O novo quilombo brasileiro é a educação
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
20 de novembro marca do dia em que Zumbi desparece no sangue da batalha contra Domingos Jorge Velho e seus mercenários, contratados pela Coroa Portuguesa para destruir o Quilombo dos Palmares. Zumbi morre para ganhar vida eterna na história. Zumbi é um termo derivado do quimbundo “nzumbi”, que significa “duende”, “homem morto”, com “nzambi” quicongo, que significa “deus”. Daí a lenda do homem que reina mesmo depois de morto.
O dia de Zumbi do Palmares, portanto, é o dia de comemorar a irmandade. Dia de celebrar as firmes e profundas raízes africanas na história do Brasil. Dia de meditarmos sobre os milhões de irmãos que aqui chegaram acorrentados, vendidos em praça pública e escravizados… por quatro séculos de regime imperial, cruel e racista.
Os números e datas de nossa história revelam que a vergonha da escravidão combatida por Zumbi, praticamente cessou “ontem”…
De fato, o Brasil chafurdou na ignorância e ignomínia por quase quatrocentos anos, e busca recuperar o tempo perdido, entre idas e vindas, a pouco mais de cem. Em quinhentos e dezessete anos de história, o brasileiro só pôde ler o primeiro jornal e editar o primeiro livro há duzentos e dez anos. O primeiro curso universitário brasileiro foi implementado efetivamente há cento e oitenta e seis e… o país livrou-se da escravidão há cento e trinta.
O Brasil foi o último país do mundo ocidental a retirar o trabalho escravo do seu modo oficial de produção. Isso significa que há, no Brasil, quem ainda viva para contar uma história de um pai ou mãe que tenha sofrido com a escravidão…
Daí a importância da data, que não deslustra a comemoração da Lei Aurea, mas vai muito adiante dela. Resgata a dignidade que só é auferida na luta, na ação afirmativa.
O quilombo de Zumbi, o quilombo dos Palmares, resgata a busca pela liberdade. Revela que a exploração do homem pelo homem no Brasil não se deu sem resistência e luta pela dignidade.
Ganga Zumba e depois Zumbi, representam a formação de uma organização territorial de resistência em pleno estado colonial português. Sequer os arraiais brancos, ao longo da história, incluso os episódios de resistência bandeirante ou de guararapes, tiveram tamanha expressão econômica, territorial e mesmo militar.
Milhões de irmãos representam essa luta. Expressam a vitória sobre o preconceito e simbolizam superação com mérito pessoal, na construção de uma nação plural e justa.
Mas o quilombo é muito mais que um arraial.
O quilombo substituiu a estrutura familiar no organismo social da sociedade escravagista colonial.
Aos escravos, no Brasil, era negado desenvolver família. Casais eram separados, os filhos vendidos.
O senso de irmandade, de unidade, de proteção familiar e de acumulação de capital, portanto, só pôde firmar-se no quilombo.
O quilombo foi a unidade comunal construída no Brasil pelos que buscavam a liberdade. Por séculos, substituiu a família negada aos negros.
Somente após a Lei Aurea, o quilombo pôde ver-se aos poucos substituído pela unidade familiar, entre e com os afrodescendentes. Essa substituição, que conta com pouco mais de três gerações, só pôde ser obtida ao abrigo da cultura quilombola, transferida às comunidades organizadas nas favelas e mocambos, nos arredores dos centros urbanos brasileiros.
A família é a célula da sociedade e, também, fonte da acumulação do capital. A riqueza se firma com a unidade familiar.
A família, no entanto, foi negada aos negros no Brasil, por decisão do Estado.
Para se ter ideia do que isso representa, nos EUA, graças à formação puritana, as famílias afrodescendentes puderam se organizar ainda no regime escravocrata.
Aliás, o regime de propriedade privada americana (que não existia no Brasil das sesmarias), permitiu aos negros livres organizarem sua primeira universidade já em 1830, sendo que hoje, nos EUA, há mais de cem campus universitários afroamericanos. Isso torna o histórico de lutas e de afirmação racial norte americano algo totalmente diferenciado.
Não há paralelo entre a escravidão nos EUA e no Brasil. Aqui, a crueldade e a perversão compunham a cultura.
Se os negros americanos já possuiam sua universidade em 1830. Os brancos brasileiros ainda vegetavam na ignorância e no analfabetismo – massacrando negros, que não podiam formar família.
A família foi, portanto, duramente conquistada pelo negro brasileiro.
Quando os imigrantes chegaram, a partir da Lei de 1850, até o regime de terras particulares foi instituído para abrigar suas famílias. Com a imigração, o regime da propriedade privada foi instituído no Brasil.
Aos negros…a família ainda era negada, pois neste mesmo ano se estabeleceu que o filho do negro nasceria livre (mas os pais, continuariam escravos).
A propriedade, “dada” aos imigrantes, por lei, foi negada no mesmo ano, por lei, aos negros.
