CONSUMO, DESCARTE E OBSOLESCÊNCIA PROGRAMADA
Produção induz á poluição por conta do lucro, para além da tecnologia…
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Consumo insustentável
Toda vez que se comemora o Dia do Consumidor no Brasil, no dia 15 de março, fala-se sobre o Código de Defesa do Consumidor, sobre os direitos de quem consome e deveres das indústrias e do comércio de produtos.
Pouco ou nada é discutido com relação aos efeitos ambientais da indução ao consumo desenfreado, da obsolescência programada de determinados produtos, bem como sobre o impacto ambiental que o descarte deles provoca.
Quando o assunto é consumo sustentável, não se observa que o consumismo, em si, é grande causador da degradação ambiental.
Na cadeia de consumo desenfreado, a degradação abrange desde o uso da matéria-prima, gastos com energia, água, produtos químicos e demais insumos durante o processo de fabricação, seguindo pelos efeitos imanentes à logística de distribuição e comercialização, e a destinação residual, após o consumo e o descarte dos produtos.
Nesse campo, a produção e o descarte de dispositivos eletrônicos é paradigmático.
O lixo eletrônico como paradigma
A indústria eletrônica é a que mais cresce no mundo. O fenômeno do bigdata interliga, hoje, mais de dez bilhões de dispositivos eletrônicos, conectando bilhões de habitantes no planeta.
Esse fenômeno gera, a cada ano, 41 milhões de toneladas de lixo eletrônico – provenientes do descarte de computadores, tablets, smartfones e outros dispositivos móveis.
Objeto de desejo da grande maioria da população mundial, ante a rapidez com que avança a tecnologia, os dispositivos eletrônicos são fabricados com previsão de vida útil cada vez menor. Ou seja, têm data marcada para “morrer” – a chamada obsolescência programada.
Estudos recentes mostram que, entre todos os eletrônicos, os celulares e smartfones são os campeões da obsolescência programada. Esses aparelhos são trocados com maior frequência (em média a cada 18 meses) – e acabam esquecidos numa gaveta ou descartados no lixo comum, doméstico, sem qualquer preocupação ambiental.
Da mesma forma, as baterias e carregadores, seguidos pelas impressoras, máquinas fotográficas, computadores e notebooks, em que pese toda a propaganda oficial e regras a respeito, são descartados pelo consumidor final de forma incorreta, seguindo para a reciclagem, quando muito, na boca do aterro ou do caminhão que recolhe os resíduos.
Se a geração de e-lixo não for controlada, o volume de resíduos eletrônicos no planeta aumentará 33% , o que dará para encher 200 edifícios como o Empire State, nos EUA, por ano… até o final desta década. O alerta foi divulgado no lançamento do primeiro mapa global de lixo eletrônico, produzido pelas Nações Unidas 3m 2013.
Os dispositivos doados ou entregues em locais considerados adequados para reaproveitamento ou descarte, por sua vez, nem sempre seguem a logística reversa pretendida. É o caso dos enormes volumes descartados por navios, em grandes quantidades na costa da África, por “recicladores” europeus e asiáticos, quando não reprocessados em condições precárias por seres empregados em condição sub-humana…
Criminalidade e deseconomia
De fato, entre 60% até 90% do lixo eletrônico do mundo, com valor estimado em 19 bilhões de dólares, é comercializado ilegalmente ou jogado no lixo a cada ano.
Esse dado, provém de relatório efetuado pelo Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), divulgado em 2015. Segundo previsões do PNUMA, este número pode chegar a 50 milhões de toneladas já em 2017.
A Organização Internacional de Polícia Criminal (INTERPOL) estima que o preço de uma tonelada de lixo eletrônico gira em torno de 500 dólares. Seguindo esse cálculo, estima-se que o valor do lixo eletrônico não registrado e informalmente manuseado, incluindo os que são comercializados ilegalmente e despejados, encontra-se entre 12,5 a 18,8 bilhões de dólares por ano.
A deseconomia produzida pelo descarte e manuseio criminoso é significativo. Afinal, o mercado global de resíduos, desde a coleta até a reciclagem, gera algo em torno de 410 bilhões de dólares por ano.
Os riscos de contaminação são enormes. Elementos químicos como (bromo, mercúrio, chumbo e cádmio) contidos nos dispositivos descartados causam poluição da água e do solo. Também causam doenças graves nas pessoas que fazem a coleta em lixões, ruas e terrenos baldios. O plástico, vidros e metais não se decompõem facilmente.
