Por Danielle Denny
O desafio das cervejas artesanais
Cervejas artesanais tendem a custar mais e a dar mais trabalho para serem produzidas. Ainda assim, uma legião crescente de aficionados insiste, porque, para eles, fazer cerveja é um ato cultural.
Alan Sene, técnico cervejeiro responsável pela produção da nanocervejaria Urbana, identifica que práticas sustentáveis, normalmente, representam economia, mas custam mais para as cervejarias pequenas.
Segundo ele, o bagaço de malte pode ser vendido para fazendas para servir de ração, os resíduos têm de ser tratados para serem devolvidos ao meio ambiente no PH adequado, sem resíduos orgânicos, e a água pode ser economizada: “A Urbana, por exemplo, usa oito litros de água para cada litro de cerveja, o gasto com água em uma cervejaria é muito grande e só se consegue reduzir com muito investimento. Uma grande cervejaria usa apenas quatro litros de água por litro de cerveja, reaproveitam tudo”, afirmou.
Se os custos afugentam as boas práticas, a atividade proporciona oportunidades para desenvolver atitudes sustentáveis nesse mercado de cervejas caseiras e especiais.
Segundo Sene, os cervejeiros caseiros costumam, por exemplo, reutilizar os vasilhames vazios. Isto aconteceu durante o Beer Experience, evento de cervejas especiais, para cinco mil pessoas, realizado em São Paulo, quando os vasilhames foram coletados e repassados aos cervejeiros caseiros.
O mercado potencial para as cervejas chamadas “especiais” é grande. 98,6% da cerveja consumida no Brasil provém de quatro cervejarias (AmBev, Schincariol, Petrópolis e Heineken). O volume produzido por um número em torno de 200 microcervejarias soma ainda apenas 0,6% do mercado. A revolução da cerveja no Brasil é influenciada por um fenômeno similar que tem ocorrido na Europa, EUA e Austrália, com a valorização de marcas menores, artesanais e das cervejarias que produzem visando sabor e aroma, não preço e quantidade.
Com o desenvolvimento de grandes empresas, a melhoria no sistema de distribuição e o barateamento das cervejas, a regra virou o consumidor ser fiel a uma marca. Há cerca de dez anos, contudo, o processo parece inverter-se mais uma vez.
As importações de cervejas especiais aumentaram significativamente e as artesanais vêm mais que dobrando a sua participação no mercado. Como resultado deste aumento, a quantidade de cervejeiros caseiros está, também, crescendo velozmente e muitas vêm atingindo um nível de excelência comparável ao de países com grande tradição cervejeira, segundo o fabricante Fernando Pieratti.
A produção artesanal de cervejas representa uma nova estratégia de negócio, já que a possibilidade de esses micronegócios prosperarem decorre de menores custos de produção e publicidade do produto e do crescente interesse das pessoas.
Rogério Sventkauskas, da Gandras Alus, aproveita essa oportunidade e há quase dois anos produz cerveja com a proposta de divulgar a cultura lituana. A iniciativa faz parte do projeto de tematização da Vila Zelina, na zona norte de São Paulo, como o bairro de maior concentração de lituanos, russos, poloneses e ucranianos.
Oscar Musa e Matheus Aredes, da Nevada Beer, vivem justamente um momento de transição, deixando de ser produtores caseiros para se tornar microcervejeiros.
Para Aredes, “a maior dificuldade é a ANVISA [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] e o registro dos produtos no MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], demora uns dois anos, no mínimo, porque antes tem que ter alvarás sanitários e ok dos bombeiros. Para quem é pequeno e tem pouco capital para investir, é muito complicado”.
Na opinião de Marcos Oliveira, documentarista do filme “Cerveja Brazilis”, o estímulo a esses negócios seria uma possibilidade para o governo promover o desenvolvimento sustentável, a inclusão social, o turismo etílico e a cultura local.
“Na cidade de Treze Tílias, que fica no interior de Santa Catarina, o que há, além da cerveja boa? Mas só isso já me anima a ir até lá. A bebida atrai turistas e investimentos. As pessoas querem se envolver com um produto de identidade, que tenha assinatura e respeito. Além disso, cerveja também é cultura, ela pode levar a pessoa a se interessar por outras línguas, história, geografia, química e até física”.
