Plantio direto de sementes e reúso do solo se mostram técnicas viáveis para restaurar a vegetação nativa
Por André Julião/Fapesp
Em novembro de 2016, um grupo de biólogos, agrônomos e técnicos, alguns deles pilotando tratores com carretas normalmente usadas para aplicar calcário no solo, espalhou terra misturada com sementes de 80 espécies de gramíneas, arbustos e árvores nativas do Cerrado em um plantio experimental de 96 hectares no município de Alto Paraíso, nordeste de Goiás, que faz parte do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Em março deste ano, as plantas – já com 10 centímetros de altura – começavam a formar um tapete verde sobre a área antes ocupada por um capinzal de espécies africanas, que crescem com rapidez e tomam o espaço das nativas. Com esse trabalho, o grupo Restaura Cerrado, com pesquisadores do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, da Embrapa Cerrados e da Universidade de Brasília (UnB), pretende colher evidências adicionais de que a chamada semeadura direta pode realmente ser uma alternativa viável para repor a vegetação desse ambiente natural do Brasil. Essa técnica de plantio consiste na aplicação de sementes já misturadas com terra sobre uma área a ser restaurada, que foi avaliada também por outro grupo de pesquisa em São Paulo.
“Estamos mostrando que o Cerrado pode, sim, ser recuperado, diferentemente do que se tem dito, até mesmo em centros de pesquisa acadêmicos”, afirma o engenheiro florestal Alexandre Sampaio, pesquisador do Centro Nacional de Avaliação da Biodiversidade e Pesquisa e Conservação do Cerrado do ICMBio, coordenador do experimento realizado desde 2012 na Chapada dos Veadeiros. Com uma área original de 2 milhões de quilômetros quadrados (km2), o equivalente a 22% do território nacional, o Cerrado é o segundo maior ambiente natural brasileiro, atrás apenas da Amazônia, e encolhe continuamente. Análises de imagens de satélites indicaram que a área sofreu uma redução de 260 mil km2, o equivalente ao dobro do tamanho da Inglaterra, em consequência da expansão da agropecuária, de 1990 a 2000 (ver Pesquisa FAPESP no 231).
Estudos já realizados indicaram que a semeadura direta poderia ter um custo cerca de oito vezes menor que o de plantio de mudas de árvores, a técnica mais usada para recompor a vegetação original do Cerrado, que consiste no cultivo inicial das plantas em viveiros, antes de serem levadas para o campo. O problema é que as espécies desse tipo de vegetação nativa formam raízes muito longas e, para serem produzidas em viveiros, precisariam de saquinhos ou tubetes muito longos. “É comum uma árvore de 5 anos de idade ter poucos centímetros de altura e vários metros de raiz”, observa Sampaio. Segundo ele, outros grupos importantes de plantas, os arbustos e as gramíneas, não são produzidos em viveiros. “A semeadura direta de arbustos e gramíneas nativas permite a rápida ocupação do solo, reduzindo a necessidade de roçar e aplicar herbicida entre as linhas de plantio de árvores”, diz a bióloga Isabel Belloni Schmidt, professora da UnB.
Além dos 96 hectares (1 hectare equivale a 10 mil metros quadrados) semeados no final de 2016 como resultado de uma parceria com uma empresa de transmissão de energia que precisava fazer uma compensação ambiental, os pesquisadores de Brasília fizeram outros três plantios com semeadura direta em áreas menores na Chapada dos Veadeiros entre 2012 e 2014 e quatro no Distrito Federal. Em seguida, durante dois anos e meio, acompanharam o crescimento de 50 espécies nativas de árvores, 12 de arbustos e 13 de gramíneas. Após o primeiro ano, 36 espécies arbóreas e cinco arbustivas apresentaram sobrevivência acima de 60%, considerada satisfatória. Algumas plantas chegaram a 90%, como o cajuí (Anacardium humile), arbusto de até 2 metros (m) de altura e um fruto falso – ou pseudofruto, resultante de um tecido próximo à flor –, conhecido como caju-do-cerrado, de casca vermelha, polpa branca e suculento, usado em sucos, doces e licores. Gramíneas nativas como a Andropogon fastigiatus e a Aristida riparia já cobriam 30% da área no final do primeiro ano após o plantio, como detalhado em um artigo de março de 2017 na Brazilian Journal of Botany. “Ainda restam em torno de 500 hectares para serem recuperados no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Vamos buscar parcerias para restaurá-los e monitorar os plantios já feitos para ver como prosperam. Já sabemos que quanto melhor prepararmos o solo e retirarmos as gramíneas exóticas e quanto mais sementes das espécies certas utilizarmos, maior será a chance de restaurar o Cerrado por meio da semeadura direta”, diz Sampaio.
