Pesquisador do IPT propõe técnicas de drenagem do solo urbano para enfrentar enchentes de modo sustentável
Enchentes devem ser prevenidas com inteligência e conhecimento, como de resto qualquer desastre natural: esta é a opinião do pesquisador Filipe Antonio Marques Falcetta, da Seção de Investigações, Riscos e Desastres Naturais do IPT.
O engenheiro civil comenta na entrevista abaixo como este problema pode tornar-se bastante complexo nas vias de trânsito intenso, localizadas em áreas de fundo de vale da Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo. “A retificação das linhas de drenagem ignora comportamentos naturais dos rios”, explica ele, “além de esbarrar em outras intervenções estruturais nesses locais, o que potencializa o problema”.
Leia a seguir a entrevista. Confira!
Estamos passando por um período no Brasil de fortes chuvas – a Sabesp registrou uma pluviometria de 164,8 mm entre os dias 11 e 12 de março no manancial de Rio Claro, que abastece uma extensa área da zona leste da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), incluindo outras cidades e bairros da capital. Uma de suas consequências mais graves são as inundações. As cheias urbanas são um problema sem solução?
Filipe: Quando se fala em cheias de rios, na forma de enchentes ou inundações, é importante ressaltar que são fenômenos naturais necessários inclusive para a manutenção de ecossistemas e preservação de espécies, as quais dependem destes fenômenos para reprodução e alimentação.
Os cursos d’água são formados pelo acúmulo natural da água em regiões topograficamente mais baixas de um relevo acidentado, denominadas fundos de vale. Estas regiões formam uma calha – também chamada de leito – que recebe a água de todo o seu entorno e de outras calhas secundárias.
Na ocorrência de chuvas, há o aumento do nível das águas do rio, ainda contido em seu leito – é o que se denomina enchente.
Adensamento das cidades ocupando áreas de várzea e impermeabilizando progressivamente o solo tornou complexo resolver o problema das cheias urbanas
Em situações de precipitação intensa, o rio pode vir a ocupar uma região plana adjacente aos fundos de vale, denominada várzea, o que se denomina inundação.
A civilização humana sempre buscou nos rios fonte de alimento: as áreas de várzea formam terrenos que naturalmente possuem umidade e fertilidade ideais para desenvolvimento destas atividades. Além disso, os grandes rios possibilitam a navegação e, desta forma, conectam localidades e facilitam trocas comerciais.
E quais seriam os motivos para o aumento no número de inundações na capital paulista e na região metropolitana? É uma questão histórica que ainda não foi resolvida?
Filipe: O primeiro núcleo de povoação da cidade de São Paulo surgiu no alto de uma colina escarpada, entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí. Assim é com outras cidades da Região Metropolitana de São Paulo: as cidades do ABCD são localizadas nos vales do rio Tamanduateí, Meninos, Couros e Taboão, entre outros.
O processo de urbanização e industrialização intenso da capital paulista se iniciou em finais do século XIX. Durante todo o século XX, houve uma grande influência da doutrina higienista em seu planejamento urbano e definição dos primeiros loteamentos, preconizando a necessidade de ‘limpeza’ da cidade, com o objetivo maior de melhoria da saúde pública. A premissa era o afastamento das águas pluviais e servidas das áreas habitadas.
Houve uma intensa mobilização para a construção de aterros em áreas de várzea, canalização e tamponamento de rios e córregos; com isso, todo o sistema viário foi estruturado nas chamadas ‘vias de fundo de vale’, que foram idealizadas pelo engenheiro Prestes Maia na década de 1930.
Estas vias foram construídas nas margens de rios e córregos retificados e canalizados a céu aberto ou tamponados em galerias, provocando a ocupação e a supressão de antigos meandros e regiões de várzea, sazonalmente sujeitas ao alagamento. Isso provocou a aceleração do escoamento, aumento das vazões dos rios e, consequentemente, inundações e alagamentos.
São muitas as ‘vias de fundo de vale’ da região metropolitana, quase sempre associadas à intensa atividade comercial que nelas se desenvolve: Marginais Tietê e Pinheiros; Av. do Estado (Rio Tamanduateí); Av. Aricanduva (rio homônimo); Av. 23 de Maio (Córrego Itororó) e Av. Salim Farah Maluf (Córrego Tatuapé), entre outras.
