Por Enio Fonseca*
A utilização de grandes reservatórios de acumulação de água para a geração hidrelétrica, e também para outros usos múltiplos, é uma preocupação constante do FMASE, que congrega 19 associações setoriais do Setor Elétrico Brasileiro, e tem se debruçado nos últimos anos em levar essa discussão a toda a sociedade brasileira e autoridades competentes.
O tema de reservação de água (intimamente ligado ao seus diferentes usos e consumos) é complexo, com grande interface com inúmeros setores públicos, econômicos, e praticamente todos os segmentos sociais, podendo ser dimensionado à luz da escassez hídrica registrada no país entre 2020 e 2021, fato observado também nos últimos anos, onde se observaram questões relativas aos regimes hidrológicos, com predominância de precipitações inferiores aos valores médios históricos. A partir dessa situação, recorrente, já se justifica a necessidade de ações governamentais, feitas com a participação de todos os atores da sociedade para se discutir a ampliação e recuperação dos reservatórios de usinas hidrelétricas do País, de forma a garantir a devida segurança no atendimento aos consumidores brasileiros de energia elétrica e demais usuários da água.
O Governo Federal, aprovou no dia 26 de abril a resolução nº 2 do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) que instituiu um grupo de trabalho para elaborar um plano de recuperação dos reservatórios de usinas hidrelétricas do país. O grupo será coordenado pelo Ministério de Minas e Energia e terá representantes também do Ministério do Desenvolvimento Regional, Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS).
O plano é para a recuperação dos reservatórios ao longo de até 10 anos e segue a Lei n. 14.182, de 12 de julho de 2021, que determinou que o Executivo elabore um programa decenal nesse sentido, e o documento obedecerá diretrizes como a priorização o consumo humano e animal; garantia da segurança energética do Sistema Interligado Nacional; segurança de usos múltiplos da água; curva de armazenamento de cada reservatório de acumulação a ser definida anualmente e flexibilização da curva de armazenamento dos reservatórios em condições de escassez definida pela ANA, em articulação com o ONS.
Entendemos porém, que a retomada da construção de novos reservatórios de água deve ser um aspecto estratégico a ser considerado por toda a sociedade brasileiro e pelos órgãos e instituições públicas e privadas a ser colocado em pauta prioritária nas discussões que serão feitas também nesse grupo.
Durante o 8º Fórum Mundial da Água, realizado em Brasília em 2018, o FMASE, com o apoio da ABRAGEL e ABRAPCH coordenou uma mesa de discussão com especialistas, e que elaborou o documento “Reservatórios, uma questão de segurança hídrica” que foi aprovado oficialmente no evento e contém uma proposta atual, com robustos subsídios e profunda análise técnica e política, com foco de retomada da construção de reservatórios de água com significativa capacidade de acumulação, destinados ao uso múltiplo.
Esses reservatórios têm papel fundamental para assegurar o abastecimento para consumo humano e animal, produção agropecuária, transporte, indústria e geração de energia elétrica, com reconhecidos benefícios ambientais para os ecossistemas.
Os dados de gestão das águas nos últimos anos mostram que existem situações em que a disponibilidade hídrica natural, verificadas nas vazões disponíveis, não tem sido suficiente para suprir as demandas regionais, havendo então, dentre outras importantes iniciativas complementares a serem implementadas, a necessidade de aumentar essa disponibilidade pelo aproveitamento do potencial de regularização de vazão nos cursos d’água, através da construção de reservatórios de acumulação.
A construção dos reservatórios se faz necessária para acumular água nos períodos de maior pluviosidade e para transferir esse estoque ao longo do tempo, suprindo a demanda em períodos de menor chuva, garantindo a segurança hídrica regional. Segundo o conceito dado pela UN-Water, segurança hídrica é “a capacidade de uma população de: assegurar o acesso à água em quantidade adequada e de qualidade aceitável para a vida (subsistência) sustentável, o bem-estar humano e o desenvolvimento socioeconômico; garantir a proteção contra a poluição e os desastres relacionados com a água, e a preservação de ecossistemas, em um clima de paz e estabilidade política”.
