Road movie paraguaio aborda tensões culturais e identitárias de um país de nobre herança indígena guarani.
Por Felipe Viveiros*
É muito possível que você nunca tenha visto um filme do Paraguai. Ou sequer conheça a cultura do país para além da “Ponte da Amizade”, na tríplice fronteira em Foz do Iguaçu. Talvez o que você imagine a respeito dos nossos vizinhos, sejam estereótipos preconceituosos de contrabando e pirataria. Para os entusiastas de História é claro o que vem à mente: o maior conflito armado internacional da América do Sul, a Guerra do Paraguai. Se nada disso passou pela sua cabeça, chances grandes de que você não more no Brasil ou até mesmo habite este continente. É curioso que um país tão próximo, seja tão desconhecido por nós em matéria de cultura popular. Está na hora de conhecer o Paraguai, e é pelo cinema que começaremos nossa viagem.
Embarcamos nas abundantes águas do Rio Paraná a bordo do filme Guaraní (2015), um road movie que explora o trajeto estético, linguístico e cultural do Paraguai a Argentina. Estreia do diretor Luiz Zorraquin, com o apoio da Secretaria Nacional de Cultura do Paraguai, o longa é uma história íntima que aborda, com sutileza, o lado familiar das tensões culturais e identitárias de um país de nobre herança indígena guarani.
Na maioria das Américas, idiomas coloniais da Europa forçaram as línguas nativas do continente a extinção. No Paraguai, o guarani continua sendo um dos principais idiomas de 70% da população, com um diferencial. Ao contrário de outras línguas originárias como o quechua e idiomas maias, o guarani é falado, de maneira ampla, por pessoas não-indígenas. O “orgulho de ser guarani” não fica apenas nas questões étnicas é, antes de tudo, uma afirmação política. No Paraguai, grande parte da população indígena recusou-se a aprender o espanhol, fazendo com que os governadores imperiais aprendessem o guarani.
Guaraní é um convite a entender as complexidades do Paraguai contemporâneo, visto principalmente através de uma lente pós-colonial. O protagonista Atilio, interpretado por Emilio Barreto, incorpora a figura do velho pescador que tem, como maior sonho, transmitir conhecimento e cultura guarani para um neto – do sexo masculino. É um patriarca de uma família formada apenas por mulheres. Paraguaio tradicional, orgulhoso de sua origem, vive da pesca, um trabalho árduo e digno. Atilio, assim como os ancestrais de sua terra, recusa-se a falar espanhol, fazendo com que todos que se comuniquem com ele, falem guarani.
O que Atilio revela no longa não é mera teimosia. Embora falado pela maioria da população, o guarani foi reprimido pelos governos paraguaios em diversos momentos de sua história, desde a independência. O idioma foi proibido nas escolas públicas por mais de 100 anos. A fluência em guarani e o silêncio em espanhol comunicam: cultura é transmitida através da nossa própria língua.
A trama se desenvolve exatamente no contraste entre a aceitação do “outro” e o respeito à tradição. O membro da família mais próximo a Atilio é Iara, sua neta, adolescente de 14 anos interpretada pela atriz Jazmin Bogarin. A menina ajuda o avô na pesca e sua mãe mora em Buenos Aires (Argentina), trabalhando longas horas para mandar dinheiro para casa. Comunicam-se por correio, muito mais em espanhol do que em guarani. Em uma de suas cartas, a mãe informa à jovem Iara de que está grávida.
Atilio propõe à garota uma viagem ao longo do rio em direção à capital argentina, não apenas por preocupação, mas porque sabe que o neto por nascer é um menino. O avô parte em uma jornada para trazer a filha ao Paraguai, e assim o seu tão sonhado neto venha ao mundo em terras guaranis. Sua coragem para a jornada de mais de 1000 km é fruto de um desejo maior, transmitir cultura guarani para um descendente homem. A questão de gênero chega à superfície do Rio Paraná pelos olhos de Iara, sabedora de que o avô nunca lhe dará o devido reconhecimento: primeiro por ser mulher e, segundo, por ter hábitos para além da cultura guarani, para a qual ela é um tanto reticente.
Os guaranis paraguaios enfrentaram brutal discriminação ao longo da história do país, estigmatizados como “rurais”, “pobres” e “sem instrução”. Os sistemas político – e também socioeconômico – deram prioridade ao espanhol como a língua do Estado, da educação e do poder. O idioma nativo foi banido do sistema educacional durante grande parte da longa ditadura do general Alfredo Stroessner (1954-89), quando os paraguaios experimentaram não só o ápice da violência física, mas também da violência cultural (notadamente linguística). O filme Guaraní, assim como diversas tramas da sociedade paraguaia, trata das diferenças geracionais e de classe, com espelhos e sombras das culturas guarani e argentina.
Depois de muitos anos de resistência e luta, em 1992, um marco foi alcançado na história do idioma, reconhecido pelo governo paraguaio como um dos dois idiomas oficiais da nação. Importantes avanços pós-ditadura incluíram uma lei de 2012 que comprometeu o Estado a colocar o espanhol e o guarani em pé de igualdade institucional. Hoje é a única língua indígena da América do Sul a ter alcançado esse status. Ser guarani é ser valente, elemento central da identidade nacional no Paraguai.
A odisseia da dupla avô e neta traz momentos agradáveis e dolorosos, com conversas e silêncios que estimulam reflexão através de olhares. O espectador é parte da viagem, que conta com diversas paradas, personagens, ideias e lendas que alimentam e destroem sonhos. Nosso maior laço com as pessoas talvez não seja o familiar, mas o indenitário. O grande conflito do avô paraguaio é se afastar do orgulho de sua terra, de seus costumes. Já, a neta quer ser a menina que realmente é, se comportar como tal, falar como tal, no idioma que bem desejar e sem julgamentos. O propósito da viagem para Atílio é plantar mais uma raiz guarani em solo paraguaio, com a vinda de seu primeiro neto. O objetivo da viagem para Iara é conseguir se desapegar de modo de vida e cultura que nem sempre traduzem quem ela é.
No filme, as locações, a fotografia, as rotas e caminhos do Paraguai, assim como o rio que abraça o país, fazem florescer a cada margem a cultura e a língua guarani, falada na maior parte do roteiro. A obra é um poema indenitário, sem sentimentalismo, que exige cuidado ao ser simplificado em um único tema. O longa viaja pelas correntes do Rio Paraná, ora suave ora contundente, trazendo em suas águas o reflexo da família paraguaia e sua projeção de alma guarani. O filme é uma chance de transcender generalizações e entender que diferentes culturas podem ser expostas e sobrepostas, mesmo em suas contradições.
É muito possível que você nunca tenha visto um filme paraguaio. É realmente uma pena que um filme paraguaio nunca tenha visto você. Guaraní é uma viagem contra qualquer estereótipo, uma chance de conhecer nosso vizinho em seus diversos entendimentos e ideais. Um road movie que se estende do local ao global, não só pelas distâncias físicas, mas pelas distâncias políticas de nossa identidade. O Rio Paraná, assim como Atilio e Iara, é protagonista. É ele o turvo caminho que une dois mundos, opostos e dispostos a entender o outro. A produção paraguaia ensina a respeitar as motivações de cada um, compartilhando emoções mais em silêncio do que em palavras, na complexa e prazerosa jornada, que é entender o significa ser guarani.
*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).
Fonte: Cultura do Resto do Mundo
Publicação Ambiente Legal, 29/12/2020
Edição: Ana A. Alencar
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