Por Gaudêncio Torquato*
No final deste texto, o leitor poderá responder à pergunta-título acima. Abro a reflexão com o escritor argentino, José Ingenieros, discorrendo sobre a visão de Pátria, em “O Homem Medíocre”:
Os países são expressões geográficas, e os Estados formas de equilíbrio político. Uma Pátria é muito mais do que isso, e é outra coisa: sincronismo de espíritos e de corações, têmpera uniforme para o esforço, e homogênea disposição para o sacrifício, simultaneamente na aspiração à grandeza, no pudor da humilhação e no desejo da glória… é preciso que haja sonhos comuns, anelos coletivos de grandes coisas…Pátria está implícita da solidariedade sentimental de um povo, não na confabulação dos politiqueiros que medram à sua sombra.
Somos um país tomado por dúvidas. Duas bandas separam o território, uma acusando a outra, uma caminhando no canto esquerdo do arco ideológico, tentando vestir o manto do progresso, outra ostentando os valores do conservadorismo, com ênfase na defesa da família. Ambas destilando ódio e desfechando ataques recíprocos sobre as posições polarizadas.
O tom ácido da expressão de alguns protagonistas da política, que bebem água na fonte da “confabulação dos politiqueiros”, acirra a animosidade das bandas, fazendo emergir a ideia maluca de separatismo em um país que tem elevado ao alto a bandeira da unidade nacional, sob a manutenção de uma mesma língua e preservação dos eixos de uma democracia, mesmo incipiente.
Desenvolve-se no espaço da instituição política um intrincado jogo de poder, que procura repartir cartas com um complexo partidário de cerca de 25 siglas, entidades que nunca chegam ao consenso sobre questões centrais. E esse fenômeno ocorre com a participação de um considerável número de congressistas, 513 na Câmara e 81 no Senado, inseridos numa equação que carrega uma dissonância sobre sua efetiva representatividade. Um Estado pequeno, como Roraima, com 8 parlamentares e um eleitorado de menos de 500 mil eleitores, tem os mesmos direitos que um Estado como SP, com seu eleitorado de 36 milhões de eleitores e uma conta de 70 deputados, com defasagem de mais de cerca de 30 parlamentares, debitada ao princípio federativo.
O Poder Judiciário até parece um juizado de pequenas causas, quando adentra o terreno da criminalidade e passa a exercer funções de investigação. O Ministério Público, que deveria ser a muralha de defesa da sociedade, politiza sua ação, escancarando a parcialidade de posições adotadas. Briga-se ali pelo poder de mando.
O Poder Executivo quer se transformar no poder do “faz tudo”. Que pode se intrometer na seara de outros poderes, senão diretamente, mas indiretamente, usando o “mando imperial” para nomear juízes para as cortes superiores e até para a Suprema Corte, sob o desígnio do comandante da tropa governista. Um descalabro.
O ambientalismo ganha lugar de destaque no discurso. Uma Cúpula que abriga os países amazônicos mostrou a divisão de opiniões. O Brasil de Lula quis aparecer com as vestes de preservação do bioma, mas deixou aberta a porta para exploração de petróleo na região, contrariando outros países. Fugiu, ainda, de uma meta que já esteve na ponta de seu discurso: o desmatamento zero até 2029.
Apesar do combate ao garimpo em terras indígenas, a ilegalidade e a ação de garimpeiros continuam a devastar a reserva dos yanomamis.
Para todos os lados que olhemos, vê-se uma disfunção, um ato ilícito, mortes de soldados e bandidos, discussão se foram assassinados por fulano ou sicrano, rapinagem e tomadas de praças públicas por drogados, como é o caso da Cracolândia, em São Paulo, capital.
A indagação é pertinente: estamos no meio do caos, no princípio da crise, no fim do túnel ou na rota dos horizontes de progresso? Ninguém sabe. Uns e outros divergem sobre essa interrogação. Cada qual quer expressar e garantir suas verdades. Porque o Brasil é um país de versões. Um país lúdico que ri da tragédia e se comove com a comédia. Comédia e tragédia, aqui, se fundem num amálgama que traduz falta de essencialidade e racionalidade.
O fato é que a improvisação, o gosto pela aventura e a alma criativa provocam um sentimento de estágio em uma cultura pré-civilizatória. E esse viés faz com que desprezemos o conceito de Pátria. Para boa parcela, o que importa é o bem material, dinheiro, levar vantagem em tudo.
Pátria, reafirme-se, é um conjunto de valores, reunindo amor ao espaço físico e espiritual, solidariedade, orgulho pelo país, civismo e atavismo. Onde estão as bandeiras brasileiras nas portas das casas? Quem conta histórias sobre os nossos antepassados?
Multidões ruminam desconfianças, afastam-se das instituições e de seus representantes, afogam-se em mágoas, perdem-se em ilusões.
O país está expandindo a velhice. Os aposentados crescem assustadoramente, carregando a angústia de a qualquer hora, deixarem de receber os proventos. Brasileiros de todos os rincões temem os impactos da reforma tributária, apesar da promessa de muitos parlamentares em garantir justiça na arrecadação dos tributos. Surpresas e medos se expandem.
Volto à pergunta: somos uma Pátria?
*Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político
Fonte: O autor
Publicação Ambiente Legal, 11/08/2023
Edição: Ana Alves Alencar
As publicações não expressam necessariamente a opinião dessa revista, mas servem para informação e reflexão.