No 2º Fórum Mundial da Água em 2000, foi emitida uma declaração afirmando que segurança hídrica “significa garantir que ecossistemas de água doce, costeira e outros relacionados sejam protegidos e melhorados; que o desenvolvimento sustentável e a estabilidade política sejam promovidos; que cada pessoa tenha acesso à água potável suficiente a um custo acessível para levar uma vida saudável e produtiva, e que a população vulnerável seja protegida contra os riscos relacionados à água”. Tal Declaração também listou sete desafios principais à consecução da segurança hídrica: satisfação das necessidades básicas; garantia do abastecimento de alimentos; proteção aos ecossistemas; compartilhamento de recursos hídricos; gerenciamento de riscos; valorização da água; e controle racional da água.
A necessidade do planejamento na efetiva retomada da construção de barragens de elevada capacidade precisa estar assegurada em políticas pragmáticas, gestão eficaz, arcabouço jurídico forte, sistemas de engenharia confiáveis, usos múltiplos e conscientização sobre os riscos existentes. Tudo isso incorporados em um Plano Nacional de Segurança Hídrica, capaz de minimizar eventos de cheias e de secas.
Esses desafios, apresentados mais de vinte anos atrás, continuam atuais, e os gestores públicos ou do terceiro setor, de recursos hídricos, observadas suas diferentes utilizações, necessitam rever a questão da retomada dos reservatórios de acumulação. Esse é o remédio certo para se aproveitar os períodos climáticos favoráveis para acumular água para os períodos desfavoráveis. Essa prudente ação também se apresenta como paliativo frente às mudanças climáticas observadas em todo o planeta. Em se tratando apenas de geração de energia, o volume de armazenamento dos reservatórios que abastecem as hidrelétricas do Sistema Interligado Nacional tem uma capacidade nominal em torno de 4 meses de geração. Situação bem delicada para os consumidores, posto que a fonte hídrica, além de ser renovável, representa cerca de 60% de nossa matriz elétrica, e que além disso, por sua característica firme, contribui para instalação de outras fontes renováveis intermitentes, como as energias eólica e solar, ajudando assim a manter uma matriz nacional limpa, observada a política de modicidade tarifária.
Como efeito positivo para toda a sociedade, a construção de reservatórios permite que as outorgas de direito de uso dos recursos hídricos sejam concedidas a um maior número de usuários, garantindo assim a multiplicidade de usos das águas. Nesse sentido, é muito importante que as decisões a serem tomadas por todos os atores sociais interessados nesse tema, levem em consideração a importância do uso múltiplo da água, observando as necessidades de todos os setores que a utilizam, bem como sua importância para o meio ambiente levando em contas as prioridades de uso como o abastecimento humano e dos animais, sem esquecer que a geração de energia é considerada de utilidade pública.
E tudo isso com o cumprimento fiel da legislação ambiental e o envolvimento efetivo do governo, entidades representativas setoriais e da sociedade civil nas discussões.
Entendemos que a retomada da política de reservação de água é perfeitamente possível e urgente para evitar a ampliação da situação de escassez hídrica declarada de forma crescente nas bacias hidrográficas brasileiras. São os reservatórios que podem garantir a segurança nos eventos climáticos de escassez, garantir a navegação, o turismo, a produção de energia, a água para indústria e irrigação, produção de alimentos e, principalmente, o abastecimento humano e de animais.
Trata-se, com certeza, de iniciativa alinhada com a “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, que contém um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), dentre os quais se destacam a eficiência na gestão dos recursos naturais, a mitigação e adaptação às mudanças climáticas e resiliência a desastres.
*Enio Fonseca – Vice-Presidente do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico, ex Superintendente do IBAMA em MG, foi Superintendente de Gestão Ambiental do Grupo Cemig, Conselheiro no Conselho de Política Ambiental do Estado de MMG, Senior Advisor em questões socioambientais.
Fonte: Direito Ambiental
Publicação Ambiente Legal, 05/05/2022
Edição: Ana Alves Alencar
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