Bons resultados do Topsoil
A transferência da camada superficial da terra, o chamado topsoil, de áreas conservadas para pastos abandonados e outras zonas a serem ocupadas por vegetação nativa, é também uma metodologia que tem mostrado bons resultados. Foi aplicada de forma bem-sucedida no reaproveitamento das plantas da Mata Atlântica (ver Pesquisa FAPESP no 209). A técnica é muito simples: antes da construção de uma hidrelétrica ou da implantação de uma área de mineração, por exemplo, um trator remove uma camada de 30 a 40 centímetros do solo, rico em matéria orgânica, microrganismos, raízes e sementes, e transfere esse material normalmente descartado para uma nova área a ser ocupada com vegetação nativa.
Em novembro de 2013, o ecólogo Daniel Vieira, pesquisador da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, e o biólogo da UnB Maxmiller Ferreira acompanharam a retirada do topsoil de uma propriedade de 2 hectares, a 10 km de Brasília, para permitir a expansão de uma fábrica de cimento. Em seguida, o material foi depositado em um pasto abandonado a 1,4 km dali, como detalhado em um artigo a ser publicado em junho na Ecological Engineering. Seis meses depois, os pedaços de troncos e raízes que rebrotaram representavam 74% do número de espécies de árvores da área original, de onde veio o topsoil. Depois de 28 meses, cresciam ali 51 espécies de árvores, 8 de trepadeiras, 12 de arbustos e 34 de ervas, indicando que a diversidade havia começado a se restabelecer. “É muito importante reaproveitar esse solo. Muita coisa rebrota nele, trazendo uma grande variedade de espécies”, recomenda Vieira.
Segundo ele, a densidade, a altura e a extensão da copa das árvores indicavam que o processo de formação de uma mata semelhante à original seguia em ritmo acelerado e instalava-se uma cobertura vegetal cuja sombra deveria conter o crescimento dos capins invasores, na maior parte braquiária (Urochloa decumbens) e andropogon (Andropogon gayanus). A densidade de árvores alcançada foi 11 vezes maior do que nas restaurações de Cerrado feitas a partir do plantio de mudas, que em geral estabelecem um predomínio de espécies arbóreas e deixam de lado as lianas, arbustos e ervas, importantes no começo da regeneração e na recuperação dos processos ecológicos.
As secretarias de Meio Ambiente do Distrito Federal e de Mato Grosso reconheceram a utilidade desses estudos. “Com base nos resultados dessas pesquisas, estamos incorporando a transferência de topsoil e a semeadura direta às regras de compensação ambiental”, confirma Raul do Valle, chefe da Assessoria Jurídico Legislativa da Secretaria de Meio Ambiente do Distrito Federal. Em Mato Grosso, com cerca de 60% do território originalmente coberto por Cerrado, está em fase de elaboração um decreto que regulamentará a restauração de áreas degradadas usando essas técnicas, que, assim como no Distrito Federal, serão monitoradas. “Vamos avaliar a cobertura de solo, riqueza e densidade de regenerantes nativos [raízes, troncos, tubérculos etc.], aliados à avaliação de imagens de satélite, fotografias e vistorias em campo”, explica a bióloga Ligia Nara Vendramin, analista de meio ambiente da Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso. Por sua vez, o grupo de pesquisa Restaura Cerrado e a Rede de Sementes do Cerrado, que promove a coleta de sementes e as distribui para projetos de restauração florestal, publicaram o Guia de restauração do Cerrado, promovem cursos para produtores rurais e participam de debates com formuladores de políticas públicas e de feiras agropecuárias para disseminar as técnicas de restauração entre os possíveis usuários.
Regeneração natural
A engenheira florestal Giselda Durigan, com sua equipe do Instituto Florestal em Assis, interior paulista, refez a vegetação nativa de uma antiga pastagem da Floresta Estadual de Assis usando o topsoil coletado em uma área conservada de Cerrado na Estação Ecológica de Santa Bárbara, a 150 km de distância. Em outro experimento, Giselda e a doutoranda em ecologia Natashi Pilon, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), decepcionaram-se com os resultados da técnica chamada transferência de feno. Bastante utilizada em países de clima frio ou temperado do hemisfério Norte, essa técnica consiste em roçar e reunir a vegetação herbácea e as sementes que cobrem o solo de uma área conservada e depois espalhar esse material no terreno a ser restaurado. Apenas duas espécies do terreno original reapareceram. “As sementes do Cerrado germinam mais facilmente quando o clima esquenta muito durante o dia e esfria à noite”, observa Giselda. “Provavelmente, a palha manteve a temperatura estável, prejudicando a germinação.”
