A explosão racial ocorrida em Charlottesville, na Virgínia, é simbiótica.
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Numa mensagem publicada na conta do laboratório farmacêutico Merck, na rede social Twitter. O CEO da indústria, Kenneth Frazier, no cargo de Conselheiro da Casa Branca desde 2011 e nomeado por Donald Trump para o seu Conselho de Exportações, diz considerar ser sua pessoal “responsabilidade assumir uma posição contra a intolerância e o extremismo”.
“Os líderes americanos devem honrar os nossos valores fundamentais, rejeitando claramente manifestações de ódio, intolerância e qualquer reivindicação de supremacia que negam o ideal americano de que todos os homens são criados como iguais”, lê-se na mensagem de Frazier, que se demitiu do cargo de conselheiro do presidente. “A força do nosso país”, continua o comunicado, “reside na sua diversidade e no contributo dado por homens e mulheres de diferentes credos, raças, orientações sexuais e crenças políticas”.
A declaração de Frazier diz respeito a um acontecimento grave e vergonhoso ocorrido na cidade de Charlottesville, no estado da Virginia, que resultou na morte de uma mulher e ferimentos em outras 19 pessoas.
O Governador da Virginia declarou estado de emergência após os confrontos.
O Presidente Donald Trump condenou os incidentes, mas foi criticado por apontar o dado às “várias partes” envolvidas nos confrontos, em vez de assumir uma posição clara contra os grupos da extrema-direita.
David Duke, ex-líder do Ku Klux Klan, foi um dos responsáveis por convocar a marcha, organizada como forma de protesto contra a decisão deo conselho de Charlottesville, de remover a estátua do general Robert E. Lee de um parque no centro da cidade.
O general, herói militar e comandante do exército nomeado por Abraham Lincoln, abdicou do cargo e liderou os confederados contra as forças da União na sangrenta guerra da Secessão.
As razões de Robert E. Lee foram públicas e conhecidas, e na verdade não guardavam identidade com o escravagismo. Estavam ligadas ao respeito que ele tinha ao seu estado natal, a Virgínia, cuja invasão por um exército ele não admitia. Era a velha convicção da união americana derivar o respeito à autonomia absoluta dos estados que a compunham.
No entanto, por conta da sanha revisionista “politicamente correta”, Lee agora é considerado pelos ativistas um “símbolo da escravatura e do racismo”.
O episódio revela não apenas um ativismo imbecil, como profundo desconhecimento da própria história.
Porém, a ação radical, de parte a parte, reabriu a ferida do rancor social e estimulou o ressurgimento do nazismo em solo norte-americano.
Seria isso o pretendido pelos politicamente corretos? Seria essa a deixa para os supremacistas saírem do armário da história?
Simbiose Sinistra
A manifestação protonazista e o conflito que se seguiu refletem não apenas o pior lado do ser humano mas uma coreografia sinistra que alterna, no tempo, a reação fascistóide a a postura esquerdizóide. Uma diástole imbecil após a sístole idiota do politicamente correto. Algo como “white lives matter after black lives matter”…
Essa simbiose entre opostos também expõe a perda da memória nacional em relação ao processo histórico de conciliação, aceitação e integração social da diversidade etnica, que constitui parte integrante da identidade americana.
Esse processo custou o sangue e a vida de milhões de americanos, seja na guerra civil ocorrida no século XIX, seja nas duas guerras mundiais e conflitos raciais ocorridos no século XX.
A perda de memória constitui a causa da vergonhosa da ação arbitrária dos revisionistas politicamente corretos de Charlottesville e a manifestação dos bobalhões celerados protonazistas, que serviram de buchas de canhão para os conflitos que resultaram em violência e morte na antes pacata cidade da Virgínia.
A chaga da segregação racial
A perda de memória foi ressaltada pelo Presidente Donald Trump, quando reagiu à ocorrência, ao declarar que o fato lamentável nos remetia a todos a um período que se julgava ultrapassado.
De fato, a segregação racial constitui chaga desonrosa na história americana. Ela foi o mote para a Guerra entre a União e os Estados Confederados, surgida com a revogação dos Black Codes (1800-1866), que restringiam as liberdades e direitos civis dos afro-americanos.
