Placas a três metros de altura ajudam a preservar vegetação do semiárido, ajudando o cultivo de alimentos e outras iniciativas sustentáveis
Por Adriana Amâncio*
A produção de energia solar no Brasil avança em marcha acelerada. A Associação Brasileira de Energia Solar e Fotovoltaica (Absolar) prevê para 2023 crescimento de 10 GW, elevando a produção para mais de 34 GW. A matriz energética, ambientalmente mais viável do que a hídrica ou a nuclear, apresenta, nos moldes atuais, dilemas ambientais, sociais e econômicos que o desalinham dos valores estabelecidos pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
“O primeiro dos problemas é o desmatamento da Caatinga. Na sequência, para controlar as ervas espontâneas, utiliza-se herbicida, um dos insumos mais prejudiciais que existem. Tudo que termina em “cida” quer dizer morte”, atesta o professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Práticas Agroecolóicas (Neppas), Unidade Serra Talhada, Genival Barros. “Então, aplicar o veneno implica em matar toda a biota abaixo das placas. Por último, a concentração de renda, ou seja, esses sítios são controlados por grandes empresários, que desmatam tudo e só eles ganham, impedindo outras comunidades de se beneficiar”.
O ponto em questão não é combater a energia solar, mas sim, seguir rota mais sustentável. Tecnologias baseadas na remoção da vegetação do semiárido contribuem diretamente para o avanço da desertificação, um dos efeitos das mudanças climáticas que mais castiga a região. Hoje, de acordo com o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), a área em processo de desertificação tem quase o tamanho da Inglaterra. “O solo sem matéria orgânica não tem como acumular água e sem água não tem vida”, explica Genival.
A escassez hídrica é outro problema da região, que hoje, segundo dados da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), abriga cerca de um milhão de pessoas sem acesso à água de consumo humano. Na região, tanto a água da chuva, armazenada em cisternas e outros reservatórios, quanto a do subsolo são essenciais para a sobrevivência. “Nossa intenção não é combater a energia solar, mas, sim, apresentar rota de produção mais sustentável, com o sistema agrofotovoltaico”, explica Genival.
Na aldeia Pankará, em Itacurubá, desde 2020, um miniparque agrofotovoltaico de 400m² movimenta o sistema de abastecimento de água da comunidade. O projeto, em fase de consolidação, possui calhas instaladas nas placas que permitem captar água da chuva que será armazenada em cisterna de 52 mil litros, destinada à produção de alimentos. Até o fim da sua implementação, o miniparque abrigará outras soluções ambientais, como uma composteira, que irá reaproveitar a casca de coco, resíduo extremamente poluente na região, e um sistema de aquaponia, que permite a combinação entre a criação de peixes com o cultivo de alface e ervas medicinais.
“Acabamos de estruturar área piloto, que no primeiro momento será de cultivo de melão orgânico, cultura muito expressiva dos pontos de vista nutricional e econômico. Vamos monitorar a performance embaixo da placa e fora da placa. Vamos comparar o ambiente aberto com o ambiente sombreado”, planeja o professor.
A energia produzida no parque agrofotovoltaico gera crédito junto à Companhia Energética Neoenergia, que gerencia o fornecimento de energia elétrica em Pernambuco. Em troca, a empresa fornece energia da rede pública para garantir o funcionamento do sistema de abastecimento de água da aldeia. No trecho da parte de baixo das placas, os indígenas estão cultivando alface e coentro, alimentos utilizados na merenda escolar.
A cacique da aldeia Pankará, Lucélia Leal, avalia que o sistema é viável, desde que pensado junto com as comunidades do entorno e sem desmatamento. “Foi fundamental porque garantiu a água para manter a comunidade viva, com o povo produzindo para seus quintais. Essas hortaliças estão ajudando muito na merenda” , avalia a cacique.
A área onde as placas foram implementadas estavam muito degradadas. Segundo o professor Genival, “a parte agricultável havia sido removida para servir à construção de estradas, ficando apenas a área compacta, de pedra”. Com a recuperação e o uso das placas, a fertilidade do solo deve renascer. As famílias da aldeia vivem essencialmente da pesca artesanal, quintais produtivos, trabalho na educação indígena, criação de ovinos, caprinos e galinha caipira e da renda de programas sociais. Com a conclusão do sistema, serão geradas outras possibilidades a partir da venda e do consumo de alimentos e insumos orgânicos.
O miniparque agrotofovoltaico deu os seus primeiros passos em 2017, durante o seminário “A nova conjuntura climática, perspectivas após o Acordo de Paris e o Governo Trump”, realizado pelo Centro Cultural Brasil Alemanha (CCBA), com a presença do climatologista Carlos Nobre. “Esse projeto ainda terá pela frente mais uns dois anos de experimentação. É importante que o governo analise a viabilidade desses projetos para ampliar em outras áreas. A produção de hidrogênio verde deve gerar uma demanda maior de energia solar e é importante que esses empreendimentos sejam sustentáveis”, afirma o diretor do Centro Cultural Brasil Alemanha (CCBA), Christoph Osterdorf.
Por ter incidência solar forte, o semiárido, formado pelos nove estados do Nordeste e a região Norte de Minas Gerais, tem sido visto como a menina dos olhos do setor, que vislumbra atender ao mercado das commodities do futuro, a exemplo do hidrogênio verde. Considerado o combustível do futuro, o hidrogênio produzido com energia renovável tem potenciais grupos empresariais compradores e o Porto de Pecém, no Ceará, como canal de exportação.
“Desistir da energia solar, jamais! Mas estamos estudando essa forma para dizer ‘pode levantar as placas, que você permanece habilitando o cultivo das áreas’. Porque o modelo que estão fazendo com 500 hectares de uma única usina é muito complicado. Vamos publicar dados para referendar esse modelo com as placas altas, plantando embaixo, coletando a água. Isso já deveria estar no planejamento desses empreendimentos em um país como o Brasil que deseja capitanear a agenda ambiental”, conclui o pesquisador Genival Barros.
O povo Pankará, assim como toda a população de Itacuruba, nos anos 1980, foi removido da sua cidade original, inundada para dar lugar à construção Barragem de Itaparica, e passou a viver na área urbana. Segundo Lucélia, foram anos difíceis porque os indígenas não se adaptaram. Somente há duas décadas, as quase 300 famílias retornaram ao território de origem e estão lutando pela certificação na Funai). “A catequização levou a nossa língua original, mas ainda temos Pakará, palavra que dá nome ao nosso território. Ará vem de ayo, fibra da Caatinga bastante resistente usada para fazer um bornar, uma bolsa. Essa resistência representa quem somos, buscando alternativas para viver, mantendo o nosso respeito á natureza”, ensina Lucélia.
*Adriana Amâncio – Jornalista, nordestina do Recife. Tem experiência na cobertura de pautas investigativas, nas áreas de Direitos Humanos, segurança alimentar, meio ambiente e gênero. Foi assessora de comunicação de parlamentares na Câmara Municipal do Recife e na Assembleia Legislativa de Pernambuco. Foi assessora da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e, como freelancer, contribuiu com veículos como O Joio e O Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo e The Brazilian Report.
Fonte: Projeto Colabora
Publicação Ambiente Legal, 05/02/2023
Edição: Ana Alves Alencar
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