Muitas vezes, esse tipo de vegetação pode se regenerar naturalmente. Em um pasto abandonado de uma fazenda em Canarana, Mato Grosso, o engenheiro-agrônomo Mário Cava, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Botucatu, e o grupo de Giselda registraram 112 espécies de árvores, das quais apenas 16 tinham sido plantadas dois anos antes. O estudo integrava um experimento instalado pela Embrapa Agrossilvipastoril, comparando a regeneração natural com a semeadura direta e o plantio de mudas. O plantio de mudas apresentou custos mais elevados e não resultou em densidade ou riqueza superiores às outras abordagens. “A semeadura direta de espécies nativas parece promissora num primeiro momento, mas depois o que vimos foi uma baixa diversidade, com a predominância de apenas uma ou duas espécies”, explica a pesquisadora, apresentando um resultado diverso da experiência realizada em Goiás e Distrito Federal.
A regeneração natural, embora seja o método mais barato, pode ser muito lenta e nem sempre atende às expectativas. “Em alguns casos ela seria até melhor que o plantio de mudas, mas iria demorar 20 anos para se concretizar. E quem está cumprindo acordos judiciais de recuperação ambiental normalmente tem alguns meses ou poucos anos para fazer a restauração”, conta o engenheiro-agrônomo Pedro Brancalion, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP). Sua conclusão se apoia em análise publicada em novembro de 2016 na revista Biotropica comparando 42 programas de empresas que precisavam restaurar áreas de Mata Atlântica, Amazônia e na transição desses ambientes com o Cerrado para cumprir o Código Florestal ou acordos com a Justiça.
O capim braquiária, uma gramínea exótica, responde por parte da dificuldade de refazer a vegetação nativa. Em um estudo concluído no início deste ano, a equipe do Instituto Florestal observou que a braquiária, por crescer muito e com rapidez, causa perdas muito grandes entre as plantas nativas. “As espécies nativas não conseguem competir com a braquiária”, salienta Giselda. Entre as técnicas de erradicação avaliadas, a que apresentou melhor resultado foi a combinação da queima controlada com a posterior retirada das touceiras de braquiárias que rebrotam, uma abordagem semelhante à adotada pelo Restaura Cerrado. “O uso de herbicida pode ser eficiente para acabar com o capim invasor, mas mata também os nativos”, alerta a pesquisadora.
Apelo da ABC e SBPC
Em um comunicado oficial divulgado em abril, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) enfatizaram a necessidade de medidas urgentes de conservação dos ecossistemas naturais brasileiros, como a implantação da Política Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Proveg), e pediram aos governos federal e estaduais a ampliação das unidades de conservação dos atuais 7,5% para pelo menos 20% da área original do Cerrado, um apoio efetivo às populações tradicionais e indígenas, ameaçadas pela expansão das cidades e da agropecuária, e a ampliação das pesquisas científicas e tecnológicas que propiciem maior aproveitamento dos recursos naturais desse ambiente natural brasileiro. “A pecuária nas áreas conservadas, com uma baixa densidade de gado, certificação e legislação específica, usando apenas os capins nativos, pode ser uma solução viável”, comenta Giselda. No Rio Grande do Sul, 24 pecuaristas e ambientalistas, depois de 12 anos de negociação, implantaram métodos certificados de criação de gado em campo nativo, vegetação típica do Sul do país (ver Pesquisa FAPESP no 240).
Projeto
Invasão do campo Cerrado por braquiária (Urochloa decumbens): Perdas de diversidade e experimentação de técnicas de restauração (nº 13/24760-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Giselda Durigan (IF); Investimento R$ 139.392,99.
Artigos científicos
BRANCALION, P. H. S. et. al. Balancing economic costs and ecological outcomes of passive and active restoration in agricultural landscapes: The case of Brazil. Biotropica. v. 48, n. 6, p. 856–67, 2016.
CAVA, M. G. B. et. al. Comparação de técnicas para restauração da vegetação lenhosa de Cerrado em pastagens abandonadas. Hoehnea. v. 43, n. 2, p. 301-15. 2016.
FERREIRA, M. C. et al. Topsoil for restoration: Resprouting of root fragments and germination of pioneers trigger tropical dry forest regeneration. Ecological Engineering. v. 103, p. 1-12. 2017.
PELLIZZARO, K. F. et al. ‘‘Cerrado’’ restoration by direct seeding: Field establishment and initial growth of 75 trees, shrubs and grass species. Brazilian Journal of Botany, p.1-13. 2017.
Livro
SAMPAIO, A. B. et. al. Guia de restauração do Cerrado. V. 1 – Semeadura direta. Universidade de Brasília, Rede de Sementes do Cerrado. 2015.
Fonte: Revista Fapesp