A Guerra da Secessão, se por um lado pôs fim ao regime de escravidão no território americano, motivou o surgimento de movimentos racistas de triste memória, atuantes nos estados sulistas após o conflito. Ela corroeu a alma americana até às vésperas da segunda guerra mundial.
Em 1867, após a Guerra da Secessão, ao custo de mais de um milhão de mortos, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Reconstrução para proteger os direitos a voto e garantir que os estados da União tivessem suas próprias constituições, desde que não ferissem a constituição nacional.
Em seguida, em 9 de julho de 1868, o Congresso aprovou a 14ª Emenda à Constituição, que garantia e protegia a igualdade dos cidadãos perante a lei. Dois anos depois, a 3 de fevereiro, a 15ª Emenda é ratificada para garantir o sufrágio universal e impedir a discriminação baseada em raça ou cor como forma de impedir o exercício deste direito.
A presença de tropas federais no sul garantiu que estas leis fossem implementadas, incluso no Estado do General Robert E. Lee, a Virgínia.
A Lei da Reconstrução formalizou a supremacia da lei federal sobre as estaduais, garantindo direitos iguais para todos.
Porém, a reação nos estados sulistas não demorou a surgir por meio de normas que regulavam matérias específicas, de ordem comportamental e comunitária,
Essas normas eram chamadas de “leis de Jim Crow” (Jim Crow laws).
O nome guarda referência a uma música de sucesso no século XIX, cantada por um artista que pintava o rosto de preto, satirizando a figura dos afrodescendentes.
Assim, mesmo sob a égide da Lei da Reconstrução e duas Emendas Constitucionais, pulularam normas locais e estaduais, nos Estados do sul dos Estados Unidos, segregando afro-descendentes, asiáticos e outros grupos étnicos.
Algumas leis mais importantes exigiam que as escolas públicas e a maioria dos locais públicos (incluindo trens e ônibus) tivessem instalações separadas para brancos e negros.
O legado da Segunda Guerra Mundial
A segregação racial foi tolerada culturalmente por muito tempo nos Estados Unidos, até que a política de neutralidade pregada pelos supremacistas brancos americanos fosse reduzida a escombros com o ataque traiçoeiro dos Japoneses à base de Pearl Harbor seguida da declaração de guerra dos países do Eixo contra os americanos, em 1941.
A segunda grande guerra pôs o povo norte-americano face a face com a banalidade do mal protagonizada pelo nazifascismo.
O espírito da liberdade dos Estados Unidos pairou sobre a consciência da Nação, revelando que o ódio racial, elevado à categoria de política de estado, não tinha limites morais, resultava na negação do senso de humanidade.
Os americanos deram o sangue para manter vivos os valores democráticos, republicanos, cristãos e ocidentais, e aprenderam que este patrimônio constituia a razão de seu patriotismo, jamais o ódio racial.
A partir daí, a segregação passou a ser duramente combatida no próprio solo americano, pela própria sociedade organizada.
Por decisões históricas da Suprema Corte, as normas racistas foram sendo uma a uma abolidas, com destaque para o julgamento do caso Brown v. Board of Education – de 1954, que afirmou que a segregação racial em escolas públicas era inconstitucional.
A articulação da ação do Estado com os movimentos por direitos civis nas décadas de 1950 e 60 foi decisiva. Manifestações gigantescas obrigaram a sociedade a encarar o problema da segregação e a discutir se ela ainda era viável.
O Congresso, então, aprovou a Lei dos Direitos Civis ( Civil Rights Act ), em 1964, revogando todas as normas “Jim Crow” que porventura ainda estivessem em vigor.
Após, o Congresso também aprovou a Lei do direito ao voto (1967), que garantiram direitos iguais sem discriminação baseada em raça, encerrando assim a discriminação institucionalizada e a possibilidade de qualquer ação legal em favor da segregação em solo americano.
O período foi também sangrento. Custou a morte do presidente Jonh Kennedy, do Pastor Martin Luther King, do líder militante Malcon X, do Senador Robert Kennedy e, também, o ferimento que tornou paraplégico o Governador George Wallace, afora centenas de mortos em atentados, sequestros e conflitos de rua em vários estados.