Mais de trinta anos depois, milhões de escravos viram-se livres…sem família, sem casa, sem terras, sem sobrenome…
Aliás, nunca houve qualquer lei que organizasse uma distribuição de terras ou conferisse indenização de qq espécie aos milhões de escravos libertos e deixados ao abandono.
Pelo contrário. O governo brasileiro QUEIMOU todos os registros. Impedindo até mesmo que os afrodescendentes pudessem conhecer sua origem.
Em meio a tamanha desproporção de tratamento, é criminoso comparar a economia da imigração estrangeira com a deseconomia da escravidão brasileira.
Nesse massacre secular, os negros que se destacaram, superando todas as barreiras, merecem todas as honras de heróis.
Guardo isso, com muito orgulho, no meu sangue. Meu avô materno, Antenor Alves Pinheiro, é símbolo dessa luta gloriosa. Antenor foi um privilegiado, pois ele e seu irmão Amador já eram fruto de uma família constituída, filhos do Antenor- pai, homem livre que viveu no Espírito Santo, terra dos Rezende, no século XIX.
Enquanto Amador resolveu seguir o comércio no Rio de Janeiro, Antenor partiu para tentar a vida, como padeiro, no interior de Goiás, na passagem do século. Ali, abriu seu próprio estabelecimento, comprou terra, ampliou os negócios e casou com uma moça branca, descendente de um Rezende que havia também partido para Goiás. Com Dona Julieta gerou nove filhos, todos criados com amor e sacrifício.
Antenor não recebeu seu espaço na sociedade de graça. Conquistou-o com luta. Enfrentou o preconceito covarde, que não se revela, mas é infligido em doses mortais e cotidianas. Ganhou o respeito no trabalho, na inteligência e não raro na bala. Enquanto desenvolvia seus negócios, defendia suas ideias e posições e não fugia ao enfrentamento político. Isso, no rude interior do sertão goiano, na primeira metade do século passado.
Com dignidade, Antenor fez seus filhos estudarem nos colégios de primeira linha. Ia visitá-los nos colégios maristas montado em sua motocicleta – detalhe que expressa toda a diferença, nos anos 30.
Antenor era cuidafos com a formação da prole. Embora duro e rigoroso, patrocinava um reforço nas férias, em matemática e…música. Fez todos os filhos diplomados, capazes de criar e formar netos igualmente fortes e cidadãos. Seus netos, hoje, já formam mais de 30 núcleos de familias Pinheiro… todos vitoriosos.
Antenor é um herói. Está presente em nossa vida e ligado ao nosso passado. Ao seu modo, a partir do seu pai, meu bisavô construiu com sucesso a estrutura familiar, permitindo a acumulação de capital.
Isso, no entanto, ainda é exceção. A economia afrodescendente ainda mantém uma base na estrutura quilombola, ainda permanece refém de uma estrutura fundiária dos tempos das sesmarias, concentrada nos mocambos e favelas e assediada pelo Estado.
A classe média brasileira, hoje, já é ocupada em sua maioria por afrodescendentes. É bastante miscigenada, mas ainda guarda no fundo do baú as fotografias e registros dos negros antepassados – um “passado negro” muitas vezes não registrado.
Daí a importância de relembrar Zumbi. O significado do quilombo.
No presente, quero deixar aqui minha homenagem a um irmão de lutas e companheiro de jornadas, Prof. Jose Vicente, o Magnífico Reitor das Faculdades Zumbi dos Palmares.
Como os vários outros heróis negros da história cotidiana, Vicente também enfrentou, e ainda enfrenta, a enorme muralha do preconceito racial, que só cede pelo temor atávico do Estado brasileiro à figura libertadora de Zumbi.
Jose Vicente resgatou, nos anos 90, o projeto dos negros americanos de 1830: fundou a primeira faculdade afrodescendente ao sul do equador, nos moldes americanos. Pôs de pé, no Brasil, sem ajuda (pelo contrário), um projeto diferenciado de educação que permitiu como nunca antes, ampla inserção do negro no mercado de trabalho e na academia.
O novo quilombo brasileiro é a educação.
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental, Secretário Executivo de Mudanças Climáticas do Município de São Paulo. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor-Chefe dos Portais Ambiente Legal, Dazibao e responsável pelo blog The Eagle View. Twitter: @Pinheiro_Pedro. LinkedIn: http://www.linkedin.com/in/pinheiropedro
Pinheiro Pedro é um dos fundadores da Afrobrás, presidida pelo Prof. José Vicente, e mantenedora das Faculdades Zumbi dos Palmares.
Dignificante ler essas linhas.Saber que apos muita labuta possam exercer seus direitos e cidadania. MAS A COROA PORTUGUESA NAO OLHOU PARA NINGUEM AQUI. NEM BRANCOS E AINDA MENOS PARA OS NEGROS.VIERAM SO ARRANCAR O QUE NOSSA TERRA TINHA.SO ESPOLIARAM.TODA NOSSA RIQUEZA ESTA EM PORTUGAL