Por Paulo de Bessa Antunes*
A revogação das Resoluções nº 302 e 303/2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente [CONAMA] aos 28/09/2020 merece reflexão serena. Com efeito, desde a edição do Novo Código Florestal [Lei nº 12.651/2012 – NCF] em 2012, há importante discussão sobre a compatibilidade ou não de tais Resoluções com o NCF, sendo certo que a Consultoria do Ministério do Meio Ambiente, desde longa data, já havia se pronunciado pelas suas incompatibilidades com a nova lei.
Antes de entrar na questão da revogação, vale lembrar que a Resolução Conama nº 302 dispõe sobre os parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno e a Resolução nº 303/02 dispõe sobre parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente, matérias tratadas pelo NCF, devendo ser regulamentadas conforme os limites legais previstos na Lei nº 12.651/2012. Além disso, é juridicamente inconsistente uma revogação tout court que desconsidera importantes alterações legais e fáticas ocorridas no País e no mundo desde 2002.
Inicialmente, cabe registrar que o NCF, em seu artigo 1º A, parágrafo único [1], afirma o “compromisso soberano do Brasil com a preservação das suas florestas e demais formas de vegetação nativa, bem como da biodiversidade, do solo, dos recursos hídricos e da integridade do sistema climático, para o bem estar das gerações presentes e futuras” . Assim, considerando-se que a elevação do nível do mar é um fenômeno climático cada vez mais aceito pela comunidade científica , qualquer alteração no regime administrativo da vegetação em áreas costeiras deverá ter em conta tal circunstância. No mesmo contexto está o Acordo de Paris, incorporado ao direito brasileiro pelo Decreto nº 9.073, de 5 de junho de 2017
O Conama, como se sabe, é órgão regulatório do Sistema Nacional do Meio Ambiente (artigo 8º da Lei nº 6.938/1981) e, portanto, as suas medidas devem observar o disposto seja no Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 [Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB] , seja na Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2015 [Liberdade Econômica – LA]. De fato, o artigo 21 da LINDB estabelece que a decisão, “nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.” A desregulamentação, tal como foi feita, não previu um regime de transição, gerando mais insegurança jurídica.
Com efeito, boa parte da jurisprudência brasileira, mesmo após o NCF tem reconhecido como legítimas as Resoluções 302/303 – 2002 do Conama. “A legalidade das Resoluções editadas pelo CONAMA sobre o assunto já resta assentada pela jurisprudência, depreendida sua competência regulamentar a partir de sua lei de regência, e obedecidos os parâmetros então vigentes na Lei 4.771/65” (TRF 3 – APELAÇÃO CÍVEL – 1686665. 6ª Turma. e-DJF3 Judicial 1:13/09/2019).
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que: “ Em precedentes similares à hipótese dos autos, também de Santa Catarina, a Primeira e a Segunda Turmas do STJ já se manifestaram sobre a legalidade da Resolução 303/2002 do Conselho Nacional do Meio Ambiente, entendendo que o órgão não exorbitou de sua competência. Nessa linha, destaco precedente em que o Relator, Ministro Humberto Martins, ressaltou possuir “o CONAMA autorização legal para editar resoluções que visem à proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, inclusive mediante a fixação de parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente”. (REsp 1.462.208/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe de 6/4/2015). No mesmo sentido: “O fundamento jurídico da impetração repousa na ilegalidade da Resolução do Conama 303/2002, a qual não teria legitimidade jurídica para prever restrição ao direito de propriedade, como aquele que delimita como área de preservação permanente a faixa de 300 metros medidos a partir da linha de preamar máxima. Pelo exame da legislação que regula a matéria (Leis 6.938/81 e 4.771/65), verifica-se que possui o Conama autorização legal para editar resoluções que visem à proteção do meio ambiente e dos recursos naturais, inclusive mediante fixação de parâmetros, definições e limites de Áreas de Preservação Permanente, não havendo o que se falar em excesso regulamentar.” (REsp 994.881/SC, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 9/9/2009”)
Logo, diferentemente do que, apressadamente, se possa imaginar, a questão não é tranquila. Ao contrário, a jurisprudência judicial é diametralmente oposta à decisão tomada pelo CONAMA.
Necessário observar que a mudança da orientação administrativa adotada pelo CONAMA, nos termos do artigo 24 da mesma LINDB, nas hipóteses em que a aplicação das revogadas Resoluções já se tenha consumado, “levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.” Cabe observar que por orientação geral se deve considerar as “interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento público. “
As Resoluções do CONAMA são atos administrativos que, evidentemente, impactam esfera dos direitos econômicos de diferentes agentes, pois como se sabe, a proteção ambiental é, de certa forma, uma intervenção estatal na atividade econômica. Logo, não há dúvida de que o artigo 5º da LA é aplicável: “As propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, editadas por órgão ou entidade da administração pública federal, incluídas as autarquias e as fundações públicas, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico.”