Como estas transformações na capital paulista se refletiram no comportamento dos rios? E quais soluções foram e são propostas?
Filipe: A retificação das linhas de drenagem ignora comportamentos naturais dos rios, como a atenuação das enchentes que ocorre nas áreas de várzea e a elevação do nível d’água provocada pela redução natural de velocidade que ocorre nas regiões de encontro de cursos d’água (remanso) e, muitas vezes, esbarra em restrições proporcionadas por outras intervenções estruturais comuns em área urbana, como aterros e travessias.
Esta concepção obriga a construção de estruturas de drenagem cada vez maiores para escoar os grandes volumes de água gerados pela concentração de escoamentos de águas pluviais.
Todo o sistema viário da capital paulista foi estruturado nas chamadas ‘vias de fundo de vale’, que foram idealizadas pelo engenheiro Prestes Maia na década de 1930 – dois exemplos são as Marginais Tietê e Pinheiros
À medida que a cidade cresce e o solo urbano se impermeabiliza, a situação se agrava e as estruturas de drenagem existentes passam a atender apenas uma fração do escoamento produzido por eventos de chuva.
A ampliação dos sistemas de drenagem torna-se impraticável, seja pelos altos custos sociais envolvidos ou pelos elevados investimentos necessários à implantação de obras de grande porte.
A cidade de São Paulo começa, em meados da década de 1990, a executar obras com intuito de promover o retardamento do escoamento das águas pluviais: os populares ‘piscinões’, ou reservatórios de retenção, como os mesmos são chamados no meio técnico. Estas intervenções visam essencialmente trazer de volta um fenômeno que acontece naturalmente, com as áreas de várzea atuando como principais redutores da velocidade de escoamento e armazenando a água excedente.
Estas obras cumprem o seu papel, mas com um alto preço: muitas vezes requerem estruturas de bombeamento de operação complexa e apresentam altos custos anuais de manutenção e limpeza.
O adensamento das cidades ocupando áreas de várzea e impermeabilizando progressivamente o solo, acompanhado de concepções estruturais históricas dos sistemas de drenagem presentes nas grandes cidades brasileiras, tornou complexo resolver o problema das cheias urbanas, gerando enormes prejuízos aos cofres públicos e à saúde da população que convive com o problema de modo recorrente.
E quais seriam as soluções a serem adotadas?
Filipe: Quaisquer que sejam as propostas para amenizar ou solucionar a questão, é preciso haver uma mudança de paradigma, socializando responsabilidades públicas e privadas, atacando o problema conjuntamente.
Passa a ser necessária a adoção de técnicas de drenagem urbana que visem o resgate da capacidade natural de controle de cheias presentes nas bacias sem influência humana, buscando incentivar a construção de estruturas que visem reduzir a impermeabilização do solo das cidades, com a utilização de pavimentos e telhados permeáveis e o aumento das áreas verdes com alta capacidade de infiltração.
É necessário discutir modificações no sistema viário existente, desconstruindo a ideia das avenidas de fundo de vale – como já aconteceu nas cidades de Portland, nos Estados Unidos, e Seul, na Coreia do Sul – abrindo espaço para a renaturalização das áreas de várzea, de modo que haja espaço para os cursos d’água quando da ocorrência de eventos de cheia.
A participação da sociedade e do poder público no processo de adoção de técnicas de drenagem sustentáveis torna-se importante aliada nas atividades de educação ambiental e permite a adoção de políticas públicas, utilizando-se planos diretores como instrumento fomentador da preservação e restauração das bacias hidrográficas urbanas, permitindo apontar a população como agente transformadora do paradigma atual.
É importante resgatar urgentemente a capacidade natural de amortecimento de cheias presente nas bacias hidrográficas naturais, permitindo que seja recomposto o espaço necessário para os rios absorverem todo o excesso de água produzido pelas chuvas em área urbana, evitando-se assim efeitos danosos à saúde pública e os prejuízos materiais que as chuvas intensas provocam nestes ambientes.
Fonte: IPT