Uma tonelada, ou cerca de seis mil aparelhos, podem conter 3,5 quilos de prata, 340 gramas de ouro, 140 gramas de paládio e 130 quilos de cobre. Já a bateria por sua vez contém mais de 3,5 gramas de cobre. Isso explica o valor embutido também nos produtos descartados.
De fato, o comércio de lixo eletrônico rende dinheiro para quem investe na sua correta recuperação, reutilização ou, reaproveitamento dos componentes – e esse ciclo econômico merece proteção e efetiva tutela legal.
Obsolescência e sustentabilidade
Até mesmo por isso, a grande preocupação dos ambientalistas e responsáveis pelo setor da tecnologia não está apenas focada na destinação dos produtos desativados e na falta de regras legais que o regulamentem. Começa a se concentrar no ecodesign do próprio processo produtivo e no controle público sobre o processo de obsolescência dos dispositivos.
Fabricantes, comerciantes e consumidores, são todos responsáveis pela destinação do lixo eletrônico, porém necessitam convencionar de forma detalhada como se dará o controle sobre a obsolescência dos produtos – de forma a proteger o consumo e não induzir ao consumismo predatório.
Durabilidade, afinal, também é sustentabilidade.
Ocorre que nesse campo, a conscientização e informação da população é mínima. Pior, governos tão pouco estão preparados para se debruçar sobre o tema.
O consumidor ainda acumula eletrônicos em casa sem saber como e onde descartar. Quando descarta, costuma fazê-lo fora das regras estabelecidas (quando elas existem) e, sistematicamente é induzido a adquirir dispositivos similares em quase tudo aos descartados, devidamente programados para “pifar” em curto espaço de tempo.
Do ponto de vista jurídico, e não apenas no Brasil, o controle público da obsolescência necessita de regulamentação mais firme e contra-funcionalidade econômica.
A farsa da logística reversa e dos acordos setoriais no Brasil
No caso brasileiro, um acordo setorial efetivo e abrangente (como manda a Lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos), para reger a fabricação, o comércio, distribuição, uso, descarte e a logística reversa de eletrônicos, teria que tornar efetivos o controle social sobre o ciclo de vida dos produtos.
A lei, no entanto, parece ser tratada como mero pretexto para a prática de maquiagem verde de grandes empresas, para a promoção marqueteira de “pontos de entrega voluntária”, e para servir de apanágio para entidades que se prestam a bancar “feitores” de cooperativas de serviço que, cedo ou tarde, cairão sob a metralha da Justiça do Trabalho…
A ausência dos grandes gestores do lixo urbano, os municípios, é sintomática no acordo setorial mais expressivo para a cadeia de consumo: o farsesco acordo sobre embalagens, recentemente firmado.
O jogo de interesses subalternos também polui o acordo setorial de eletroeletrônicos, que parece seguir o mesmo caminho irresponsável do acordo de embalagens.
Enquanto isso, a obsolescência programada sequer é debatida, embora considerada, no Brasil e no exterior, prática comercial condenável.
Como reprimir a obsolescência programada
A troca de aparelhos em curto período de tempo, com enormes prejuízos para o ambiente e enormes lucros para os fabricantes, é prática que contraria o basilar princípio do poluidor-pagador, que obriga os geradores a internalizar os custos ambientais daquilo que produzem.
Também fere o interesse público, porque transfere o descarte difuso para a gestão municipal dos resíduos, e quem paga por isso somos todos nós, contribuintes.
Somos todos, portanto, obrigados a consumir e descartar, para consumir mais. Ao final, pagamos pelo descarte pois não contamos com uma coleta urbana eficaz e integrada aos acordos setoriais para a logística reversa.