As primeiras beberagens
A primeira cerveja parece ter sido produzida na China, por volta do ano 8000 a.C.
A análise de jarros encontrados em Jiahu, no norte do país, mostrou que eles continham uma cerveja feita de arroz, mel, uvas e muito fermentada. Os sumérios (entre os rios Tigre e Eufrates, atual Iraque) registraram 16 tipos de bebida à base de trigo e cevada, que eram consumidas pela elite, com canudinhos de ouro.
No Egito, o “pão líquido” se popularizou e passou a integrar a remuneração dos construtores das pirâmides, que ganhavam cinco litros de cerveja por dia. No século 14, a cerveja salvou a Bélgica da peste negra, quando os abades proibiram o consumo de água e obrigaram os cristãos a beber só cerveja, que, por causa do álcool, era menos contaminada.
Assunto efervescente
Entrevista com André Cancegliero
André Cancegliero, 33, decidiu transformar sua paixão em negócio. Além de “nanocervejeiro”, o engenheiro mantém um concorrido comércio de matéria-prima que abastece toda uma confraria de adoradores da bebida fermentada.
Ele também é o organizador de dois eventos anuais, o Home Brew Experience e o Beer Experience, o primeiro para cervejas caseiras e o segundo para as especiais. As caseiras são as feitas em nanocervejarias. Já as especiais são as bebidas produzidas em escala industrial, mas diferenciadas, com mais sabores e características sensoriais (aroma, paladar etc.), mais atrativas para o consumidor. Leia, a seguir, trechos de entrevista do engenheiro à TV Ambiente Legal.
Ambiente Legal – Como anda a cerveja no Brasil?
André Cancegliero – A cerveja é uma bebida muito antiga. Estudos mostram que tem mais de 10 mil anos. Algumas pessoas consideram a cerveja a primeira bebida alcoólica do mundo, outros o hidromel. No Brasil, nos últimos cinco anos, a cerveja começou a ser retomada como a dos primórdios no jeito de se beber. Há 10 anos ou 15 anos, o brasileiro conhecia só as cervejas pilsen de massa, como as da Ambev ou Schincariol. Nos últimos cinco anos, o mercado tem ganhado um pouco mais de fôlego e novas cervejarias têm surgido. No último ano, tivemos um boom de quase 29 cervejarias.
Ambiente Legal – Como tem sido essa experiência, com referência à possibilidade desse mercado crescer e se diversificar. As barreias sanitárias, de certa maneira, acabam favorecendo a concentração de cervejarias. Por melhor qualidade que se tenha numa cerveja, é obvio que a diminuição de opções faz com que você perca a qualidade na quantidade. Como é que tem sido essa experiência hoje com o Beer Experience? Como as pequenas cervejarias estão começando a encontrar seu nicho de mercado?
André Cancegliero – Hoje, no mercado brasileiro há muita dificuldade para abrir uma cervejaria. É muita adaptação que precisa ser feita para se regulamentar. O que acontece é que muitas cervejarias, durante um tempo, trabalham na informalidade, até sofrer uma intervenção do MAPA [Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento], que é quem regulamenta a produção de cerveja. Existe um déficit na legislação, porque o MAPA enxerga toda cervejaria como uma grande marca de cerveja. Você pega uma AMBEV, que fatura mais de R$ 14 milhões anualmente em cerveja, e analisa o potencial que esta empresa tem para se adaptar perante a regulamentação do MAPA: é muito maior. Por outro lado, um micro empresário, que está entrando no ramo para fazer uma cerveja artesanal, tem muita dificuldade de fazer um aporte de R$ 600 mil a R$ 700 mil, para se adaptar por conta do MAPA. Na verdade, o MAPA enxerga que ele é um macro cervejeiro igual à AMBEV. Tem até alguns problemas com os planos diretores das cidades, por exemplo, que não admitem que se monte uma cervejaria no município pela quantidade de efluentes gerados, porque uma cervejaria, normalmente, tem uma taxa de efluentes que vai de cinco a dez vezes a produção dela. Uma macro cervejaria produz uma média de dois milhões a três milhões de litros de cerveja por dia, ao passo que uma micro cervejaria produz, na maioria dos casos, 200 mil litros/mês. Na microcervejaria, o coeficiente de efluentes é mais alto, gira em torno de 10, mas ainda assim, para os 200 mil litros de cerveja/mês gerará 2 milhões de litros de efluentes, bem menos que os 15 milhões de uma macrocervejaria, que certamente sobrecarregariam o sistema de esgoto da cidade. Acredito que não deveria estar na mesma legislação.
