Transcendência e ecologia no sepultamento dos nossos corpos
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
A morte nunca é um fim. Ela representa uma passagem para outra dimensão da vida. Nosso corpo perece, mas não o que somos. Essa é a razão para tratarmos sempre de forma ritual o depósito do corpo sem vida do ser humano.
Descobertas arqueológicas de fósseis humanos e restos de cemitérios comprovam a constante histórica de rituais de sepultamento ou cremação dos corpos e, embora a banalização da morte e o desprezo oficial pela vida dos cidadãos seja a tônica da atualidade, a preocupação das pessoas com o destino do corpo sem vida continua igual.
A arquitetura desse descarte fúnebre, no entanto, assume formas inusitadas.
Digno de nota são os antigos sambaquis, enormes montanhas erguidas em baías, praias e foz de grandes rios, por povos que habitaram o litoral do Brasil na Pré-História.
Os sambaquis são constituídos por cascas de moluscos (“tamba ki” significa “amontoado de conchas” em tupi). neles foram encontrados ossos de mamíferos, equipamentos primitivos de pesca, objetos de arte e ossadas humanas, o que comprova que os sambaquis, tidos como “lixeira pré-histórica”, serviam também como cemitérios.
Estruturados como cemitérios verticais, ao serem explorados por arqueólogos, foram encontrados restos de fogueira, de comida, objetos pessoais e mais de 40 mil corpos humanos nos sambaquis espalhados por todo o litoral brasileiro. Suas elevações, em muitos casos, ultrapassaram 30 metros de altura, com centenas de camadas de esqueletos e conchas.
A referência aos sambaquis nos remete, também, à uma forma interessante de “envolver” propositadamente o corpo humano sem vida, com outras formas de vida, de forma a vê-lo absorvido por estas. Soa algo ecológico e transcendental.
Na atualidade, novos tipos de “sambaquis” surgem como uma forma ecologicamente correta de projetar essa simbiose entre morte e vida.
Empresas se dedicam, hoje, a oferecer às pessoas uma melhor e menos traumática forma de enterrar ou cremar seus entes queridos. O negócio é rentável e o mercado oferece opções variadas.
Espaços em terrenos próprios para enterro, diversos tipos de caixões e recipientes em casos de cremação indicam não apenas o atendimento a uma demanda pessoal mas, também, uma progressiva preocupação com a falta de terrenos disponíveis para serem utilizados como cemitérios, próximos aos grandes centros urbanos.
Na Itália surge agora uma opção “ambientalmente correta”, porém polêmica: a possibilidade de tornar o morto uma árvore.
A intenção do “The Capsula Mundi” é muito próxima da dos sambaquis. A diferença é o tipo de material organico que travará a simbiose com o cadáver.
A idéia é mudar o modo como pessoas são tradicionalmente enterradas, integrando-as à natureza. Seria o ciclo da vida transformando cemitérios em “florestas de memórias”.
Idealizado pelos designers italianos, o projeto consiste em uma cápsula orgânica e biodegradável que é capaz de transformar um corpo em decomposição em nutrientes para uma árvore.
Os designers pretendem relacionar a natural decomposição dos corpos, tornando-os alimento para a árvore escolhida, ainda em vida pela pessoa, que firma um contrato de compra. Competirá aos familiares e amigos se encarregarem de cuidar da árvore.
O grande entrave do projeto é a proibição do governo italiano do uso de certos tipos de caixões bem como as normas de controle ambiental absolutamente desumanizadoras, que reduzem o corpo humano a uma fonte de poluição equiparável ao esgoto industrial…
Os designers informaram que estão trabalhando no sentido de mudar essa realidade e oferecer às pessoas a chance de, após sua morte, contribuírem com seu corpo físico, para a preservação da natureza. Para eles, o projeto permite que a morte se transforme em vida.
O processo do The Capsula Mundi consiste em colocar o corpo do falecido dentro de uma cápsula orgânica e enterrar. Depois é plantado a árvore ou uma semente. escolhida pela pessoa, por cima para aproveitar a matéria orgânica.
A proposta é uma alternativa ecologicamente sustentável sem ter que derrubar árvores para produção de caixões e é considerada ousada por mexer com tradições seculares em relação à morte.
No entanto, o projeto resgata a busca da transcendência, reedita em novas bases o ritual do sepultamento e restabelece, de forma digna, a inclusão do ser humano no ciclo da vida natural.
Não deixa de ser uma bela forma de manter vivas as lembranças dos entes queridos e ainda contribuir para a preservação da vida no planeta.
Para pensar…
Fontes:
http://mundoestranho.abril.com.br/materia/o-que-sao-sambaquis
http://awebic.com/cultura/adeus-caixoes-capsula-organica-transforma-pessoas-falecidas-em-arvores/
http://odia.ig.com.br/noticia/mundoeciencia/2015-03-03/projeto-propoe-tranformar-pessoas-que-ja-morreram-em-arvores.html
http://www.capsulamundi.it/
Leia também: Urna biodegradável enterra as cinzas de morto e germina uma árvore
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Jornalista, é Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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Olá Antonio.
Muito interessante seu post. Ao lê-lo lembrei que já em 2011 tinha assistido e traduzido uma palestra no TED de uma designer coreana, Jae Rhim Lee, sobre o mesmo tema. Tinha gostado tanto que a escondí no meu blog (http://piyitosblog.blogspot.com.br/2011/10/jae-rhim-lee.html). De fato, o tema morte, principalmente a “nossa morte” é um tema delicado e controverso. Mesmo para aqueles que não dão o mínimo valor à vida dos outros.
As formas de encarar a morte, e ainda fazê-la participar do ciclo dos vivos é, me parece, um corolário de sustentabilidade inusitado. A não ser que nasçamos hidras ou paramécios, a morte é muito natural. Mas, ao igual que as ciclovias em avenidas apinhadas de veículos, a discussão sobre o aproveitamento do cadáver, é uma novidade à qual teremos que nos acostumar. Nada mais lógico que ideias inovadoras nasçam dessa discussão.
Parabéns pelo tema.
Obrigado, Lionel!
Belas palavras.
Abraço.
AFPP
Olá amigos! Acho incrível esta forma de voltarmos ao ambiente após a morte, gerando nova vida. Isto me atrai enormemente. Gostaria de saber se no Brasil já existe legislação que permita esse tipo de sepultamento, caso seja declarado em vida pelo usuário? E se for possível, é necessário cremação ou poderia ser algum tipo de cápsula orgânica ou urna, semelhante às usadas pelos povos indígenas do passado? Grata pela atenção