Por Paulo Affonso Leme Machado*
Choveu intensamente no município de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, Brasil, no último fim de semana.. As encostas deslisaram, arrastando pessoas e casas que estavam ali construídas, com dezenas de mortes e muitas pessoas desaparecidas. Necessário que se aborde esse tristíssimo acontecimento sob o prisma do Direito, para analisar-se a obrigação de prever o desastre e apontar-se a responsabilidade jurídica pela ocorrência.
A Constituição de 1988 determina: “Artigo 21. Compete à União: (…) XVIII – planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações; (…)”.
A locução “calamidades públicas”, tem um conteúdo mínimo: as secas e as inundações fazem parte das calamidades públicas. Para enfrentá-las há a obrigação de ser estruturada a defesa civil, cuja legislação é de competência privativa da União (artigo 22, XXVIII da Constituição). A Defesa Civil visa a proteger a sociedade como um todo, incluindo cada pessoa e o corpo social, inclusive a parte material da sociedade — edifícios privados ou públicos, quaisquer que sejam.
A política nacional de proteção e de defesa civil abrange as ações de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação. Deve integrar-se às políticas de ordenamento territorial, desenvolvimento urbano, saúde, meio ambiente, mudanças climáticas, gestão de recursos hídricos, geologia, infraestrutura, educação, ciência e tecnologia e às demais políticas setoriais, tendo em vista a promoção do desenvolvimento sustentável (Lei 12.608/2012).
A referida Lei emprega o termo “desastre”, pelo menos, 56 vezes. Algumas, no sentido de situação de desastre e, a maioria das vezes, como risco de desastre. O Decreto 7.257/2010 conceitua desastre como “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, materiais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais”.
A Lei comentada tem uma característica marcante: o desastre pode e deve ser prevenido. Não é preciso a ocorrência do perigo de desastre, que comportaria a produção de uma prova robusta. Basta o risco de desastre, que, mesmo incerto, obriga a evitar as prováveis consequências de um fenômeno natural ou advindo da ação ou omissão humana.
A Lei 12.608 é incisiva ao afirmar que “a incerteza quanto ao risco de desastre não constituirá óbice para a adoção das medidas preventivas e mitigadoras da situação de risco” (artigo 2º, §2º). Pela lei brasileira sobre desastres não é necessário que se tenha uma prova incontestável de que o desastre possa ocorrer, basta ocorrer o risco de desastre para que as medidas de prevenção sejam tomadas. A afirmação de que vivemos numa sociedade de risco não pode conduzir-nos a aceitar passivamente a submissão a riscos que afrontam o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e que violam sistematicamente o direito à sadia qualidade de vida. Não se tem o direito de esperar a ocorrência de desabamentos e de mortes para que, só então, sejam tomadas providências.
Criação de bairros e vilas são o principal meio pelo qual os seres humanos contribuem para a ocorrência de deslizamentos, alterando os padrões de drenagem, removendo a vegetação e desestabilizando as encostas.
Em São Sebastião ocorreu, agora em fevereiro, um deslizamento de grande impacto. A execução da Política Nacional de Defesa Civil deve ser implementada pelos três níveis de governo — o governo federal, o governo do estado de São Paulo e o município de São Sebastião. Importa salientar que a Lei previu o ente público que tem o dever de retirar as pessoas das áreas de risco — o município de São Sebastião. Leiamos esse texto legal: “Verificada a existência de ocupações em áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos, o Município adotará as providências para redução do risco, dentre as quais, a execução de plano de contingência e de obras de segurança e, quando necessário, a remoção de edificações e o reassentamento dos ocupantes em local seguro” (artigo 3º B, da Lei 12.340). Portanto, a remoção dos ocupantes da área de risco é de responsabilidade do prefeito do e da Câmara Municipal de São Sebastião.
O noticiário jornalístico deste mês informa que “nos últimos três anos a Prefeitura de São Sebastião acumula 37 condenações judiciais, exigindo que se regularizem as ocupações próximas à Serra do Mar”, sendo que “as sentenças atendem a pedidos do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente do Litoral Norte do Ministério Público de São Paulo”. (O Estado de São Paulo, 23/2/2023-A1).
O município de São Sebastião, no passado, em 1992, promulgou o Código Municipal de Meio Ambiente, sendo uma das primeiras cidades no Brasil a ter esse diploma legal. Tive a oportunidade de colaborar para a elaboração dessa lei. Contudo, como se constata das notícias veiculadas, o município não está tomando as medidas eficazes e necessárias para a remoção de pessoas que habitam áreas de risco. O número de pessoas altamente carentes tem aumentado no Brasil, os hoje chamados “moradores de rua”. Muitos fatores concorrem para isso, inclusive a ausência de um planejamento familiar eficaz. Mas não é possível que os moradores em áreas seguras fiquem inertes e insensíveis a problemas como os de São Sebastião e de outros municípios brasileiros. Os governos só efetuarão a transferência da população de risco se forem fortemente cobrados, com a contínua participação da sociedade, do Ministério Público e do Judiciário.
*Paulo Affonso Leme Machado é professor no Instituto de Biociências da Unesp (Universidade Estadual Paulista), professor convidado na Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Limoges, na França, professor de graduação e pós-graduação na Faculdade de Direito da Universidade Metodista de Piracicaba e autor do livro Direito Ambiental Brasileiro.
Fonte: ConJur
Publicação Ambiente Legal, 24/02/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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