Por Edna Uip
João não tinha paz. O sono levava-o a um mundo que seria melhor não visitar. Acordar era a realidade das horas nos ônibus, o trânsito caótico, a roupa de faxineiro, o olhar enviesado dos moradores. Suas tarefas eram fundamentais para aquele condomínio, mas os proprietários viam em João um joão ninguém. As adolescentes eram incentivadas a se manterem longe. Por ser jovem e bonito os pais achavam que o rapaz podia estuprá-las ou, pior, seduzi-las.
Nos sonhos João não era João. Virava na cama, jogava os lençóis, retesava os músculos, gargalhava na escuridão. Era poderoso, líder de muitos, modificava a sua vida. Usava sua força descomunal para libertar da servidão e da tirania. A manhã chegava e a realidade também. Do que adiantavam os sonhos? Traziam a angústia de se sentir incapaz.
A vida seguia e os sonhos tornaram-se recorrentes. A angústia tomava seus dias, a dificuldade de respirar levava o ar apenas até a garganta, as dores nas pernas refletiam imobilidade.
O tempo passou. João sentia-se incapaz de realizar o que estava nos sonhos. A ansiedade tomou conta da angústia. João suava até molhar o uniforme e seu coração disparava por nada.
João sentia o sangue ferver no coração e projetar-se por seus olhos. O ser forte saiu dos sonhos, invadiu seu ideário e projetou-se em suas atitudes.
João, nos raros momentos de consciência, respirava muitas vezes tentando manter a calma. A neurose recente achatava sua memória, esquecia-se de quem era. Ouvia gritos ordenando que tomasse as armas e cumprisse sua missão.
E foi num dia qualquer que João cumpriu seu destino. Armou-se de um martelo e rachou a cabeça do porteiro. Depois a do zelador e a do síndico. Logo que o tiro varou sua cabeça gargalhou como fazia no sonho.
Edna Uip, advogada formada pela USP e empresária, está habituada a ver o mundo pelos olhos da razão, sem no entanto, deixar de cultivar atenta observação do comportamento humano e suas emoções. Autora do romance Espelhos Quebrados (Sá Editora, 2010), é escritora, ensaísta e poeta. Colaboradora do Portal Ambiente Legal, publicará regularmente na Seção Ambiente Livre.
Não conhecia esse lado romântico e poético da Edna. Parabéns, espero lê-la mais regularmente.