Nos anos 80, quando os movimentos sociais enfrentaram o governo Reagan e organizaram a gigantesca manifestação em prol da inclusão das vítimas do HIV no serviço social de previdência e saúde, o componente antidiscriminação ampliou consideravelmente o seu espectro.
A praga do “Politicamente Correto”
No entanto, a partir dos anos 90, em especial na administração Clinton, o que parecia ser uma marcha firme, gradual, fulcrada no convencimento e na conscientização, sob a égide do Estado, alterou de ritmo, como que pretendendo “queimar etapas”, de forma que a própria Administração Federal passou a patrocinar uma espécie de enfrentamento, tutelando a conflituosidade intrínseca aos interesses em causa, para pender a balança em favor do que se deveria entender por “politicamente correto”.
Tratou-se de uma guinada “esquerdista”, patrocinada por seguimentos oriundos da academia, da intelectualidade engajada, adepta da chamada escola de Frankfurt. Com o beneplácito do Partido Democrata, esses quadros intentaram “virar a mesa”, desequilibrando um processo de conscientização que parecia estar sendo implementado com sucesso.
Dirigentes e lideranças políticas trazidos pela Administração Clinton, desenvolveram, então, o padrão de comportamento ideológico que denominaram “politicamente correto”, que nada mais era que a visão desconstitutiva de Herbert Marcuse, protagonizada nos anos 60 pelos movimentos universitários da contracultura.
Marcuse, ao desenvolver seu ensaio sobre intolerância repressiva, argumentava que por haver tolerância a diferentes crenças na democracia ocidental, “não havia ação”, pois cada crença seria, então, igualmente importante.
Marcuse era marxista, entendia que a tolerância nada mais era que um “instrumento de dominação burguesa” e, portanto, devia ser combatida. Portanto, o “dilema” foi o mote para que se desenvolvesse a teoria das certezas absolutas no campo da “correção política” – doutrina urdida a partir da Universidade de Colúmbia, nos EUA, que acolhera os expoentes exilados da Escola de Frankfurt.
O raciocínio era (e ainda é) impressionante: se você possui uma noção tolerante do que é politicamente correto, então, em seguida, você pode ser intolerante com aqueles que não o são…
O raciocínio, portanto, não é libertário mas, sim, liberticida. Serviu como uma “licença”, conferida aos esquerdistas do Partido Democrata, para negar a liberdade de expressão àqueles com os quais eles não concordavam.
Esse gatilho cognitivo absolutamente distorcido, reforçou no marxismo cultural (e sua versão “soft” do politicamente correto) a tirania de pensamento que se julgava ultrapassada pela crítica à ditadura do proletariado leninista.
O mecanismo é de uma simplicidade psicopata: implementado o discurso público, preparadas as “massas” na nova “linguagem inclusiva”, seguem-se leis liberticidas – e então a ditadura se impõe esteticamente.
O transtorno cognitivo da “correção política”, originado no período Clinton, é disseminado como rastilho de pólvora, atingindo todos os países ocidentais.
Os conflitos não tardaram a surgir, do oriente ao ocidente. Nos países democráticos, a ação foi fulminante.
Os governos viram-se constrangidos a atender grupos de pressão que buscavam ver promulgadas “leis antidiscriminatórias”- travestidas do mais puro autoritarismo. Na verdade, o que se pretendia e até hoje se pretende é implementar leis que proíbam aos outros apontar e criticar aqueles que o politicamente correto admite como atores da transformação social (geralmente minorias – negros, imigrantes, homossexuais, etc).
O passo seguinte da ação politicamente correta desenvolveu-se nos EUA sob os governos republicano de Bush e democrata de Obama – ambos engajados no que se denomina “Nova Ordem Mundial”.
O “politicamente correto” progrediu para tentativas (algumas bem sucedidas), de legalização forçada das novas modalidades de arranjos “não consensuais”, como uniões afetivo-sexuais alternativas, legalização de drogas, aborto, abolicionismo criminal, tolerância para com esbulhos possessórios, invasão de privacidades, policiamento de costumes considerados “nocivos às saúde” – acompanhados de modelos subjetivos de criminalização de condutas discordantes, inclusive as conceituais.
