Antifrágil no pós-normal
Por Paulo Gianolla*
Estamos vivendo uma transição, um momento de nítida aceleração de tecnologias, muitas impostas pelas necessidades e passado esse período, encerrado o isolamento, quando a preocupação com saúde e segurança de alguma forma já estarão com uma perspectiva diferente, entramos definitivamente no pós-normal. Muitas tecnologias serão absorvidas, mesmo não integralmente, passarão a fazer parte de nosso dia a dia e conforme ganham escala, diminuindo custos como toda tecnologia, ou seja, um caminho sem volta com alterações definitivas em nossos comportamentos.
E é sobre comportamentos que a mudança realmente interessa.
Vou retomar o assunto sobre o que realmente nos interessa para enfrentar a transição e como sempre pontuo: nossas questões não são tecnológicas, mas sim éticas, morais e culturais. No artigo anterior (leia aqui) cito que vivemos numa sociedade de serviços, uma era em que tudo é serviço – como trata a Lógica Serviço-Dominante – independente se você hoje trabalha sozinho ou numa grande empresa, e sobre a ordem prioritárias a serem observadas: as pessoas estão primeiro lugar. Ao final, tudo é sobre pessoas, sempre é!
Como contexto analisando o ambiente e seus personagens, cabe lembrar que já vínhamos num movimento e grande expectativa de mudança, comparável historicamente com a introdução da energia elétrica com todas as transformações que causou, ao ponto de prolongar as atividades humanas durante a noite, por exemplo.
Em alemão existe um termo, “zeitgeist” [Dzáit-Gáist], que resumiria o que estamos passando, é o espírito deste tempo, desta época, sinônimo e características desta era que vivemos. Mudanças no ambiente de negócios e suas implicações gerando novas necessidades e capacidades profissionais, nos meios e nas conexões, como no trabalho, descentralizado e remoto, agora não é opção, é obrigatório, causando maior impacto nesse mundo fundido, acelerando a fusão das esferas da sociedade e do nosso comportamento.
Então, neste “zeitgeist”, ninguém, absolutamente ninguém sairá incólume desta era de mudanças. Alcançará a todos e questões subjacentes que ainda não foram discutidas, mas que precisam ser debatidas com urgência como privacidade e segurança, saúde, bem estar coletivo e ética de um modo geral nos negócios, aquilo que queremos e concordamos.
Mas mudanças não são bem percebidas quando diluídas por muito tempo, como era até então no passado recente com a clara separação e distinção de produtores e consumidores. A rede de influências alterou.
Hoje todos somos consumidores e produtores de conteúdo, numa mistura dos dois. Somos prossumidores (neologismo originado no inglês prosumer), estamos gerando conteúdos o tempo todo, compartilhando, adentramos cada vez mais num mundo sem intermediários e isso alterou a cadeia de comando e controle. Reparou como os intermediários estão desaparecendo? Nestes dias várias reportagens tratavam justamente disso, pequenos produtores locais por não ter onde colocar seus produtos como frutas e flores, desenvolveram formas de vendas diretas aos consumidores com entregas em domicílio etc. Com esse novo modo, estão obtendo melhores resultados atendendo diretamente e tornando a volta ao modelo anterior irreversível, como já é com filmes, livros, bancos, e será assim com todos os demais conteúdos e bens.
Há uma grande preocupação com o meio digital, que é vista hoje quase que como uma obrigação, gerando ao mesmo tempo um movimento de manada e muitas dúvidas entre migrar para o ambiente 100% on line ou permanecer no físico, e se o meio irá acabar com empregos, mas isso é um erro de interpretação. Não existe uma resposta pronta como receita de bolo, depende de cada segmento e de sua participação na cadeia de valor. Basicamente o digital te daria volume, escala, porém se prepare para competir no preço pela facilidade de comparação que o meio proporciona. Talvez seu tipo de serviço nunca se torne digital, ainda que precise da necessária visibilidade e presença digital, a excelência no atendimento físico pode ser seu grande diferencial.
