A ORIGEM DA REMUNERAÇÃO DO TRABALHO ASSALARIADO E DO TRABALHO INTELECTUAL FORA DO CICLO DA PRODUÇÃO
“Time is money, one more day plus one dollar”
(Do Anedotário Capitalista)
Por Marilene Nunes (*)[1]
Esse texto foi inicialmente produzido a pedido do antropólogo e sociólogo Mauro Cherobim da UNESP. O objetivo didático principal foi discutir e esclarecer a origem da remuneração do trabalho assalariado e do trabalho intelectual fora do ciclo da produção enquanto trabalho assalariado, tendo como base os aportes conceituais da economia política. O texto foi dirigido aos alunos da disciplina Sociologia da Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidad Internacional Tres Fronteras (Paraguai). Pode ser encontrado no BLOG “Mergulhando na Virtualidade” de responsabilidade do Professor Cherobim ou, de forma resumida e adaptada, no Portal Ambiente Legal.
A Lei do Valor e o Fetiche da Mercadoria
A economia política marxista ortodoxa tem sérias dificuldades para definir as duas categorias que dão título a este texto. E isso, geralmente cria muita confusão. Em outras palavras, do imbróglio são cometidos vários equívocos quando se pretende entender o processo de remuneração do produto do trabalho, seja através do assalariamento – trabalho produtivo na cadeia produtiva, ou por meio de pró-labore – trabalho intelectual fora do ciclo produtivo.
Acredito que o problema não reside somente na incompreensão dos marxistas ortodoxos sobre a definição do conceito de valor enquanto tese válida para compreender e explicar a dinâmica da sociedade capitalista contemporânea, mas também porque a lei do valor expõe o campo prático da classe trabalhadora colocando em xeque a outra tese, a do “fetiche da mercadoria” que melhor convém para explicar a necessidade de vanguardismos na direção dos movimentos sociais de trabalhadores organizados e, assim, transferir quaisquer formas de lutas políticas para o exterior do processo de trabalho.
Utilizo conceitualmente o termo valor não no sentido axiológico que a filosofia lhe confere, mas na acepção econômica que Adam Smith (2007) discorreu em seu texto “A riqueza das nações”. Segundo o referido autor “valor é tempo”, sendo o tempo aquele que move toda a economia na sociedade capitalista.
O conceito de valor como tempo e como epicentro de toda a produção econômica também é parte da grande obra “O capital” (1971), de Karl Marx. No entanto, nessa obra, a tese do “valor trabalho” curiosamente subsiste com uma outra, que lhe é antagônica. Ou seja, a tese antinômica está relacionada à teoria do “fetiche da mercadoria”, anteriormente mencionada.
A crítica dos modelos epistemológicos contraditórios em “O capital” (1971) foi muito bem formulada pelo pensador marxista João Bernardo (1977) e seu monumental livro de economia política, intitulado “Marx crítico de Marx”. Nesse texto, o mencionado autor, mostra como as teses do “valor tempo” e a do “fetiche da mercadoria” são inconciliáveis. Isso porque se situam em campos epistemológicos opostos, cujos axiomas se anulam reciprocamente. Na tese do “fetiche da mercadoria”, o sujeito do processo de produção, o trabalhador, é reduzido a elemento acessório do processo e a mercadoria emerge deste paradigma como um ser metafísico que inaugura um espaço completamente alheio à produção, o mercado.
Nesse sentido, o capitalismo surge como um grande espaço de trocas entre mercadorias, regido por leis transcendentais para um suposto mercado anárquico existente fora da produção. As mercadorias consistem em produtos tangíveis, de naturezas visíveis e palpáveis, que lançadas ao mercado estabelecem relações de trocas entre si independentemente dos produtores. Isso mostra como a relação, outrora, social entre os produtores, no mercado, cindida pelo fetiche da mercadoria acabou por impor sua vontade sobre os consumidores, dissimulando o caráter social da troca.
A palavra “fetiche” significa feitiço; poder sobrenatural sobre algo. Levando isso em conta, Bernardo (1977) afirma que a tese do “fetiche da mercadoria” silencia o campo prático dos produtores, isto é, da prática social dos trabalhadores, na medida em que atribui às mercadorias o poder “fetichizante”.
O outro campo epistemológico apontado por Marx, denominado de tese do “valor tempo”, oposta à teoria do “fetiche da mercadoria”, expõe a prática de trocas entre os produtores como uma relação social, destruindo assim a metafísica da troca entre coisas, num suposto mercado platonicamente externo à produção. Valor é tempo de trabalho incorporado, tanto nos produtos e seu processo produtivo, quanto no próprio trabalhador, em seu processo de formação. Assim sendo, economicamente, tudo é produção na sociedade capitalista contemporânea, nada lhe é exterior: a produção abrange a totalidade da realidade social humana e o mercado é parte substantiva da produção. Dessa forma, pode-se dizer que a tese “valor tempo” é a antinomia da teoria do “fetiche da mercadoria”.
