LÚCIFER – Ora Fausto, no Inferno há toda a espécie de prazeres.
FAUSTO – Oh, pudera eu ver o Inferno e regressar são e salvo, como eu seria feliz!
(MARLOWE, Christopher. Doutor Fausto. Publicações Europa-América, Mem Martins, Lisboa, 2003.
Trad. João Ferreira Duarte e Valdemar Azevedo Ferreira)
“Então… não interessa o espetáculo em si, mas o diálogo que ele pode abrir”.
(Antunes Filho em entrevista concedida a Sebastião Milaré, ao falar sobre a
adaptação teatral de Gilgamesh, em Gilgamesh, Devir Livraria, São Paulo, 2009)
Por Paulo de Tarso Abrão
A ideia da ida ao proibido, ao duvidoso, ao prazeroso persegue a mente humana. E nos textos de Teatro assim como na doutrina lançada nos livros de Direito, creio, não é diferente.
Se pensarmos em Íon, de Eurípedes, passando pelo O Santo inquérito, de Dias Gomes, ou nos textos de Nelson Rodrigues, Shakespeare, Ibsen, Eugene O’Neil…, dentre uma infinidade criativa de dramaturgia que varre séculos, da Antiguidade ao Pós-modernismo, teremos e veremos uma série de acontecimentos que levam personagens ao extremo da opção pelo incerto, pelo ilegal, pelo legítimo… enfim, decisões que vão mudar o rumo das mais variadas histórias.
Alguns leitores assíduos da tragédia em tempos diferentes como Aristóteles, Nietzsche e Foucault nos brindaram com textos que avaliam conceitos de Verdade, Poesia, Psicanálise e Direito, para levarem nosso pensamento a mundos que antes pareciam distantes de nós.
Assim, quando fui instado a escrever sobre Teatro e Direito, ou o Direito no Teatro, ou o Teatro no Direito, ou ainda Direito e Teatro, uma vastidão de ideias desconexas varreu meu pensamento para depois, objetivamente, perceber que se eu colocasse um ponto, um norte a ser seguido me distanciaria, aí sim, da grande tangência que o Direito – com sua força mandante e normativa – trouxe para o Teatro; e que o Teatro – com sua força trágica, enigmática e emblemática – trouxe para o Direito.
Talvez, por isso mesmo, e me lembrando enquanto escrevo, Hamlet não poderia ter sido de Ofélia, e Laertes a advertiu se referindo ao Príncipe da Dinamarca:
[Ele] “Não pode, como as pessoas sem importância escolher a quem deseja, pois disso depende a segurança e o bem-estar do Estado. Portanto, a escolha dele está subordinada à voz e à vontade desse outro corpo do qual ele é a cabeça. Então, quando ele diz que te ama, convém à tua prudência só acreditar nisso até onde seu desejo pessoal pode transformar o que ele diz em fato: ou seja, até onde permitir a vontade universal da Dinamarca”. (SHAKESPEARE, William. Hamlet, L&PM, Porto Alegre, 1997. Trad. Millôr Fernandes) (grifo meu)
Ofélia, como sabemos, não suportou pensar que o Príncipe estaria sempre ligado ao Estado, entidade da qual e para a qual a força total de seus sentimentos estaria aliada para a busca do bem público, e apareceu a boiar no líquido que unge os mortos, com as mãos segurando uma flor. Apesar da poética trágica, o Estado – fruto das aspirações de representação da sociedade – afogou o amor com um nenúfar entrelaçado entre os dedos femininos.
Assim, escrever sobre áreas que refletem o entendimento humano – uma catártica (ligada à dramaturgia/atuação) e outra de autoridade (ligada à norma, ao mando, à força, ao poder) – não é tarefa fácil.
As duas traçam caminhos que se convergem e/ou se distanciam, mas sempre ligados ou alinhados à preocupação do fazer humano cotidiano.
Teatro e Direito, e assim os vejo, não se excluem nem se anulam. Ao contrário, tratam da ideia de dominação – justa ou injusta – nas relações humanas.
Desde a Teogonia, de Hesíodo, os Deuses (aqueles que detém poder sobre o destino dos humanos) determinam esse destino dos mortais. Mas quase sempre também esse destino é colocado como um dos caminhos a ser seguido: o da justiça ou o da lealdade.
Serei leal ao que penso como prova de inocência na minha conduta, e corro o risco de ser condenada, ou me penitencio e aceito a lei injusta, que me fará dizer o que não quero ou no que não acredito para me salvar, pensaria Branca n’O Santo Inquérito.
É isso. Estarei aqui para tentar ser um, ou mais um, incomodante e ansioso leitor de mim mesmo e de meus alfarrábios empoeirados nas estantes engorduradas de minha pequena biblioteca.
Até breve!
Paulo de Tarso Siqueira Abrão é advogado, professor nos cursos de Direito da FACAMP/Campinas e Universidade São Judas Tadeu. É estudante de teatro – ator em formação – na Escola de Teatro Macunaíma. Colaborador do Portal Ambiente Legal
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