“Infernal Affairs”: ação nas ruas de Hong Kong que faz sua poltrona tremer.
Por Felipe Viveiros*
Seria o cinema asiático um fenômeno recente? Ou teria começado para muitos de nós com os “Sete Samurais”, ao assistir pela primeira vez uma obra do mestre e cineasta japonês Akira Kurosawa? Nada disso. Mo-Ti, filósofo chinês que viveu por volta de 500 a.C. já ponderava o “fenômeno da luz invertida” que irradiava, através de um pequeno orifício, de um ambiente externo a uma sala escura. Não por coincidência, o teatro de sombras surgia séculos depois pela primeira vez na mesma China, durante a Dinastia Han e se popularizava por toda a Ásia.
O teatro de sombras nada mais é que uma forma antiga de entretenimento, um jeito de contar histórias que usa bonecos articulados erguidos entre uma fonte de luz e uma tela translúcida. As figuras podem andar, dançar, lutar, acenar e, até mesmo, rir. Esses são os primórdios da cinematografia na Ásia, que entre 206 a.C e 220 d.C já fazia o uso criativo da luz e imagens em uma tela de projeção. E os paralelos com o cinema moderno não param por aí. O teatro de sombras empregava música, cores e tinha caráter de cultura popular. As figuras ganhavam vida, eram atores. O som gerava tensão em harmonia com o visual, a trilha sonora já existia.
Hoje, bem longe da estilística dos tempos da Dinastia Han, uma conexão entre Hollywood e Ásia vem sendo observada nos última décadas através da categoria “ação”. O próprio Akira Kurosawa foi o primeiro diretor asiático da história a ter uma influência sobre Hollywood, sem nem mesmo estar classificado como um especialista no gênero. A segunda onda de influência asiática depois dos anos de Kurosawa chegou na forma de filmes de kung fu, produzidos em Hong Kong. Quem cresceu nos anos 1980 e 1990 familiarizou-se e até lembra de maneira nostálgica das aparições de Jackie Chan, e as produções de estilo ocidental com o lutador de artes marciais e ator sino-americano Bruce Lee.
Golpe certeiro, o cinema de ação de Hong Kong é a fonte da fama internacional de sua indústria de cinema. Em combinação de adrenalina hollywoodiana, estética chinesa, herança colonial britânica e técnicas de produção asiáticas, o cinema em Hong Kong é único. Tem intenso apelo transnacional para muito além das fronteiras do pequeno território autônomo do sudeste da China, hoje fonte de polêmica geopolítica.
Em importante diálogo cultural nas últimas décadas, o cinema oriental de Hong Kong tem influenciado as produções de ação americanas e europeias. Não o contrário. Um feito do cinema, em um mundo ocidental tão fechado e orgulhoso de sua própria cultura. Nesse contexto, é lançado Infernal Affairs, um dos melhores thrillers policiais já rodados na região.
Dirigido pelos cineastas Andrew Lau e a Alan Mark, Infernal Affairs recebeu sete dos 16 prêmios do 22º Hong Kong Film Awards. Ganhou, inclusive, do clássico “Herói” do emblemático cineasta chinês Zhang Yimou, diretor destacado internacionalmente por filmes que mostram a realidade chinesa pós Revolução Cultural. Quer mais? O filme fez tanto sucesso que entrou, em 2010, para a lista da revista britânica Empire como um dos “100 Melhores Filmes do Cinema Mundial”.
Em Infernal Affairs o espectador não encontra kung fu, mas sim a angústia de Chan, um policial infiltrado em uma gangue. Apenas o seu chefe tem ciência da missão e de sua verdadeira identidade. Como o “fenômeno da luz invertida” do filósofo chinês Mo-Ti, um membro da gangue, Lau, também se infiltra na polícia. Portanto, o policial é criminoso e o criminoso é policial.
Cada infiltrado tentar obter vantagem sobre um dos lados. Mas com um agravante. O fora-da-lei descobre que tem talentos para vida dentro da lei, e o policial começa a ter dúvidas de sua própria identidade depois de 10 anos trabalhando infiltrado para o crime organizado. Chan sofre com o intenso estresse da vida de criminoso; enquanto Lau, membro da gangue infiltrado na polícia, ganha destaque na organização e sobe de maneira rápida na hierarquia do departamento.
Infernal Affairs é um thriller envolvente que, de maneira criativa, traz uma neblina que desmancha a tênue linha entre policiais e assaltantes na engenhosa concepção central dos diretores. Os infiltrados, para manter seus respectivos disfarces, têm que lidar muito mais do que com a sobrevivência – temática geral dos filmes de ação – e sua essência é questionada em uma “angústia metafísica” pouco usual para o gênero. O filme, para não fugir à regra do gênero, também traz pessoas se equilibrando em telhados, tiroteios em elevadores, perseguições de carros pelas modernas ruas de Hong Kong. Entretanto, a produção se destaca com muita adrenalina ao fazer um questionamento quase poético de uma cidade dividida.
A obra acerta em dois pontos importantes. A trama é tensa, inteligente e complexa; aborda o“negócio infernal”que é viver uma mentira. Os personagens têm dificuldade para se encontrar em suas vidas reais, revelando uma complexidade emocional raramente vista em filmes de ação.
Uma luta de espadas da psicologia em conflito com o eu interior, na qual não fica claro quem é o herói. Este é Infernal Affairs. Na acrobacia do raciocínio, seus personagens se sobrepõe revelando que a identidade do ser humano é algo multifacetado, enigmático e muitas vezes incompreensível. Um jogo de ação e filosofia em que os infiltrados imergem em suas próprias versões com plena consciência da existência um do outro, revelando que há quem siga infiltrado na própria vida. Um teatro de sombras.
Assista ao trailer do filme clicando aqui ou na imagem abaixo:
Para assistir ao filme completo:
Amazon Prime Vídeo – Infernal affairs I (“Conflitos internos” nome no Brasil)
Netflix – Infernal affairs II e III
*Felipe Viveiros, graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, tem extensão universitária em Comunicação Empresarial pela Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá) e é mestre em Relações Internacionais e Organização Internacional pela Universidade de Groningen (Holanda).
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Fonte: Cultura do Resto do Mundo
Publicação Ambiente Legal, 03/10/2020
Edição: Ana A. Alencar