Guilherme Crippa Ursaia*
Ian Libardi Pereira**
Tratamos aqui de um caso curioso, no qual tanto o proprietário quanto o terceiro adquirente sofrem autuação administrativa pelo mesmo fato danoso ao meio ambiente relacionado ao corte de exemplares arbóreos acima da quantidade permitida pela Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA), do Município de São Paulo. O ato foi praticado pelo comprador, após a concretização da venda do imóvel, porém antes de proceder à sua transcrição no respectivo Registro de Imóveis.
Pode-se afirmar, inicialmente, que a militância no contencioso administrativo é tarefa muitas vezes ingrata, porque normalmente as decisões tendem ao indeferimento das manifestações e defesas apresentadas, pois o mesmo órgão que acusa é o que julga. A estrutura processual administrativa ambiental é inquisitiva, portanto, costumeiramente inflexível e, por isso, o defensor deve atuar buscando sempre dialogar com os responsáveis pela análise do processo, através de reuniões e manifestações nos autos, postura que nosso escritório, Pinheiro Pedro Advogados, costuma adotar.
O caso aqui referido só teve o desfecho positivo porque a atuação dos causídicos no processo obedeceu exatamente essa linha de conduta, senão vejamos:
A primeira tentativa de defesa do autuado, vendedor do imóvel, antes de contratar os serviços advocatícios, foi apresentar uma carta de próprio punho à SVMA, alegando que os terrenos objetos da autuação haviam sido vendidos a um terceiro e que a autuação ocorreu posteriormente à venda do imóvel, razão pela qual pedia a sua exclusão do processo. No entanto, a SVMA recebeu a carta como defesa administrativa e, como era de se esperar, a indeferiu. No mês seguinte, o então adquirente do imóvel protocolou petição requerendo que fosse anexado ao seu processo administrativo, o processo do vendedor autuado, e pedindo, por essa razão, a mudança de titularidade, face à aquisição.
Em meados de 2009, o próprio DECONT-G, que é departamento da SVMA, se manifestou pelo cancelamento do auto de infração em nome do autuado vendedor e pela expedição de auto de infração e de auto de multa em nome do terceiro adquirente. Contudo, o órgão adotou postura diversa em 2011, entendendo que, na data do fato, a transcrição do imóvel não havia sido efetivada e que o contrato particular teria validade apenas entre as partes. Daí concluiu que a responsabilidade sobre o auto de infração deveria permanecer não só com o vendedor autuado, mas também com o adquirente do imóvel. No caso em que estamos analisando, a SVMA afirmou que “a responsabilidade pela infração administrativa ambiental é, em primeiro lugar, do proprietário do imóvel.” Embasado neste entendimento, o Secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente negou provimento ao recurso administrativo, mantendo o auto de infração e o auto de multa, e determinando, ainda, que o autuado recolhesse o valor da multa atualizada, no prazo de 5 dias, sob pena de sua inscrição no CADIN, na dívida ativa e, cobrança judicial.
Inconformado com a decisão proferida, o vendedor desta vez devidamente assistido por seu advogado, protocolizou manifestação extemporânea, pedindo reconsideração do despacho alegando que o imóvel estava em nome do terceiro adquirente; que este já havia pleiteado a alteração do polo da demanda para constar seu nome; e que o dano já havia sido compensado por meio de TAC em nome do terceiro adquirente, (TAC esse que fora juntado aos autos como prova). Indiferente à manifestação, a SVMA alegou que não poderia julgar pedido de reconsideração, porque a Lei Municipal nº 14.141/06, que regulamenta o processo administrativo no Município de São Paulo, não a admitia. O Secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente ratificou o indeferimento do pedido.
Diante desse posicionamento, em abril de 2012, pleiteamos uma reunião com representantes do departamento jurídico, responsáveis pelo processo administrativo, na tentativa de demonstrar que a autuação caracterizava verdadeiro “bis in idem”, uma vez que o terceiro adquirente, causador do suposto dano fora autuado e já havia celebrado o TAC, procedido ao pagamento da multa, e pleiteava ainda a sua inclusão nos autos do processo em substituição ao vendedor, que figurava como autuado.
Por ser reconhecida que a natureza jurídica da responsabilidade civil (solidária) é diversa da administrativa, procuramos demonstrar o equívoco no posicionamento da SVMA. Além disso, pleiteamos também que o processo fosse enviado para análise da Procuradoria Geral do Município.
A única solução encontrada (pasmem!) foi a de o terceiro adquirente assumir a responsabilidade por meio de um acordo extrajudicial com apresentação de nova proposta de Termo de Ajustamento de Conduta, obrigando-se a pagar duas vezes pelo mesmo dano, só que desta vez em nome do autuado vendedor, enquanto a decisão terminativa administrativa não fosse publicada.
