Por Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos*
Não resta a menor dúvida que o planeta sofre desde as últimas décadas um processo contínuo de aquecimento global, e que poderá ter consequências de extrema gravidade para o meio ambiente e, por decorrência, para a Humanidade.
Mesmo que de quantificação ainda a ser melhor definida, sabe-se também que parte desse aquecimento está associado a atividades humanas, o que nos obriga, por responsabilidade civilizatória elementar, a agir imediatamente no sentido de restringir ao máximo os efeitos dessa participação. Até porque é tudo que está ao nosso alcance no propósito de amenizar os efeitos do processo de aquecimento, já que nada poderemos sequer imaginar interferir em dinâmicas de ordem planetária como a progressão de manchas solares, ou até sobre fenômenos climáticos mais caseiros como El Niño e La Niña.
No entanto, cabe lembrar que supervalorizar o papel das emissões humanas no aquecimento poderá vir a ser tão prejudicial para a sociedade humana como minimizá-lo.
Como sempre em situações como essa, o caminho mais sensato está no desenvolvimento de pesquisas científicas voltadas à sua quantificação.
Por outro lado, verifica-se nos últimos tempos que todas as discussões sobre políticas públicas ambientais para as cidades passaram a destacar, e muitas a priorizar, o combate ao aquecimento global no âmbito das bandeiras voltadas à melhoria da qualidade ambiental urbana.
Não cabe aqui criar qualquer polêmica sobre o fenômeno do aquecimento global em si, ou sobre a ordem de alterações climáticas que estudos vários e de várias origens estão a sugerir para os próximos anos, e muito menos discutir a validade da associação de eventos climáticos extremos contemporâneos ao fenômeno geral do aquecimento global.
O fato concreto é que, por força de uma nova variável climática, muito à moda nos últimos tempos, observa-se a tendência em se abandonar as muitas e antigas reivindicações e lutas pela melhoria ambiental no espaço urbano, carência de primeira ordem para os cidadãos de nossas cidades, com destaque aos segmentos populacionais de baixa renda.
Carências, diga-se de passagem, já gravíssimas do ponto de vista da saúde física e mental das populações urbanas desde muito antes do advento da polêmica sobre o aquecimento global.
E mais, carências cujas soluções para sua eliminação ou mitigação não passam pela necessidade de reversão das verificadas taxas de aquecimento global.
Exemplificando, o que teria a ver a solução para casos tão comuns de crianças brincando em córregos poluídos e/ou vivendo em ruas com esgotos correndo a céu aberto, com a necessidade de redução de emissão de gases que vão colaborar com o efeito estufa? O que impediria a decisão de aumentar as áreas verdes urbanas, necessidade ambiental de primeira ordem, ou a proteção de mananciais hídricos que vem sendo sistematicamente “engolidos” pela urbanização predatória, antes de termos sob controle a emissão de gás carbônico.
Na mesma toada, o que nos impede de mitigar radicalmente os acidentes em áreas de risco, de universalizar o saneamento básico integral, de estender os sistema de coleta e tratamento de lixo, de acabar definitivamente com os lixões e com o lançamento irregular de lixo urbano e resíduos perigosos, de criar um sistema efetivo de fiscalização e impedimento da contaminação de águas e solos urbanos e da poluição atmosférica, de implementar um amplo programa de recuperação da capacidade de reter águas de chuva, assim colaborando para a redução do risco de enchentes, mesmo antes de conseguirmos alterar a matriz energética com redução do uso de combustíveis fósseis?
Como se vê, são anos de ausência ou extrema lentidão de medidas efetivas para uma indispensável melhoria da qualidade geológica/ambiental/sanitária urbana, prolongando inexplicavelmente a vigência de condições ambientais desumanas e inaceitáveis em nossas cidades. São anos de ausência ou de extrema lentidão no ataque a problemas ambientais antigos e reais que não tem associação alguma com o fenômeno do aquecimento global e a ele não podem ser debitados.
É nesse contexto ambientalmente trágico que uma incorreta consideração da nova variável climática, o aquecimento global, tem na prática servido como justificativa e pretexto para a desatenção de autoridades públicas e privadas no enfrentamento das várias carências ambientais e de saneamento, que vem desqualificando a saúde física e mental das populações urbanas desde há muito tempo, como também para que essas mesmas autoridades aliviem-se das responsabilidades implicadas em seu criminoso descompromisso na implementação das indispensáveis medidas preventivas e corretivas para eliminação de áreas de risco.
*Geól. Álvaro Rodrigues dos Santos (santosalvaro@uol.com.br) Ex-Diretor de Planejamento e Gestão do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas Autor dos livros “Geologia de Engenharia: Conceitos, Método e Prática”, “A Grande Barreira da Serra do Mar”, “Diálogos Geológicos”, “Cubatão”, “Enchentes e Deslizamentos: Causas e Soluções”, “Manual Básico para elaboração e uso da Carta Geotécnica”, “Cidades e Geologia” Consultor em Geologia de Engenharia e Geotecnia .
Fonte: O Autor
Publicação Ambiente Legal, 23/01/2025
Edição: Ana Alves Alencar
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