Bioética serve como ponto de reflexão para cientistas e legisladores
Por Vitor Lillo
“Bioética é seguir as regras da natureza sem pestanejar”, define o advogado, biólogo, pesquisador e professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (UNESP), Nivar Gobbi, de forma categórica.
São muitos os significados para “bioética”, termo criado na primeira metade do século passado. São, em suma, condutas baseadas no estudo de conceitos da Filosofia e do Direito para esclarecer e resolver questões éticas frente aos avanços da medicina e da biologia com a intenção de, justamente “seguir as regras da natureza”.
Por ser uma ética prática, a bioética trata de vários temas delicados como aborto, eutanásia, transgênicos, fertilização in vitro, clonagem e testes com animais. Já para o biólogo Gobbi, a discussão pode ganhar um caráter amplo, com temáticas sociais.
“Também não se podem aceitar certas situações. Não é natural, por exemplo, gastar US$ 1 ,2 bilhão com ração para cachorro. 150 mil crianças vão ser condenadas à morte em vida por dia porque não receberão os nutrientes necessários para o seu desenvolvimento intelectual e exercerem atividades relacionadas à ciência e tecnologia, por exemplo”, argumenta.
Nivar vê com preocupação a guinada em prol do biocentrismo. “Eu vejo um deslocamento do homem como centro [da natureza], o que é bom, mas também é horroroso. Para mim a vida de um homem vale mais que a de mil pandas. Não sou contra a lista de animais em extinção, mas gostaria de ter mais listas dessas referentes às crianças todos os dias”, sustentar.
Dos assuntos discutidos pela bioética, sobretudo na área científica, os alimentos transgênicos é um tema que gera debates acalorados. “Eles [os especialistas] dizem: ‘mexeram nos genes, aceleraram o processo’. E a evolução é algo que leva milhões de anos; o efeito disso sobre [o ser humano] nós não sabemos, mas a produção aumentou”, aponta Nivar Gobbi.
Para o professor os efeitos causados pelo consumo de alimentos transgênicos podem ser danosos, mas ao abordar este aspecto, ele levanta outra questão interessante: o simples ato de consumir alimentos de origem animal ou vegetal, nos expõe ao risco.
“Todo tipo de alteração gera problemas [para o organismo], até mesmo por questão de seleção natural; existem pessoas que são mais frágeis que outras. Se você come carne, também consome todos os hormônios de crescimento, os antibióticos da carne. Estamos recebendo uma carga brutal desse material”, completa.
E se a questão forem os antibióticos e hormônios de crescimento para humanos, por exemplo? Essa é outra polêmica entre os especialistas, que se dividem entre os defendem a utilização de seres humanos em testes de novos medicamentos e aqueles que fazem ressalvas à prática.
Para o médico e professor da Universidade de Campinas (UNICAMP), Flávio César de Sá, o ser humano “deve nunca ser o meio, mas o fim” quando se trata de pesquisas científicas. Ele critica a realização de trabalhos que dão prioridade ao avanço tecnológico em detrimento da melhoria da qualidade de vida para o homem.
“A gente não deve nunca pesquisar alguma coisa ou ir atrás do avanço tecnológico e depois tentar justificar, o caminho tem que ser o contrário. A gente tem que balizar a ciência pela ética; toda pesquisa tem que ter como premissa a melhora da qualidade de vida das pessoas. Não adianta eu buscar formas de aprimorar as pessoas e depois justificar”, opina.
Flávio César ressalta ainda que a legislação brasileira está avançada nessa questão. “Hoje temos a Resolução 466 do Conselho Nacional de Saúde, que regula as relações entre os participantes e os realizadores de pesquisas. O Brasil, se formos ver sob o ponto de vista de legislação, tem algo muito bom”.
Segundo o especialista, desde a década de 1990 as autoridades brasileiras passaram a dedicar maior atenção ao tema e hoje o país se preocupa com o cidadão. “Claro que existe burla, mas acho que o Brasil está na frente, se considerarmos outras nações em desenvolvimento Temos resoluções do Conselho Nacional de Saúde, da Anvisa voltadas à bioética”, afirma Sá.
O professor cita outras questões delicadas como a clonagem humana, proibida internacionalmente, a pesquisa com células-tronco embrionárias – prática liberada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2008 – e a abreviação da vida para pacientes terminais, um verdadeiro tabu entre os profissionais de medicina.
“No momento, a questão mais grave que a gente enfrenta no dia-a-dia é a dos pacientes terminais. Hoje avançamos muito, em medicamentos e técnicas para manter as pessoas em estado grave. Esse é o problema: saber até que momento aquele tratamento é bom para a pessoa”, comenta o Dr. Flávio César.
Com o avanço das pesquisas científicas, novas questões se colocam diante de cientistas, biólogos e profissionais do Direito. Entre elas estão as modificações que podem ser feitas dentro de nosso corpo para aprimorar as funções biológicas do ser humano. Hoje se fala sobre a possibilidade de doping genético entre atletas, amanhã o assunto será a biotecnologia.
Para o professor aposentado Nivar Gobbi, muitas dos instrumentos e meios de transporte que usamos hoje – o carro é um exemplo – são extensões da nossa mente ou instrumentos exossomáticos, como denominam os especialistas. Eles são a chave de nossa evolução e sobrevivência. “O homem mamífero é dos mais frágeis. A evolução apostou na extensão da nossa mente”, afirma.
O problema agora, segundo Gobbi, está nas soluções que não são mais a extensão de nossa mente e corpo, mas parte dele. Graças à biotecnologia, implantes de chips com toda a informação existente no mundo, a “eterna juventude” por meio da recriação de órgãos serão realidade. Estaríamos caminhando para uma era de “super-homens”. Como ficará a bioética em meio a tudo isso?
“Aí vem a questão ética. A biotecnologia que não só cria o transgênico, mas cria chips orgânicos, com isso poderemos acelerar processos criando um super-homem. No momento em que você conseguir colocar todo o conhecimento, num chip, por exemplo, você pula etapas e não sei se isso é bom. E tem mais: essa tecnologia estará disponível para todos? Acho que não”.
Mesmo que essa nova realidade demore a chegar, a humanidade deve discuti-la o quanto antes. Pois está em jogo o modo de vida que queremos para as próximas gerações: aquele ditado pela natureza em toda a sua inexplicável perfeição ou pela previsibilidade e inconstância dos homens.