Filme australiano revela o cruel submundo do crime na suposta tranquila cidade de Melbourne.
Por Felipe Viveiros*
Imagine um país industrializado, multicultural, com longeva expectativa de vida, educação pública de qualidade, liberdade econômica e proteção de liberdades civis. Visualize uma nação que tem suas cidades entre os melhores índices de qualidade de vida, uma região com o terceiro maior IDH do mundo. Seria esse o lugar perfeito? O filme sobre gângsteres Animal Kingdom abre os olhos do espectador para aparente tranquilidade, em uma produção intimista sobre o declínio de uma família de criminosos no desconhecido submundo de Melbourne, na Austrália. Não é o mágico parque da Disney, é a mais pura realidade.
Quinta cidade mais segura no mundo de acordo com o Safe Cities Index da britânica The Economist, Melbourne já foi palco de uma guerra de gangues que se estendeu por anos. Conhecida como “Melbourne Gangland Killings” a disputa entre criminosos foi material da própria produção cultural do país resultando em livros, em filmes e na famosa série policial australiana “Underbelly”, baseada fatos reais. A história do crime em Melbourne é complexa e, embora não tenha uma organização sólida como em muitas das metrópoles brasileiras, conta com diversos nomes que caíram na infâmia internacional: o gângster Mark “Chopper” Read, o traficante de drogas Tony Mokbel, o capo Carl Williams, a família do crime Moran e Alphonse John Gangitano, o chefe da quadrilha “Carlton Crew.”
Animal Kingdom não é um filme de violência gráfica que mescla brutalidade com humor ao estilo Quentin Tarantino. É, muito menos, um romance de máfia de Francis Coppola. A produção australiana é um drama naturalista com pouco glamour e muita iluminação natural, cujas sombras em locais reais fornecem ao drama uma forte verossimilhança. Para o estreante diretor David Michôd, o que importa é a tensão e menos violência, ao passo que o filme se afasta das chuvas da tiros e correria que dominam as imagens de Hollywood.
Inspirado em eventos da vida real relacionados à família Pettingill de Melbourne–incluindo as filmagens da polícia de rua Walsh de 1988 – o filme é um retrato de uma família criminosa cujo poder está desmoronando. O mérito de Animal Kingdom está na arte de revelar que a atividade de gangues pode, na verdade, ser algo completamente mundano. As imagens de abertura do filme, são estátuas de leões. Embora a família viva em Melbourne, a cidade de aparência tranquila pode muito bem ser uma inesperada selva de um diálogo em silêncio de lei e ordem.
A porta de entrada do filme é o jovem Joshua Cody, conhecido como “J.”. Sua mãe o manteve afastado da família. Quando ela sofre de uma overdose de heroína, o jovem de 17 anos é “acolhido” por sua avó, Smurf Cody, e por seus três filhos criminosos em uma casa sob vigilância permanente da polícia.
Habitada por um bando de tios barra pesada, J é o filhote perdido que é jogado na toca do leão com a morte da mãe. Smurf aparenta ser uma avó amorosa e, gradualmente, revela fria autoridade e alta manipulação de sua prole.
O tio mais jovem, Darren ganha a vida vendendo drogas em círculos sociais de policiais corruptos. O comércio de drogas, glamourizado ao longo da história pelos contos de máfia é, na crua realidade do filme australiano, desprezado pelos grupos de assaltantes que entendem o crime como uma atividade leve. O tio “do meio”, Craig, tem pulso firme, é um ladrão de bancos e entusiasta de cerveja. O mais velho, Papa, é um verdadeiro assaltante profissional que vive se escondendo dos detetives de Melbourne. A figura mais sã do grupo é Barry, amigo da família, uma voz da razão cansada do stress cada vez mais pouco atrativo dos assaltos. Barry em uma tentativa de persuadir seus amigos a abandonar o mundo do crime, sugere que a família comece a investir na Bolsa de Valores. Seus planos vão por água a baixo quando é assassinado por policiais que buscavam vingança contra a família. O acontecimento eleva a guerra a um novo nível de violência caótica.
Em Animal Kingdom não há bom e mal, o justo e o justiceiro. Com policiais corruptos e negociações de moral questionável, o diretor Michôd deixa claro que tanto a polícia quanto os criminosos buscam o próprio bem-estar em uma configuração que nem sempre está nos holofotes ou nos âmbitos da lei. O jovem J se encontra no centro de um plano de vingança à sangue frio que deixa sua família de cabeça para baixo. O garoto luta para dar sentido ao selvagem mundo ao seu redor, e o espectador nunca tem certeza do rumo de suas ações. Vemos as cenas do ponto de vista do forasteiro que se torna participante. É difícil perceber se J tem mais medo da polícia ou da própria família. Os personagens, em cenas desfocadas e contorcidas nas linhas de varredura das telas de segurança, parecem estranhas criaturas em um documentário do National Geographic.
O filme põe de lado influências da cultura pop norte-americana e mergulha em nas verídicas histórias australianas, em um estilo propositalmente obscuro, quase um filme noir. É provável que muitos que vivam em Melbourne, ou que visitaram a cidade, sequer percebam o mundo paralelo que ocupa as obscuras vielas da cidade. O que está sendo discutido nas diversas séries, filmes e livros policiais australianos – baseados em histórias reais – acontece no pouco visitado e explorado submundo.
Uma das muitas distinções de filme que permeia o gênero suspense policial, a história dos gângsteres, tem sido retratada pelas lentes do status quo, do avanço, da riqueza e do prestígio. Em Animal Kingdom existe em um nível mais primário. Trata-se de sobrevivência. Os tios compõem uma alcateia humana de “machos alfa”, na qual Smurf é a mãe-leoa. Um reino animal sem rei ou rainha que opera na luz das sombras de uma aparente tranquilidade.
*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).
Onde assistir: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-140140/
https://www.youtube.com/watch?v=8U5X88Kmurk
Fonte: Cultura do resto do mundo
Publicação Ambiente Legal, 11/11/2020
Edição: Ana A. Alencar