Por Felipe Pires Muniz de Brito*
No dia 28.03.2019, o Supremo Tribunal Federal declarou, através do RE 494.601-RS, a constitucionalidade do art. 2º, Parágrafo único da Lei Estadual Rio Grande do Sul nº. 12.131/2004, que dispõe sobre a possibilidade de sacrifícios aos animais para fins religiosos em relação aos cultos de religiões de matriz africana.
A discussão é antiga e remonta ao processo legislativo. Desde 1991, propostas foram apresentadas na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul para vedar o sacrifício aos animais por conta de ritos religiosos, tendo resultado, enfim, na Lei Estadual RS nº. 12.131/2004.
Porém, grupos religiosos, principalmente de religiões de matriz africana, se sentiram atingidos pela lei e, sob alegação de perseguição, passaram a combatê-la. Mais adiante, conseguiram a aprovação de emenda legislativa que inseriu parágrafo único para excluir da incidência da norma os ritos realizados por tais religiões.
Nesses parâmetros, o Ministro Marco Aurélio, ao julgar o caso, determinou que “revela-se desproporcional impedir todo e qualquer sacrifício religioso de animais, aniquilando o exercício do direito à liberdade de crença de determinados grupos, quando diariamente a população consome carnes de várias espécies. (…). O sacrifício de animais é aceitável se, afastados os maus-tratos no abate, a carne for direcionada ao consumo humano. Com isso, mantém-se o nível de proteção conferido aos animais pela Constituição Federal sem a integral supressão do exercício da liberdade religiosa”[1].
No mesmo sentido, o Ministro Edson Fachin, ao proferir o voto no STF, afirmou que “a proibição do sacrifício acabaria por negar a própria essência da pluralidade, impondo determinada visão de mundo a uma cultura que está a merecer, como já dito, especial proteção constitucional”[2].
O debate passa pela discussão acerca da possibilidade de restringir o direito fundamental de liberdade religiosa, na perspectiva de liberdade e requer fundamento no princípio da proporcionalidade. Assim, revela-se fundamental avaliar o crescimento da proteção aos animais ao longo dos anos.
No cenário brasileiro, a defesa dos animais ganhou, desde a CF/88, destaque no sistema normativo brasileiro com a expressa vedação aos maus-tratos. As políticas públicas sobre animais estão na ordem do dia que, dentre outros assuntos, aborda, hospitais veterinários, centros de zoonoses, fim dos jardins zoológicos, de experimentos e espetáculos com animais.
O próprio STF também tratou da defesa da proteção aos animais. Coibiu eventos culturais como: (i) “Briga de Galo” [3]; (ii) “Farra do Boi” [4] e, mais recentemente, “Vaquejada” [5]. Cumpre observar que na perspectiva animal, a integridade física ou a própria vida somente são atendidos se mantida a norma de proibição total dos atos (culturais ou religiosos).
A decisão do STF, por maioria de votos, negou provimento ao recurso para considerar a lei gaúcha constitucional, mas não resta imune à crítica. A Lei Estadual RS nº. 12.131/2004, após a emeda que exclui as religiões de matriz africana, viola o princípio da igualdade por ter sido implantada pontual em benefício de um determinado segmento religioso em contraponto ao caráter genérico e abstrato das normas[6].
Nota-se, que o Ministro-Relator do caso Marco Aurélio, trata sobre “medida desproporcional”, mas não perfaz detalhada análise ultrapassando os corolários da proporcionalidade (necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito). Independentemente do resultado, a decisão carece de rigor técnico-jurídico do uso do princípio da proporcionalidade.
É inegável que a liberdade religiosa possui papel fundamental no Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que não é um direito absoluto. A crueldade aos animais, por sua vez, possui disposições constitucionais, legais e jurisprudenciais no Brasil, tendo também suas dimensões na construção de uma sociedade sustentável.
Nessa perspectiva, considero que o STF ao observar o conflito desconsiderou (i) a tecnicidade sobre o princípio da proporcionalidade; (ii) a violação da igualdade em que apenas um segmento religioso (matriz africana) foi consagrado para excludente da vedação aos maus-tratos aos animais; (iii) as decisões judicias anteriores da própria Corte sobre defesa aos animais (Farra do Boi, Rinha de Galo e Vaquejada) e (iv) a relevância da proteção aos animais no cenário atual, na Constituição, que veda os maus-tratos.
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Notas:
[1] Voto Ministro-Relator Marco Aurélio. STF. RE 494.601-RS. Relator. Min. Marco Aurélio. Julgado em 28.03.2019.
[2] Voto-Vogal Ministro Edson Fachin. STF. RE 494.601-RS. Relator. Min. Marco Aurélio. Julgado em 28.03.2019.
[3] STF, DJE 14.10.2011, ADI nº. 1856 – RJ. Rel. Min. Celso de Mello.
[4] STF, DJE 13.03.1998, RE nº 153531 – SC. Rel. Francisco Rezek.
[5] STF, DJE 27.04.2017, ADI nº. 4983/2013. Rel. Min. Marco Aurélio Mello.
[6] Cumpre ressaltar que esse ponto foi debatido no julgamento, o que dividiu a Corte para os que entendessem a realização de interpretações conforme o texto constitucional para ampliar a vedação para todas as religiões, que restou vencido, e aqueles que mantinham integralmente a lei gaúcha.
*Felipe Pires Muniz de Brito – Advogado. Mestrando em Ciências Jurídico-Ambientais da Faculdade de Direito de Lisboa – FDUL. Pós-Graduação em Direito Ambiental – PUC-RJ. Pós-Graduação em Direito e Meio Ambiente Sustentável – UFPR. Pós-Graduação em Direito Público – UCAM. LLM em Direito do Estado e da Regulação – FGV-RJ. Pesquisador Erasmus Program – Università degli studi di Roma Sapienza- SAPIENZA. Graduado em Direito pela PUC-RJ. Presidente da Comissão de Direito Ambiental – OAB-RJ – Leopoldina – Triênio 2015-2018. Vice-Presidente da Comissão de Direito Urbanístico OAB-RJ – Barra da Tijuca -. Triênio 2019-2022. Membro efetivo da Comissão Ambiental OAB-RJ.
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Fonte: Direito Ambiental