Adotar essa ou aquela tecnologia tanto faz, é resposta, não a pergunta em questão. Muito de nossos erros estão em dar respostas baseadas em questionamentos formulados erroneamente. Questione a verdadeira questão! Não é sobre o que você sabe, mas a qualidade das perguntas que você faz que é mais importante. A pergunta em questão é o humano, sempre é nele que precisamos centrar o olhar.
Tecnologia tem sido muito relacionada ao digital, mas não é só. Tecnologia é tudo desde que o homem encontrou uma pedra em forma de cunha e usou como objeto cortante, depois começou a produzir objetos com esse formato e assim por diante, dominou o fogo, aprimorou a agricultura, a escrita, foi acumulando conhecimento e impulsionando o desenvolvimento humano.
Um lápis é tecnologia, depende apenas como o usamos, posso escrever um poema tanto como posso furar o olho de outra pessoa. Como diz o futurista e escritor alemão Gerd Leonhard: “Tecnologia não tem ética, deve adotar a nossa”.
Tecnologia é o meio e não o fim. Ela nos trouxe até aqui, mas o que nos trouxe até aqui, não nos levará adiante! Portanto, esqueça tecnologia, a base é tecnológica, porém a transformação é cultural, de relações e de modelo de negócios.
E é nesse contexto que vamos focar pontas relevantes: o prestador de serviços ou colaborador e sua necessidade de se adaptar, e o empreendedor ou empresa, na posição de liderança.
Do lado do prestador de serviços ou colaborador, o foco em suas necessidades e a preparação em aprendizado e conhecimento para enfrentar tanta mudança em tão pouco tempo. Adaptação e busca constante de conhecimento nas mais diversas áreas são os novos requisitos.
Hoje o profissional mais desejado é aquele que transpassa várias áreas do conhecimento e se aprofunda com foco nos pontos necessários, com agilidade e plasticidade neural, misturando conhecimentos em áreas aparentemente díspares para resolver questões complexas, é identificado como perfil “T”, ou nexialista. Aquele que busca fazer constantemente novas conexões, encontrar nexo e fazer correlações em assuntos diversos.
Resumidamente a parte vertical aprofunda em habilidades diversas e contribui para o processo criativo, e a horizontal é a disposição empática para integrar disciplinas e imaginar soluções em outras perspectivas. As duas formam abordagens complementares, concentração e profundidade, flexibilidade e abrangência.
É o caso do engenheiro japonês Eiji Nakatsu que em 1989 resolveu um grave problema de ruído sonoro causado pelo deslocamento e pressão do ar nos túneis dos trens de alta velocidade usando conhecimentos adquiridos em suas horas de lazer. Ele era observador amador de pássaros e usou o mesmo design do bico do Martim Pescador para projetar o frontal do trem, a asa da Coruja para fazer o encaixe à rede elétrica e o formato da barriga do Pinguim para projetar a parte aerodinâmica. Outro exemplo é o uso pela NASA de técnicas de origami para lançar satélites, um grupo especializado planeja aquelas estruturas imensas, que por questões estruturais e de custos, são lançadas recolhidas, acionadas e armadas quando atingem a posição definitiva no espaço.
A questão é que não fomos preparados para esse modelo de originalidade adaptativa. Nossa escola era para satisfazer o modelo industrial, linear, e a maioria de nós não tem esse perfil de busca de conhecimento e discernimento na avaliação da fonte de informações. Fomos preparados para a ideia da especialização, ou perfil “I”, colaboradores individuais. Possuem conhecimentos e habilidades profundas, mas não transitam por outras disciplinas, e muitas vezes, nem querem conhecer ou interagir com outras áreas, não colaborativos.
Agora a busca é por conhecimento, interação e originalidade adaptativa, com aprendizado para a vida toda e constante requalificação. Ideias criativas adaptadas em outros contextos para maior viabilidade.
