e da miséria com um tipo de desenvolvimento de base sustentável. O que não podemos admitir, e não importa a filiação filosófica que se tenha, é a especulação e a espoliação dos recursos ambientais, apresentadas como única opção para a superarmos os impasses atuais. Se derrubar florestas, destruir rios, acabar com mangues, fosse a única porta para o desenvolvimento, alguns estados brasileiros que hoje são “lanterninha” em termos de proteção ambiental, como o Maranhão, que praticamente derrubou sua floresta inteira, e Rondônia, que segue na mesma direção, seriam verdadeiros Eldorados e modelos de riqueza para o pais, o que realmente não são e nunca serão se não mudarem suas rotas.
Ambiente Legal – O uso de mecanismos de composição, a exemplo da arbitragem e dos Termos de Ajustamento de Conduta firmados pelo Ministério Público, são preferíveis aos litígios judiciais tanto para prevenir atos lesivos ao ambiente como para restaurar mais eficazmente os ambientes já degradados?
MAHB – A composição amigável é sempre a melhor alternativa, mas não podemos excluir inteiramente a busca da prestação jurisdicional, mesmo quando uma composição amigável seria possível, pois há hipóteses excepcionais em que a via judicial é mais educativa, e não apenas para o poluidor. Ela vai formar a jurisprudência para outros atores em situação semelhante. Não é incomum, na composição amigável, depararmo-nos com termos de ajustamento de conduta que de certa maneira limitam a divulgação dos fatos ocorridos ou da forma como ocorreram, “retocam” esses fatos e, com isso, não se acende um sinal vermelho entre poluidores que estão na mesma situação ou que só mais adiante atingiriam aquele estado. A regra é, sem dúvida, mas, em alguns casos, a composição, mas em alguns casos excepcionais, e não vou dar nenhum exemplo concreto porque nada me ocorre agora, os órgãos de implementação da legislação ambiental e outros co-legitimados, como as ONGs, tomam, acertadamente a decisão política de buscar a solução daquela degradação em juízo. É uma técnica utilizada para dar repercussão a fatos que, de outra forma, seriam resolvidos entre quatro paredes, com uma divulgação mínima e fator educativo praticamente sem o alcance social.
Ambiente Legal – Como o senhor avalia o papel do Judiciário na implementação da legislação ambiental? E o Ministério Público, estadual e federal, tem cometido abusos?
MAHB – O Judiciário, assim como outros implementadores do direito, estão inseridos em um processo de aprendizagem no campo ambiental. Esses problemas são antigos, mas juridicamente as soluções dadas são muito recentes. Estamos nos deparando com esse admirável mundo, cujos valores e técnicas de atuação são completamente diversos daquilo que tínhamos vinte anos atrás. Há que se considerar que temos um Judiciário que, no campo institucional, é forte, o que não ocorre necessariamente em todos os países. A experiência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que tem uma câmara especializada em matéria ambiental, é um exemplo que deve inspirar iniciativas por todo o país. Os desembargadores dessa instância são pessoas de perfil moderno, que julgam as causas ambientais baseando-se nos objetivos traçados na Constituição Federal de 1988. O bom juiz é este: o que olha para a legislação ambiental e não vê o Código Civil, pois este ainda carece dos princípios e novos instrumentos que são criação da pós-modernidade. E é bom que se faça a clara distinção entre o ambientalista e o juiz com sensibilidade ambiental. Agora que sou ministro tenho a responsabilidade funcional de ser um julgador com sensibilidade ambiental e com a humildade para reconhecer, nos termos do artigo 225 da Constituição Federal, que é dever da coletividade, inclusive de todos os integrantes do Poder Judiciário, não fechar os olhos à destruição da Natureza e muito menos ao sofrimento das largas parcelas da população que são vítimas da degradação ambiental. Quanto ao MPE e MPF, de uma maneira geral têm prestado um serviço muito importante à sociedade no campo ambiental. A única crítica que faria é que, em alguns casos, a intervenção dos promotores vem a ocorrer muito tardiamente em empreendimentos já instalados. Essa intervenção já deveria ter sido feita na fase da licença prévia.