A reação cultural e religiosa à nova “tirania do comportamento”, em grande parte do mundo, suscitou efeitos contrários aos pretendidos, vários deles podemos hoje aferir pelos fatos…
Nos EUA, essa reação ocorreu de forma democrática, na escolha de parcela significativa do povo americano por Donald Trump. Não por conta da “incorreção política” – como querem os idiotas ativistas, mas, talvez, pelo cidadão comum dos EUA pretender buscar uma saída voltando ao básico, o famoso “back to the basics”.
No entanto, após protagonizar as tristes manifestações de protesto e violência nos anos anteriores, com o chamado “black lives matters” (vidas negras importam), o “supremacismo” politicamente correto não se deixou intimidar pelo regime de Donald Trump e passou a pretender “revisar” a própria história americana.
Ativistas da doutrina da correção, inconformados com a derrota democrata, agora buscam o confronto. Para tanto, passaram a “escolher” o que deve permanecer na história e quem deve ser dela banido, como se ficção de George Orwell passasse a substituir a diversidade etnico-cultural da realidade histórica americana.
É nessa circunstância que se dá a hipócrita e imbecil “retirada” da estátua do General Robert E. Lee, da praça de Charlottesville.
Foi o pretexto ideal para os supremacistas brancos, que reagiram simbioticamente.
A reação, agora, “mudou de cor”, e explode na cidade de Charlottesville.
Todo racismo é antipatriótico
Essa onda reativa, por inércia, desenterrou um racismo ignorante que jazia no túmulo da história. Reforçou movimentos reacionários contra políticas afirmativas – que já vinham se organizando na última década, como o “white Pride” (orgulho branco).
O fenômeno é paradoxal, se observado na perspectiva histórica.
Tal qual ocorrera na Guerra de Secessão, e após a segunda guerra mundial, os movimentos racistas e racialistas de ambas as vertentes, sejam neonazistas ou “politicamente corretos”, esmeram-se hoje em esgarçar o sentimento de nação.
Na verdade, as reações racistas constituem-se em algo profundamente antipatriótico.
Se o termo “afrodescendente” já traz em si uma noção de pertencimento extra-nacional, o nazismo incentivado por cepas bastardas de origem irlandesa, normanda, escocesa ou mestiça – com grau de pureza ariana menor que o da população do Irã, chega a beirar o ridículo…
O que se vê nesse ressurgimento de “walking deads” racistas é uma profunda ignorância com relação à história recente dos Estados Unidos.
Um milhão de americanos pereceram na Guerra da Secessão e, no século posterior, meio milhão de soldados pereceram na luta contra o nazifascismo, durante a segunda guerra mundial.
O preconceito é algo que ainda persiste nos Estados Unidos, mesmo sem qualquer amparo em lei. Diferenças em qualidade de vida, oportunidades, educação, acesso a empregos de qualidade e saúde ainda são realidade. A forma como a polícia age, ocasionalmente, em comunidades habitadas por negros ainda gera comoção e raiva.
No entanto, não será com ações racialistas, profundamente antiamericanas, que pregam a desobediência civil e a vitimização da marginalidade, como “Black Lives Matter”, que essa questão se corrigirá.
Da mesma forma, ou pior, a imagem de idiotas “impuros”, carregando tochas à noite, como num arremedo germanófilo de KluKluxKlan, e celebrando o nazismo com saudações características, ofende profundamente os Estados Unidos da América, envergonha a bandeira americana, desonra os princípios temperados com o sangue dos bravos e desrespeitam a identidade da pátria de George Washington, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln, Ted Roosevelt, Franklin Roosevelt, Jonh Kennedy e Ronald Reagan.
Os celerados supremacistas brancos que deram as caras em Charlottesville, desonram a memória dos que sangraram para manter vivos os valores mais caros aos Estados Unidos da América. Sobretudo, firmam um desprezível e covarde atentado contra a história cívica e militar norte americana.
Devem todos, portanto, caso não venham a amargar a prisão, voltar aos bancos escolares: supremacistas, racialistas e ativistas da correção política absolutamente incorreta.
Todas as vidas importam… e a história também…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e das Comissões de Política Criminal e Infraestrutura da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB/SP. É Vice-Presidente da Associação Paulista de imprensa – API, Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Excelente artigo, ótimo teor de esclarecimento, muitos deveriam ler e se esclarecer sobre fatos populares