De qualquer modo, a teoria do “fetiche da mercadoria” encontrou campo fértil na literatura esquerdista e a proliferação do seu discurso seguiu reproduzindo um eterno anátema. Esse fenômeno não se originou da incompreensão das teses contraditórias de Marx (1971) em “O capital” pelos ideólogos da esquerda. A ênfase dada à tese do “fetiche da mercadoria” está associada a uma estratégia política esquerdista de que o conceito “valor tempo” não lhes serve para explicar a pretensa importância do acesso da burocracia esquerdista ao controle do Estado, com o objetivo de domar o suposto mercado anárquico e instaurar o “socialismo”. Ora, se o capitalismo é um modo de produção totalizante, evidentemente que nem o Estado lhe escapa ao domínio, não se tratando de campo neutro. Aliás, esta instituição ocupa lugar extremamente importante para o desenvolvimento desse modo de produção, pois sem a sua atuação organizadora, administradora e coercitiva, a economia capitalista poderia se estagnar na medida em que é o Estado o gerenciador das condições gerais de produção, sem as quais esse modo de produção não poderia existir.
Estado e Mercado: integração totalizadora no capitalismo
O Estado visto como o “homem coletivo artificial” que domina as paixões humanas e que lhes arrancam da sua condição natural, como pensou Thomas Hobbes (2002), emerge da ideologia esquerdista como o grande “Leviatã”, o monstro de muitos tentáculos de forma bem mais assustadora do que o descrito pelo profeta Jó, no Antigo Testamento hebreu.
O “Leviatã” esquerdista é o absolutismo do Estado levado às últimas consequências do absurdo de que são exemplos os capitalismos de estado nazista e soviético. O Estado e o mercado cindidos da produção são como dois “Leviatãs” que pairam autônomos, absolutos e contraditórios no sistema capitalista. O primeiro autoritário e coator; o segundo permissivo e anárquico. O campo prático de existência do trabalhador, como espaço de produção, é aniquilado pela concepção do Estado e do mercado autônomos.
Todavia, o mercado, segundo a tese do “valor tempo”, integra a produção. O valor da força de trabalho, no mercado de trabalho, será determinado pelo valor dos produtos e serviços necessários à reprodução do trabalhador, sendo que, dentre os mais importantes, podem ser mencionados: alimentos, produtos de higiene, roupas, calçados, e quaisquer serviços relativos à saúde, à educação e ao lazer.
Quanto mais desenvolvida economicamente for uma economia, menor será o custo da reprodução da força de trabalho, porque as mercadorias e serviços para a sua subsistência serão produzidos num tempo médio muito inferior ao tempo que o trabalhador dispensa quando empregado. Assim o cálculo médio do salário tem como base o valor médio de produção das mercadorias e serviços considerados básicos para a sobrevivência de um trabalhador assalariado. Inversamente o aumento de custo desses serviços e mercadorias incidirá na restrição ao acesso de consumo, comprometendo a formação da força de trabalho e, consequentemente, no longo prazo, o desenvolvimento tecnológico nas empresas.
Nesse contexto, há necessidade de esclarecer que os sentidos de trabalho intelectual e capital intelectual são distintos. Se por um lado, os ciclos de desenvolvimento tecnológicos estão diretamente correlacionados ao aumento da produtividade, à elevação da qualificação e capacitação do trabalhador assalariado; por outro, a implementação de tecnologia decorrente da elevação da força de trabalho visa aproveitar o componente intelectual do trabalho, oriundo do acréscimo de capital intelectual. Ou seja, o trabalho intelectual é aquele que exige habilidades e competências cognitivas mais complexas do que o simples esforço muscular. Contudo, toda atividade laborativa possui um componente em maior ou menor escala de esforço intelectual ou muscular, cuja intensidade depende do estágio tecnológico em que se encontra a economia.
Nos primórdios do capitalismo, todo o pensamento intelectual complexo lhe era exterior. Somente com o advento da implementação constante de tecnologia no processo produtivo é que passou a se elevar a urgência de apropriação do saber científico e com isso a necessidade de uma lógica instrumental. Todo o conhecimento oriundo desse processo: maquinário, tecnologia informacional, instalações e infraestrutura de ponta, banco de dados de múltiplas informações, recursos humanos com habilidades de realização de trabalho complexo passaram a constituir o capital intelectual.
O capital intelectual é o conjunto complexo de valores com a capacidade ilimitada de reprodução de novos valores. Assim, o capital intelectual é o principal ativo não financeiro que se tornou o mais importante recurso para o contínuo desenvolvimento de diferentes tipos de organizações. Quanto mais elevada for a capacidade de agregar valor aos produtos, por incorporar extenso capital intelectual, mais difícil se tornará a definição e o preço da força de trabalho detentora deste capital como, por exemplo, o caso dos consultores, cujo valor do pró-labore não se define pelo valor médio de mercado, como é o caso dos trabalhadores assalariados inseridos num ciclo de produção, mas pelo capital intelectual agregado a sua força de trabalho.
Referências
BERNARDO, João. Marx crítico de Marx. v. 3. Porto/Portugal: Afrontamento, 1977.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Rio de Janeiro: ICONE, 2002.
MARX, Karl. O capital. v. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971.
__________. Salário, preço e lucro. São Paulo: EDIPRO, 1989.
NUNES, Marilene. A reprodução das contradições de Karl Marx na economia política. v. 1. Revista Educação e Ação. São Paulo: UNESP/AEI, 2000.
__________. O processo de trabalho na escola: produção da força de trabalho anteproletária e reprodução da força de trabalho docente. Revista Didática. (UNESP) n. 30. São Paulo, 1995, p. 164-174.
SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Juruá, 2007.
* Marilene Nunes é Doutora em Gestão e Políticas Públicas (USP), Mestre em Economia Política da Educação (UFRGS), Especialista em Gestão do Conhecimento (FGV), Graduada em Pedagogia (UFRGS). Especialista do Conselho Estadual de Educação (CEE – SP). Docente em Programas de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) no Brasil e no exterior.
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