Sem essa integração, os aterros sanitários e serviços de saneamento públicos ficam onerados, enquanto as empresas responsáveis ministram “pontos de entrega voluntária” – algo similar aos maus profissionais da saúde, que ministram placebo a doentes terminais…
O Poder Judiciário tem prestado tutela aos consumidores, aplicando as regras do Código de Defesa do Consumidor. Há casos absurdos, analisados judicialmente, em que os aparelhos ou seus acessórios, apresentam defeito ou param de funcionar logo após passado o prazo da garantia. Há casos em que o descarte é induzido por não possuírem os dispositivos a evolução tecnológica anunciada face ao modelo anterior, não suportarem mais “atualizações” de software e simplesmente “morrerem” após atingir determinado (e curto) “tempo de serviço”…
A questão, no âmbito do Código, quando o assunto é a repressão criminal, é limitada, pois a obsolescência acaba sendo tratada por via transversa, e até mesmo criminalizada impropriamente, por constituir “propaganda enganosa” ou “afirmação falsa”, com relação ao produto. Na verdade, esse mecanismo perverso, é mais que isso…
Assim, deve se projetar uma ação integrada, de segmentos sociais, governo e parlamento, para que se processe uma tutela adequada com relação ao controle social sobre o ciclo de vida dos produtos eletroeletrônicos.
Essa ação integrada deve se debruçar sobre o aperfeiçoamento de normas e entendimentos no campo dos direitos do consumidor. Mas deve também se projetar no campo da intervenção no domínio econômico, impondo obrigações dos fabricantes e comerciantes com relação ao controle ou proibição da obsolescência programada – pelo fato constituir verdadeiro abuso.
O que fazer
No campo da legislação ambiental, a Política Nacional de Resíduos Sólidos deve ter implementação efetiva, abrangente, o que não está ocorrendo por absoluta limitação cognitiva dos atores envolvidos na questão. Outros mecanismos poderiam também ser implementados, conjuntamente. A saber:
a-Instituir um sistema brasileiro de contabilidade ambiental
Resíduo é dinheiro. Se isso é verdade, estamos lidando não apenas com volumes contaminantes e, sim, com receita. Assim, já passou da hora de vincular o sistema tributário á gestão dos resíduos sólidos.
A esse respeito, recente estudo conduzido pelo meu escritório, Pinheiro Pedro Advogados, com a Fundação Getúlio Vargas – FGV Projetos, foi produzido para a Associação Brasileira das Empresas de Tratamento de Resíduos Especiais – ABETRE.
Nesse estudo, tratamos de desenvolver profunda análise do perfil de produção de cada setor industrial de interesse, de forma a produzir contabilidade ambiental a partir do balanço de massa e análise do fluxo de materiais, resultando num avançado controle contábil da gestão dos resíduos. Esse mecanismo permitiria inclusive a tributação, como forma de estimular a destinação adequada dos resíduos, desestimular sua retenção e reprimir a contaminação.
Software já existe para permitir esse controle.
O estudo propõe estruturar um sistema nacional de contabilidade ambiental. Esse sistema resgataria toda a discussão sobre gestão de resíduos e controle da poluição, contextualizando sua tutela em moldes compatíveis com o século XXI.
Estaríamos, assim, livres das velhas e ineficazes ladainhas sobre o controle da poluição por meio da fiscalização do transporte, da certificação de origem e destino dos resíduos, etc… Medidas importantes, porém, isoladamente, ineficazes.
b- Integrar os municípios aos acordos de logística reversa
A lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos instituiu a responsabilidade civil compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos, definindo-a como:
“conjunto de atribuições individualizadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar o volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como para reduzir os impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos”.
Se assim é, não há forma legal de desobrigar o setor privado de recolher os resíduos de embalagem e dispositivos eletrônicos descartados, coletados e devidamente segregados pelos serviços de saneamento municipal. E mais, não há como as prefeituras não exigirem a devida retribuição pelo serviço de coleta doméstica e segregação das embalagens e produtos eletro-eletrônicos.
Em verdade, o custo dessa cadeia não dever recair sobre os ombros do contribuinte, muito menos lotar aterro sanitário cuja destinação, por lei, é restrita a rejeitos… não a recicláveis.
Se por um lado o consumo deve investir-se de regras de sustentabilidade, por outro, o saneamento básico – obrigação dos municípios, não pode significar “desoneração” de setores industriais cuja obrigação pós-consumo do que produzem é, hoje, legalmente vinculada. O contrário desse raciocínio representa um enorme “dumping” socioambiental…
Assim, seja administrativamente, seja inclusive judicialmente, os municípios têm obrigação de serem considerados no mecanismo de logística reversa e na cadeia de pagamentos inerente à manutenção de um acordo setorial sério e eficaz (o que não têm ocorrido…).
c- Instituir grandes convenções coletivas de consumo
De fato, o Código de Defesa do Consumidor ( Lei Federal 8.078/1990), reza, no seu artigo 107 que:
Art. 107. As entidades civis de consumidores e as associações de fornecedores ou sindicatos de categoria econômica podem regular, por convenção escrita, relações de consumo que tenham por objeto estabelecer condições relativas ao preço, à qualidade, à quantidade, à garantia e características de produtos e serviços, bem como à reclamação e composição do conflito de consumo.