Não se pode esquecer que cerca de 26,6% da população brasileira vive em municípios da zona costeira, isto é cerca de 50,7 milhões de habitantes [2]. Ainda segundo o IBGE, “[a] ocupação humana da costa do Brasil causa impactos no bioma marinho e na sobrevivência das espécies que o compõem, tornando necessário definir as áreas de maior importância biológica, assim como as áreas prioritárias para conservação. Toda a costa do estado do Rio Grande do Sul e a parte mais ao sul de Santa Catarina, caracterizada por longas linhas de praias e restingas, relativamente pouco impactadas pela ação humana, estão classificadas como de alta importância biológica e áreas prioritárias para conservação. Quanto aos recifes, a região Nordeste é a que apresenta maior área prioritária para conservação. Ressalta-se que mais de 90% das áreas prioritárias de conservação encontram-se fora das áreas abrangidas por unidades de conservação oficiais.”
Do ponto de vista econômico, é importante observar a afirmação do IBGE: De acordo com dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, o saldo da balança comercial pesqueira, que abrange peixes, crustáceos, moluscos e outros invertebrados aquáticos, tem se tornado cada vez mais negativo. No ano 2000, as exportações do setor representaram US$ 227,5 milhões, enquanto as importações somaram US$ 274,1 milhões, resultando em um saldo comercial negativo de US$ 46,6 milhões. O saldo viria a se tornar positivo entre os anos 2001 e 2005, mas a situação voltou a se inverter em 2006, quando o saldo ficou negativo em US$ 75,2 milhões. Essa diferença foi aumentando com o passar dos anos até se tornar dez vezes maior em 2010 (– US$ 757,2 milhões), quando as exportações somaram US$ 199,4 milhões e as importações totalizaram US$ 956,5 milhões.” Ou seja, a ocupação desordenada do litoral é um péssimo negócio economicamente falando.
A atividade turística no litoral não tem nada a ganhar com a medida tomada pelo Conama, ao contrário. O que atrai turistas para o litoral é a boa qualidade das praias. Neste quesito, dos 7 mil quilômetros de litoral (linha continua), possuímos menos de 20 praias com a certificação Bandeira Azul [3] , sendo que a Espanha possui cerca de 670 praias com tal certificação [4].
Em relação à Resolução nº 303, o tiro saiu pela culatra. “A Resolução do CONAMA foi criada para definir as áreas de APP que são explicitadas nas Leis nº 4.771/65 e 6.938/81 e é o único instrumento que tenta normatizar essas áreas. No entanto, o próprio CONAMA está realizando uma revisão da Resolução uma vez que não atende uma grande quantidade de casos reais. Ainda, há a discussão sobre o Novo Código Florestal e modificações dos entendimentos técnico-ambientais poderão ocorrer à luz de novos instrumentos legais.”[5] Ao revogar a Resolução, o CONAMA, lançou na ilegalidade toda construção que se encontre em qualquer parte mais elevada de um morro, ou mesmo em uma cadeia montanhosa.
Assim, o CONAMA perdeu uma ótima oportunidade para estabelecer uma regulamentação moderna para a matéria e que pudesse servir de guia para os Estados e Municípios em tema tão relevante. Agora, teremos uma sequência de discussões judiciais que, certamente, só acrescentarão mais insegurança jurídica. Seria muito proveitoso se a Advocacia Geral da União – AGU pudesse promover uma ampla conciliação administrativa com os diferentes stakeholders, de forma que se pudesse produzir um conjunto de normas que levasse em consideração as questões acima apresentadas.
[1] Disponível em < http://www.observatoriodoclima.eco.br/nivel-mar-esta-acelerando-ha-60-anos/ > acesso em 30/09/2020
[2] Disponível em < https://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html?busca=1&id=1&idnoticia=2036&t=ibge-parceria-marinha-brasil-lanca-atlas-geografico-zonas-costeiras-oceanicas&view=noticia > acesso em 30/09/2020
[3] Disponível em < http://www.turismo.gov.br/%C3%BAltimas-not%C3%ADcias/12995-mais-seis-praias-brasileiras-recebem-certificado-bandeira-azul.html > acesso em 30/09/2020
[4] Disponível em < https://en.wikipedia.org/wiki/Blue_Flag_beach > acesso em 30/09/2020
[5] Disponível em : < https://abrampa.jusbrasil.com.br/noticias/2974340/topo-de-morro-na-legislacao-atual > acesso em 30/09/2020
*Paulo de Bessa Antunes – Mestre e Doutor em Direito. Líder de Pesquisa Acadêmica cadastrada no CNPq. Visiting Scholar de Lewis and Clark College, Portland, Oregon. Professor adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Procurador regional da República (aposentado). Foi Presidente da Comissão Permanente de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros. Ex-chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Estado do Meio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro. Sócio da prática de Direito Ambiental do Tauil & Chequer Advogados, advogado e parecerista em Direito Ambiental. Autor de diversos livros e artigos sobre Direito Ambiental.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 30/09/2020
Edição: Ana A. Alencar