Ambiente Legal – O licenciamento ambiental virou uma espécie de calcanhar de Aquiles de todos os envolvidos. O que pode ser feito para tornar esse processo menos polêmico?
MAHB – Nessa polêmica não podemos perder de vista que muitas questões ambientais foram federalizadas não por vontade da União e do Poder Judiciário, mas por determinação de nossa Constituição Federal. Um equívoco que precisa ser definitivamente superado é que as atribuições ambientais não devem ser exercidas com exclusividade por nenhum ente. Em um caso qualquer de licenciamento ambiental, a CF é clara: a competência é concorrente entre União, Estados e municípios, o que vale para a edição de leis e também para sua implementação. É fundamental o combate a esse fenômeno da “tribalização” no licenciamento ambiental que hoje vemos por parte dos entes da federação, pois União, Estados e municípios devem cooperar e dialogar em todo esse processo e não se comportar como antagonistas. Isso é lamentável, já que cria dificuldades não somente para os órgãos ambientais, mas para os próprios empreendedores realmente empenhados em solucionar seus impactos. Nessa matéria precisamos de segurança jurídica. Muitas vezes o empreendedor se sente não apenas prejudicado, mas cooptado por uma lógica incorreta de licenciamento. É muito importante que o empresário recuse, apoiado em uma boa assessoria jurídica, possíveis facilidades oferecidas por um dos entes da federação, sob pena de mais à frente sofrer com exigências legítimas feitas pelos demais entes envolvidos no processo de licenciamento ambiental, o que pode vir a arranhar desnecessariamente sua imagem perante a opinião pública.
Ambiente Legal – Mas não há uma forma de tornar o licenciamento ambiental de empreendimentos de menor impacto mais objetivo e célere?
MAHB – Antes de mais nada, é importante que o empreendedor veja o licenciamento ambiental não como um óbice, mas sim como uma caixa de proteção que vai garantir segurança jurídica ao seu futuro negócio. Outra tarefa que não é fácil, proposta em sua pergunta, mas que precisa ser feita, é a distinção entre empreendimentos de pequeno impacto e os outros de maior potencial degradador, de forma a ter para cada um deles um tipo diferenciado de licenciamento ambiental. Essa abordagem é realmente difícil, mas não é impossível a criação de um sistema de licenciamento ambiental mais célere para empreendimentos de nenhum ou mínimo impacto ambiental. Outro ponto a que chamo a atenção, e que toda a sociedade precisa entender, é que o processo de licenciamento não existe para, ao seu final, necessariamente chegar à liberação de uma licença. Se for assim encarado, então não estamos diante de um processo de licenciamento ambiental, mas de legitimação das atividades econômicas.
Ambiente Legal – Ministro, então o senhor está afirmando que o nosso sistema de licenciamento ambiental está desvirtuado?
MAHB – Se a lógica não comporta a negativa da licença estamos, sim, desvirtuando e descaracterizando todo esse processo. Hoje, os empreendedores não aceitam a negativa dos órgãos ambientais porque partem da premissa que o licenciamento serve para alcançar uma licença ambiental, mais ou menos nos moldes que eles queriam desde o início ou com um pouco mais de exigências. Os órgãos ambientais também adotam essa mentalidade incorreta, pois vêem o licenciamento ambiental como uma decorrência do direito de propriedade e não como algo que preexiste a esse direito. Na ótica do direito ambiental, o licenciamento é o prius, ou seja, é algo que antecede o direito de propriedade, pois este último não se constitui em um direito de exploração integral, completa e plena da propriedade. Dentro dos parâmetros do direito ambiental, o direito de propriedade restringe-se à exploração de alguma ou de algumas das qualidades da propriedade. O proprietário não pode, portanto, fazer tudo o que quer em sua propriedade particular. Por isso o licenciamento ambiental não é a conseqüência necessária e óbvia do direito de propriedade. Ele é um instrumento que existe em favor da sociedade e que se antepõe ao direito de propriedade. Portanto, pode ou não ser concedido.
*Entrevista publicada na Revista Ambiente Legal, ano II, número 5, out/nov/dez de 2006 – páginas verdes.
Obs: Esta foi a primeira entrevista concedida pelo Ministro Herman Benjamin a um órgão de mídia especializado após sua posse.
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