Comparamos com o Renascimento, numa nova era de iluminação como foi no período de Leonardo da Vinci (1452 / 1519) com o aprofundamento da ciência e disseminação de conhecimento com escolas etc. Como referência, da Vinci, estudioso nato acumulou conhecimento mas mais diversas áreas, como inventor, artista, escultor, cientista, engenheiro, anatomista, arquiteto, músico. Ou seja, um polímata, especialista em aprendizado e integração. Essa seria a melhor condição de empregabilidade, relevância e valor, ou ao menos a sua busca.
Precisamos de um ‘Novo Renascimento’, mas em nós! A ciência e tecnologia já estão ai ao nosso dispor, não é isso que falta, a humanidade nunca teve tantos recursos disponíveis antes.
Do lado do empreendedor ou das empresas, gosto muito – da fala e da ação efetiva – do empreendedor inglês Richard Branson, fundador do Grupo Virgin com mais de 60 empresas que vão desde um selo de música, vestuário, cias aéreas, pesquisa e desenvolvimento de combustíveis alternativos para aviação e até viagens espaciais, a Virgin Galatic. Ele afirma que cliente não é preocupação do CEO. Preocupação do CEO é com os colaboradores! São eles que farão contato com os clientes e que são a ‘cara’ da empresa e a representarão, e se eles não forem atendidos e receberem o suporte devido, consequentemente não atenderão bem os clientes pois é impossível para o CEO atender todos os clientes.
A prova disso é que há algum tempo ele surpreendeu um funcionário dormindo durante o trabalho e aproveitou para tirar um selfie e publicar nas redes. Questionado a respeito e sabedor de quanto sua equipe trabalha, ele mesmo postou: Ele merece descansar, deixa dormir! Naquele até então ‘ambiente normal’ como conhecíamos, isso sim é considerado ‘inovador’. Branson foi além do discurso apenas aspiracional, mostrou de fato com esse tipo de atitude como aumentar o tão sonhado engajamento perseguido pelos departamentos de RHs de todo planeta.
Em outro exemplo foi em dezembro de 1995 quando a Malden Mills, uma empresa têxtil familiar (mais conhecida por Polartec) em Lawrence, Massachusetts, foi destruída por um grande incêndio que consumiu a maior parte da empresa. O proprietário e CEO, Aaron Feuerstein, então com 71 anos, decidiu manter os salários dos mais de 2 mil funcionários enquanto reconstruía a fábrica e reestruturava o negócio pagando com seus próprios recursos.
A reconstrução demorou 90 dias e ele refez a fábrica como um local de trabalho mais agradável, ensolarado e saudável a um custo extra considerável para si e para a empresa, porém quando retomou a produção, obteve um aumento de 40% na produtividade. Uma verdadeira recompensa comercial advinda de um risco pessoal assumido e com alto nível ético e humano. Pessoalmente Aaron recebeu elogios e reconhecimento público, sendo notícia em todo o país e mencionado no discurso sobre o estado da União pelo presidente Bill Clinton em 1996.
Evidentemente seus empregados reconheceram o esforço e se tornaram eternamente gratos, pois a cidade tinha pouco mais de 68 mil habitantes e o encerramento das atividades da fábrica acarretariam efeitos desastrosos para muitas famílias. Alguns anos depois o próprio Aaron sofreu reveses desse período, mas apoiado por muitos, se reerguei novamente com lançamento de novos materiais inovadores e sustentáveis, e começou a fornecer para as forças armadas.
Aqui temos exemplos daquilo que mais se espera da liderança futura: orientação para servir!
Assim como o perfil ideal do colaborador ou prestador de serviços é em “T”, nas empresas também, porém aqui o “T” é de transformadoras. Empresas em que a mudança não é apenas incremental, mas transformadora. Transformam a vida das pessoas, se envolvem com a comunidade em que estão inseridas, são as ESG, ambiental, social e governança corporativa envolvidas, sigla originada do termo em inglês environmental social and corporate governance.