Ambiente Legal – Quer dizer que no tratar igualmente os desiguais você acaba piorando a situação de desigualdade?
André Cancegliero – Sim, exatamente, e como hoje as cervejarias para lançar uma receita nova precisam de aprovação do MAPA, de registro do ministério, isso acaba impactando em uma lentidão, porque o MAPA não está preparado para receber essa enxurrada de pedidos que está acontecendo.
Ambiente Legal – E eles devem estar se assustando, porque isso é um movimento cultural.
André Cancegliero – Isso é uma coisa nova, tem cinco anos. Têm-se notícias de micro cervejarias que, quando dão entrada em pedido de MAPA, fazem uns 70 pedidos de uma vez, por que sabem que vai demorar.
Ambiente Legal – o Beer Experience não é só como evento, mas a partir dele você também montou uma espécie de confraria que permite que os usuários possam fazer uma assinatura mensal e receber em casa cervejas para experimentar. Como que isso tem ocorrido?
André Cancegliero – Estamos distribuindo um excedente de produção nosso, pesquisamos receitas para a nossa consultoria e vendemos, para alguns conhecidos, essas nossas experiências. Mas, hoje, no Brasil, existem cinco ou seis confrarias oficiais de cerveja, inclusive uma delas, a maior do Brasil, a “Have a Nice Beer”, tem mais de quatro mil assinantes, o que quer dizer que é um mercado crescente, que está cada vez ganhando novos seguidores. Eu acho que eventualmente o governo vai ter que prestar um pouco mais de atenção, porque é um gerador de divisas. Hoje o micro cervejeiro gera emprego, o valor agregado do produto é muito maior, ele tem uma geração de imposto maior do que o macrocervejeiro. Uma macrocervejaria emprega um funcionário a cada hectolitro e na microcervejaria são mais de 20 funcionários para cada hectolitro.
Ambiente Legal – Esse tratamento de desiguais e a pouca compreensão da burocracia em referência a esse surgimento de uma nova cultura por cervejaria e novos sabores, como está se refletindo hoje, principalmente na questão dos impostos?
André Cancegliero – As microcervejarias tem hoje um problema muito grande que é a carga tributária. Estamos em uma briga com o governo, para entrar no simples nacional. O impacto que esses empresários sofrem é de mais de 60% do faturamento deles. Só pelo fato das micro cervejarias serem fábricas que produzem bebida alcoólica, estão esbarrando em algumas questões legais, mas isso precisa ser tratado de uma forma diferente. Primeiro, porque é um gerador de emprego. Depois, um gerador de cultura nacional. Está começando a aparecer a escola cervejeira brasileira. É muito difícil ficar no mercado hoje. Você acaba tendo cervejarias que estão sempre na corda bamba também por essa questão tributária.
Para assistir à entrevista completa de André Cancegliero à TV Ambiente Legal, clique no link:
TV Ambiente Legal – André Cancegliero: Nanocervejarias e cervejas artesanais
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Gostaria de parabenizar pela excelente matéria, pois ainda não existe muita visibilidade para as microcervejarias e os produtores artesanais.
Poderiam por favor me informar a data de publicação? Estou fazendo um pesquisa acadêmica, faço gastronomia.
Sérgio, a matéria foi postada em abril de 2012. Segue o link da entrevista ao Programa TV Ambiente Legal.
http://www.ambientelegal.com.br/tv-ambiente-legal-entrevista-andre-cancegliero/
Abraço.
O Editor