Por Shi En Kim
- Uma combinação de clima chuvoso causado pelo El Niño com mudanças climáticas induzidas pelo ser humano provocou a pior enchente da história do Rio Grande do Sul no começo de 2024.
A enchente afetou 90% do estado e desabrigou mais de meio milhão de pessoas.
- O mau uso do solo também contribuiu para a vulnerabilidade da região às enchentes, uma vez que as práticas agrícolas adotadas nas terras altas reduzem a absorção de água pelo solo, aumentando o
SANTA MARIA, Rio Grande do Sul — Na noite de 29 de abril, Jean Paolo Gomes Minella, hidrologista da Universidade Federal de Santa Maria, no sul do país, dirigiu-se à estação de monitoramento fluvial localizada a uma hora de carro de sua casa. Como estava chovendo, o Rio Guarda-Mor estava recebendo água de toda a bacia hidrográfica, e ele queria estar lá para medir os sedimentos que chegavam ao rio.
“Vivemos como sapos”, diz Minella, referindo-se ao fato de sua equipe entrar em ação quando há previsão de chuva – na maior parte do tempo. Dessa vez, contudo, a equipe deixara de registrar os últimos três dias de chuvas, então ele estava ansioso para não perder esta oportunidade para coletar dados.
Mal imaginava ele que as chuvas que estava perseguindo deixariam um rastro de destruição sem precedentes, e um trauma indelével. Depois de mais ou menos uma hora coletando dados, à meia-noite, as águas da enchente chegaram. Com água à altura do peito, Minella percebeu que poderia ser a primeira pessoa no mundo a coletar os dados do maior desastre ambiental do Rio Grande do Sul.
Por todo o estado, as chuvas saturaram o solo. Riachos, afluentes e rios transbordaram. Depois de três dias, em 2 de maio, todo o excesso hidrológico se deslocaria para a capital Porto Alegre, ao leste, causando a pior enchente que já atingiu o estado.
Sete meses depois do desastre, moradores de todo o estado ainda estão lidando com as consequências. Novas pesquisas, como a de Minella, aos poucos vão compreendendo os impactos devastadores da enchente e indicando como seguir adiante, enquanto outros cientistas trabalham para recuperar os ecossistemas. Ao mesmo tempo, agricultores da região estão tendo de repensar suas práticas para prevenir catástrofes semelhantes no futuro.
Causas dos eventos extremos
Entre 29 de abril e 2 de maio, vários municípios de todo o Estado registraram mais de 300 milímetros de chuva: o equivalente a dois meses de precipitação em apenas quatro dias. Nas áreas centrais do estado, as águas subiram e desceram em questão de horas. Mais ao leste, o sistema de proteção a enchentes de Porto Alegre falhou, então a cidade permaneceu inundada por três semanas. De acordo com fontes da Secretaria Extraordinária para a Reconstrução do Rio Grande do Sul, agência do governo criada em junho para ajudar na recuperação, o desastre causou 183 mortes, desalojou quase 600 mil pessoas e afetou 90% do estado.
Vários relatórios indicaram que a combinação de chuvas atípicas provocadas pelo El Niño com mudanças climáticas foi provavelmente o principal fator responsável pelas enchentes. Uma análise do World Weather Attribution estimou que as alterações no clima induzidas pelo ser humano mais do que dobraram as chances de ocorrer um evento como este, antes considerado único a cada século, e aumentaram a intensidade das chuvas em 6% a 9% além do esperado. A última enchente histórica que atingiu o estado ocorreu em 1941.
As mudanças climáticas também estão aumentando a frequência das enchentes, diz Fernando Mainardi Fan, hidrologista da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, observando que a enchente de 2024 veio logo na sequência de uma enchente menor no ano passado. “O que aconteceu condiz perfeitamente com as projeções das mudanças climáticas. E vai acontecer novamente.”
O mau uso da terra também agravou os impactos da enchente, dizem especialistas. Entre 1985 e 2022, o avanço da agricultura reduziu a área florestal do estado, bem como as áreas nativas de Pampa em cerca de um terço. Nos últimos anos, um governo simpático ao agronegócio enfraqueceu leis ambientais destinadas a proteger a vegetação nativa nas áreas agrícolas, tornando os ecossistemas mais vulneráveis a impactos ambientais.
Analisando os dados que coletou durante a enchente, Minella constatou que o escoamento superficial excessivo também contribuiu com a gravidade do evento. A agricultura intensiva praticada nas terras altas na bacia do Rio Jacuí, no centro do Rio Grande do Sul, compactou os solos, reduzindo sua capacidade de absorver a água, e removeu a vegetação natural que reduz o escoamento superficial.