§ 1° A convenção tornar-se-á obrigatória a partir do registro do instrumento no cartório de títulos e documentos.
§ 2° A convenção somente obrigará os filiados às entidades signatárias.
§ 3° Não se exime de cumprir a convenção o fornecedor que se desligar da entidade em data posterior ao registro do instrumento.
Com efeito, esse grande dispositivo sequer é mencionado na doutrina brasileira, muito menos praticado pelo mercado ou estimulado pelo Poder Público.
Convenções coletivas de consumo poderiam, com mais eficácia que qualquer termo de ajuste de conduta ou mesmo decisão judicial, estipular garantias e salvaguardas em relação ao ciclo de vida dos produtos, em especial os eletroeletrônicos – de forma a proteger o consumidor da obsolescência precoce ou de eventual incompatibilidade de hardware com alterações de software em rede. As convenções poderiam abranger inclusive mecanismos de descarte dos produtos, ou estimular economicamente a sua troca ou inserção na operação de compra de novos aparelhos.
d- Reprimir a Obsolescência Precoce
O combate não pode se dar apenas no campo do Código de Defesa do Consumidor, como acima já visto.
Na verdade, se observada a grande escala do fenômeno, a obsolescência precoce e programada se insere claramente como conduta abusiva do poder econômico, visando auferir lucro de forma arbitrária. Nesse caso, há de se aplicar o disposto na Lei Federal 4.137/1962 e seu decreto regulamentador, bem como o disposto na Lei Federal 12.529/2011, que reprime condutas abusivas contra a ordem econômica.
Por óbvio que o assunto não pode implicar em alguma forma de neoludismo ou estímulo ao anarcoprimitivismo – tecnologias mudam e avançam em um ritmo cada vez maior, demandando alterações sensíveis sobre produtos e serviços. O que se espera com eventual tutela do Estado, é traçar meios de salvaguardar os consumidores e prevenir danos ambientais por conta dos descartes induzidos.
e- Conscientização do consumidor
O consumidor, por sua vez, precisa racionalizar e combater o consumismo, ciente do enorme impacto de sua atividade para o meio ambiente. Afinal, o consumidor não tem apenas direitos, tem também responsabilidades e obrigações por conta do que consome e do que descarta.
Em um futuro muito próximo, governos e sociedade civil deverão se debruçar sobre a tarifação dos serviços de coleta e destinação dos resíduos sólidos urbanos. De fato, não é possível que uma taxa de limpeza, ainda que vinculada à testada de um imóvel, possa se relacionar com a quantidade e a qualidade dos resíduos gerados pleo contribuinte.
É necessário que a retribuição pelo serviço público seja proporcional ao que se descarta particularmente. Isso poderá implicar a questão do descarte de produtos eletro-eletrônicos.
Conclusão
Durabilidade é sustentabilidade.Custo ambiental não pode mais ser uma externalidade – necessita ser internalizado na cadeia da logística reversa, incluindo a gestão pública dos resíduos domésticos.
Se essas medidas forem adotadas, começaremos a ver significativas mudanças, quebrando um ciclo vicioso que prejudica a todos e estimula a contaminação e a criminalidade.
Fontes
https://www.ambientelegal.com.br/consumo-obsolescencia-programada-e-descarte-dos-eletronicos/#sthash.Vugk95ur.dpuf
http://www.grida.no/publications/rr/waste-crime/
http://nacoesunidas.org/brasil-produziu-14-milhao-de-toneladas-de-residuos-eletronicos-em-2014-afirma-novo-relatorio-da-onu/
http://nacoesunidas.org/onu-preve-que-mundo-tera-50-milhoes-de-toneladas-de-lixo-eletronico-em-2017/
– See more at: https://www.ambientelegal.com.br/lixo-eletronico-e-problema-na-america-do-sul/#sthash.gAuHBZdU.dpuf
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Olá
Curti muito esse blog.
Beijos!
Brasil Turis do Jornal Netshoes