É o que chamamos de liderança moral. Ainda que ética nos negócios não seja em si um fator de garantia de sucesso, indiscutivelmente, as pessoas preferem trabalhar naquilo que não se envergonham e se sentem apoiados. Liderança moral significa colocar as pessoas no centro das principais decisões, encarando-as em toda a humanidade com suas próprias aspirações e preocupações.
Esses dois empreendedores sabem que criatividade aflora no nível pessoal, e a inovação ao nível de grupo e organizacional, não mais numa pessoa ou departamento e desde que existam condições e abertura para isso, e só ocorrem quando encontram confiança e transparência.
Líderes morais veem a pausa deste momento como um recomeço, uma oportunidade para reestruturação do seu negócio. Demissões imediatas vão desestruturar o negócio e demorar ainda mais a recuperação, além de enfraquecer a economia como um todo. No mundo real, uma iniciativa local, o movimento empresarial “Não demita” alcançou esta semana o compromisso com 4 mil empresas.
Episódios como este evento que enfrentamos, com grandes impactos econômicos e comportamentais, expõem fragilidades e nos forçam a rever questões não abordadas que apesar de percebidas o tempo todo, eram tratadas por nós como invisíveis, simplesmente ignoradas ao longo do tempo e justificadas pela nossa omissão.
A humanidade vai passar por esse período, algumas empresas vão fechar e outras vão sobreviver, se reinventar e continuar navegando apoiados por esses novos profissionais adaptativos, e as pessoas vão se lembrar de como você se comportou em tempos ruins.
No futuro próximo, com esse novo perfil profissional e novas lideranças, trabalharemos outro modelo para além da primazia dos acionistas, do bom comportamento corporativo aspiracional e retórica publicitária apenas. Empresas competirão na confiança, em responsabilidade, na criação e manutenção de relacionamentos profundos com todos os envolvidos, acionistas, gestores, colaboradores e sociedade local. Alicerçados em verdades e valores compartilhados, deixando questões hoje tangenciais para serem centrais criando espaço para a manifestação da cidadania corporativa.
O chamado capitalismo de partes interessadas ou capitalismo moral, onde ninguém é um meio para os fins de ninguém e você não pode criar valor compartilhado sem reais valores compartilhados, como descreveu recentemente a Revista Fortune e foi tema da rodada de negócios em Davos 2020, quando 181 CEOs de algumas das maiores empresas do mundo se comprometeram com essa mudança profunda. Questões sociais, religiosas, políticas, geopolíticas, ambientais, humanas, éticas e até existenciais são inevitáveis em sua agenda, a alteração de comportamento que citei acima.
Quando seguir em frente exige mudança, aquilo que decidimos carregar conosco passa ser imprescindível. Miramos naquilo que é essencial para seguir. A hora exige a revisão do essencial, do que consideramos verdadeiramente essencial, notadamente num esforço para aumentar nossa resiliência, na busca do antifrágil analisar o cenário e seus efeitos subjacentes e adjacentes nesses ensaios de futuro são extremamente importantes agora.
Criar resiliência no sistema, consciência de suas competências e não competências, noção das suas falhas além da motivação de corrigi-la e progredir na adaptação e cooperação, pois sozinhos não conseguiremos. Cada um faz bem uma parte do ecossistema, precisamos de empatia, cooperação e cocriação, a base da abordagem Design Thinking.
No humano reformatado e antifrágil neste pós-normal, suas qualidades humanas tornam-se extremamente valiosas e essenciais, como a ética, as emoções, a capacidade de compaixão e a criatividade.
O Futuro não é uma extensão do Presente!
Future-se!
*Paulo Gianolla é Designer e Consultor. Atua na implementação do Design como Estratégia e Cultura de Inovação para a Liderança Exponencial e Empreendedorismo. Pesquisador de futuros, neurociências, cognição, aprendizado e processos criativos, métodos híbridos de AI (Inteligência Artificial ou Aumentada) e implantação de IoT (Internet das Coisas).
Fonte: Futurotopia
Publicação Ambiente Legal, 20/01/2021
Edição: Ana A. Alencar
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