Práticas de cultivo nas áreas altas “geram um escoamento superficial que impacta as áreas baixas da bacia”, diz Minella. “É uma mensagem importante e muito difícil”, que talvez os agricultores não queiram ouvir.
Na primeira noite de enchente, as medições de Minella mostraram que a velocidade das correntezas estava muitas ordens de grandeza acima da referência, enquanto a turbidez do rio indicava que havia muito sedimento na água. A força do escoamento superficial alargou as margens do rio e encheu a paisagem de árvores caídas e rochas do tamanho de carros.
Recuperação a curto prazo
Dias depois da enchente, o governo federal liberou o pagamento do auxílio emergencial e mobilizou doações de itens essenciais e alimentos para as famílias afetadas. O governo destinou R$ 51 bilhões para dar início à reconstrução. Em resposta por e-mail à Mongabay, Fernanda Costa Corezola, diretora da Secretaria de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, informou que a assistência para a recuperação da agricultura inclui o perdão de dívidas dos agricultores e novas linhas de crédito para a próxima safra. Mas especialistas dizem que isso não é suficiente.
Muitas famílias dizem que não receberam nenhuma ajuda. Norma Isabel Franke, produtora rural da parte central do estado, usou todas as suas economias para recomeçar depois que a lama causou danos em sua casa e destruiu sua lavoura. Mas ela diz aceitar o fato de que o governo, sem dinheiro, não pode fazer muito, porque a quantidade de famílias afetadas foi muito grande.
Em todo o estado, agricultores como ela estão com dificuldade para se recuperar. De acordo com a Emater (Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural), mais de 48 mil produtores e quase 3,2 milhões de hectares de terra – uma área maior que a Bélgica – foram afetados pela enchente. A Confederação Nacional de Municípios estima que o setor agropecuário do Rio Grande do Sul perdeu R$ 600 milhões.
A destruição é evidente ao percorrer a colcha de retalhos de propriedades rurais do vale. Nos terrenos mais íngremes perto das nascentes, o solo superficial foi levado com as águas. Nas terras mais baixas, trechos inteiros estão encobertos por metros de terra.
Nem todas as propriedades rurais podem ser recuperadas. Ricardo Bergamo Schenato, cientista do solo da Universidade Federal de Santa Maria, está visitando as propriedades para avaliar o impacto da enchente. Recuperar a estrutura e a fertilidade do solo é o primeiro passo para a restauração dos terrenos desnudos. Embora os produtores estejam buscando respostas rápidas como fertilizantes convencionais, estes não são capazes de melhorar a qualidade do solo, diz Schenato. Plantar espécies de cobertura que fixam nitrogênio, como leguminosas e painço, que têm ciclo de vida curto e logo se transformam em adubo verde, pode ajudar. “A matéria orgânica é essencial no processo de recuperação do solo”, explica Schenato.
Mesmo com essa cobertura, não há garantia de que o solo recupere completamente sua produtividade. “Teremos o mesmo potencial de produção nessas áreas? Esta é uma questão para a qual não temos resposta”, admite Schenato. “Temos certeza de que em algumas áreas não conseguiremos alcançar a mesma produtividade nos próximos cinco a dez anos. E em outras, não será mais possível cultivar nada.”
Curando a terra
Vários pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria estão trabalhando para restaurar a biodiversidade nativa em áreas suscetíveis a desastres.
O engenheiro florestal Fabrício Jaques Sutili lidera os esforços para recuperar as margens dos rios, começando por áreas próximas do campus da universidade e da região de Quarta Colônia, na parte central do estado. Sua equipe utiliza “material de construção” vivo, uma mistura de plantas nativas cuja rede de raízes fortalece o solo contra a erosão. A vegetação natural de mata ciliar ao longo das margens dos rios promove o armazenamento subterrâneo da água e ajuda a diminuir a velocidade da correnteza. Muitas das sementes dessas espécies não estão disponíveis comercialmente, de modo que os pesquisadores precisam coletá-las na natureza e reproduzi-las em estufas.
A cientista florestal Ana Paula Rovedder coleta sementes nativas para restauração ecológica, algumas delas com valor comercial, e trabalha com Schenato para convencer os fazendeiros a iniciarem uma rede de produção e fornecimento de sementes. Esta pode ser uma solução em que todos ganham: os produtores de sementes lucram com as vendas enquanto regeneram a terra.