No início de 2013, entretanto, o autuado vendedor recebeu uma carta em sua residência, contendo a cópia de um despacho da SVMA que promovia o cancelamento do Auto de Infração e seu correspondente Auto de Multa. Diante desse fato, fomos ao órgão para analisar o processo e verificamos que novas manifestações e pareceres, foram acostadas aos autos, desta vez acolhendo a tese de “bis in idem”, pois, reconhecem que tanto o autuado, quanto o terceiro adquirente, haviam sido penalizados pelo mesmo fato, e entendendo inadequada a multa por duas razões: a primeira, a de que ambas as multas apresentam os mesmos valores, calculados com base na extensão do dano e não na divisão dele; e a segunda porque o auto de multa foi expedido em nome do autuado com o desconhecimento do terceiro adquirente, sem revisão do valor.
A PGM se manifestou, por meio da Informação nº 453/2011-PGM.AJC, insistindo que “inexiste responsabilidade objetiva do proprietário pelas infrações ambientais praticadas em seu imóvel” e que “diante da inexistência de qualquer norma sobre a questão, deve ser considerado “infrator” apenas aquele quem cometeu a infração (ou participou do cometimento), não podendo ser apenada pessoa diversa em razão do princípio constitucional da pessoalidade da pena.” No parecer, a PGM expressa entendimento de que a responsabilidade sobre as infrações administrativas ambientais é subjetiva, ao contrário do que o ocorre com a responsabilidade da reparação do dano, e esclarece que a terceira adquirente assumiu a conduta do dano ambiental, celebrou o TAC e pagou a multa, além de ter construído um galpão no local, portanto, notória sua responsabilidade pelo dano ambiental. Pela interpretação da PGM, o autuado somente poderia ser responsabilizado administrativamente caso tivesse concorrido para a infração. Por fim, a PGM concluiu que não deveria ser efetuada a inscrição da multa na dívida ativa municipal, e sugeriu a anulação da penalidade aplicada ao autuado.
No final, a Secretaria Municipal dos Negócios Jurídicos acompanhou a PGM, ou seja, declarou a inconsistência jurídica da multa ambiental, em decisão embasada na seguinte ementa:
“Extensão subjetiva da responsabilidade por infração ambiental praticada por empresa jurídica contratada para executar um projeto. Irregularidade cometida quando da sua execução. Responsabilidade administrativa indireta do contratante pela conduta do contratado, quando este executa o projeto em nome daquele. Previsão expressa do art. 3º, caput, da Lei Federal nº 9.605/98. Impossibilidade de responsabilizar, pela conduta do infrator direto, pessoas que, embora tenham alguma relação com o projeto, não possam ser consideradas como “representadas” pelo infrator direto que o executa: exemplos do patrocinador, locador, financiador ou fornecedor. Na sistemática da Lei Federal nº 9.605/98 e do Decreto Federal nº 3.179/99, as sanções administrativas ambientais não são solidárias, devendo ser individualizadas para casa pessoa considerada infratora, observando-se os critérios legais. Já a obrigação de reparar o dano causado é solidária, nos termos da jurisprudência pacífica do STJ, de forma que o seu cumprimento por qualquer dos infratores beneficia a todos.”
Denota-se que mesmo com os diversos indeferimentos, a autuação estava tão equivocada que o próprio departamento interno do órgão (JUD), apresentou entendimento discordante e atendendo ao pedido antes formalizado pelos causídicos, remeteu o processo à PGM, que acompanhou o entendimento do “Jud” e alterou a decisão proferida pela SVMA.
São diversas as possíveis críticas que poderiam ser feitas ao presente processo administrativo, tais como o valor absurdo adotado pela SVMA de R$ 10.000,00 por árvore, ou o termo de referência que poderia obrigar o autuado a plantar até mais de 50 árvores por unidade extraída, contudo, o aspecto aqui abordado é mais profundo e ataca diretamente a postura inquisitiva e inflexível de um órgão que deveria primar pela eficiência e legalidade.
* Guilherme Crippa Ursaia é Advogado, Auditor Líder Ambiental – ISO 14001 pela Bureau Veritas, tendo trabalhado no Folkecenter for Renewable Energy, Solar Panels, na Dinamarca e Center for Alternative Technologies – CAT em Wales – UK. É membro da Comissão de Meio Ambiente e da Comissão de Energia da Ordem dos Advogados do Brasil – Subseções de Santa Catarina e São Paulo. Atualmente Gerencia as áreas de Sustentabilidade e de Novos Negócios do escritório Pinheiro Pedro Advogados.
** Ian Libardi Pereira é advogado, técnico em urbanismo e conservação ambiental pelo Centro Técnico de Formação Profissional e Educação Ambiental (CEFOPEA) e pós-graduando em gestão ambiental pelo SENAC.
Olá, Guilherme, olá, Ian,
o caráter da responsabilidade administrativa (objetiva ou subjetiva) é, de fato, controverso na doutrina e na jurisprudência, como devem saber (inclusive com relação à multa simples, embora, neste caso, ao meu ver, trata-se de responsabilidade subjetiva, já que a lei fala em “negligência ou dolo”´- art. 72, § 3º, Lei 9605/98).
Também é sabido que os processos administrativos, além do caráter inquisitivo citado no artigo, conta com pouca propriedade técnica, infelizmente.
Diante deste cenário adverso, parabenizo-os pela vitória, ainda que árdua, no caso em apreço!