“A restauração da vegetação nativa é imprescindível”, diz Valério Pillar, ecólogo especialista em vegetação na Universidade Federal do Rio Gande do sul, que não está envolvido nos projetos. Embora a vegetação nativa não seja capaz de evitar totalmente as enchentes, “ela pode reduzir os danos”, explica. Enchentes de alguns centímetros a menos já fariam diferença, deixando alguns bairros secos ou evitando sobrecarga nos sistemas de proteção contra enchentes, como os existentes em Porto Alegre.
Contudo, os resultados das soluções agroflorestais podem demorar a chegar. “O impacto desse evento extremo foi tão grande que será difícil reconstruirmos a capacidade dessas florestas nativas”, diz Rovedder. “Vai levar tempo.”
Renovar as práticas agrícolas pode ajudar na resiliência às enchentes. As curvas de nível ou terraceamento, técnica em que o plantio é feito em leiras que acompanham horizontalmente os níveis dos terrenos íngremes, funcionam como lombadas hidrológicas, reduzindo o escoamento superficial da água. De acordo com a pesquisa da equipe de Minella, se as propriedades rurais nas áreas altas adotarem esse sistema, o escoamento superficial máximo pode ser reduzido em até um terço.
Minella defende que o governo incentive a construção de curvas de nível, uma vez que elas fornecem um serviço ambiental, inclusive para comunidades urbanas a quilômetros de distância. “Este é o ponto: os produtores receberiam dinheiro para reduzir as enchentes”, diz ele. No momento, ele procura parceiros no governo para o projeto.
Contudo, convencer os produtores é outra história, uma vez que os donos de terras altas, que inadvertidamente exacerbaram a enchente, foram os menos afetados por ela.
Mudar a topografia pode atrapalhar a produção das fazendas, uma vez que a maior parte dos equipamentos é feita para superfícies planas e lisas. “A quantidade de manobras que é preciso fazer requer muito planejamento”, diz Alice Prates Bisso Dambroz, estudante de pós-graduação de Minella que vem de uma família de produtores de soja. É difícil cuidar das plantações: os fazendeiros operam com calendários apertados para acompanhar o ritmo das estações e buscam o máximo de eficiência para contornar os caprichos do clima. Qualquer inconveninente a mais é custoso. No fim das contas, os produtores estão mais preocupados em lucrar. “É este o tipo de mentalidade: ‘Preciso fazer a curva de nível agora?’”, diz Dambroz.
De acordo com declarações do governo, entidades como o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) estão há bastante tempo incentivando os produtores a adotarem práticas agrícolas sustentáveis. O impacto dessas políticas públicas, contudo, não está claro; muitas das estratégias são baseadas em assistência tecnológica, requerem adesão voluntária dos produtores e não fornecem incentivos diretos à participação.
Quer os produtores saibam ou não, estas difíceis escolhas pesam sobre aqueles que vivem nas áreas mais baixas, que por sua vez também têm seus dilemas. A produtora de laticínios Silvana Vieira Venturini perdeu metade de suas pastagens à beira do rio com a enchente e continua trabalhando por pura “garra brasileira”, diz. Ela não recebeu auxílio financeiro do governo, e não espera recebê-lo. Ela espera que o governo faça uma reengenharia completa do rio – reduzindo a largura do canal ou aprofundando o leito – para que ele não encha novamente.
Contudo, Minella diz que isso seria muito custoso e traria consequências imprevisíveis para as populações expostas a jusante. “É impossível controlar o rio”, diz ele. A solução mais direta, diz ele, é sair das planícies alagáveis, para longe de qualquer risco de inundação.
A enchente no Rio Grande do Sul foi o sinal de alerta mais recente para tratar da urgência das mudanças climática no cotidiano das ações e políticas públicas. Foi um aviso para o desafio mais amplo de “reconhecer as mudanças climáticas e seus impactos sobre a vida a partir de agora”, diz Corezola, da secretaria de reconstrução.
Nem sempre o governo brasileiro agiu de forma a proteger o clima, e agora o governo atual enfrenta um Congresso hostil à aprovação de políticas ambientais. Mas está se tornando cada vez mais difícil e custoso ignorar catástrofes ambientais como a enchente de maio. “É preciso mudar a cultura e adotar um comportamento adaptado às mudanças climáticas”, afirma Corezola. “Não podemos mais repetir o que aconteceu no Rio Grande do Sul.”
Esta matéria contou com o apoio parcial do Pulitzer Center.
Fonte: Mongabay Brasil
Publicação Ambiente Legal, 28/12/2024
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.