O mundo ainda assiste, estupefato e impotente, a proliferação do trabalho escravo, tanto nos países pobres quanto nos países ricos.
por Ana Alencar e Edna Uip
Em pleno século 21, com pessoas interligadas pela internet e cada vez mais próximas umas das outras vemos, com perplexidade e preocupação, o avanço do trabalho considerado escravo pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), não apenas no campo como também nos grandes centros urbanos.
Pela OIT é considerado trabalho escravo, o trabalho forçado que envolve restrições à liberdade do trabalhador que se vê obrigado a prestar um serviço sem receber um pagamento ou receber um valor insuficiente para suas necessidades. Essa situação faz com que esse trabalhador não consiga se desvincular do trabalho, devido ter que quitar as dívidas contraídas com o próprio empregador.
Essas relações são consideradas ilegais, apesar de proliferarem pelo mundo todo, principalmente em regiões mais pobres, onde a população carente de conhecimentos e do mínimo necessário para sua sobrevivência, se submete a esses empregos onde são coagidos e tem sua liberdade restrita com a apreensão dos seus documentos pelo “empregador”, geralmente em locais de difícil acesso.
O relatório Índice de Escravidão Global 2014 da Fundação Walk Free, divulgado em 17 de novembro, constatou a existência de cerca de 35,8 milhões de pessoas em situação de escravidão conforme dados coletados em 167 países.
NO BRASIL
O Brasil aparece no relatório em 143º lugar em relação ao número de habitantes, com cerca de 155,3 mil pessoas em situação análoga à escravidão, o que equivale a 0,078% da população brasileira.
A maioria dos casos está na zona rural, onde trabalhadores vivem em locais afastados, sem condição de fuga, correndo risco de morte. Chama a atenção, principalmente na região metropolitana de São Paulo, os imigrantes ilegais, predominantemente os bolivianos e os asiáticos, que trabalham muitas horas por dia, sem folga e com baixíssimos salários, geralmente em oficinas de costura. Empresas de confecção de roupas para grifes famosas também encabeçam a lista de empresas que utilizam trabalho escravo.
Na zona urbana notou-se um aumento de 38% dos casos de resgate de trabalhadores em situação de trabalho forçado no setor da construção civil, decorrente das obras para a Copa do Mundo.
No início do ano, uma ação conjunta entre Ministério do Trabalho e Ministério Público do Trabalho , descobriu e prendeu quatro pessoas denunciadas pelos crimes de privação de liberdade, condição análoga de escravidão e frustração de direito trabalhistas, em São Paulo. No esquema descoberto, os trabalhadores latinos eram mantidos trancados com cadeados na própria confecção, sem poder sair sem a permissão dos empregadores. Trabalhavam até 14 horas por dia, sem contrato formal de trabalho, em péssimas condições de higiene e acomodação, e ficavam três meses sem receber, logo que chegavam, para cobrir os custos da viagem.
No final de novembro, após três meses de investigação o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em parceria com a Defensoria Pública da União e a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, resgataram 37 bolivianos em situação análoga ao de escravidão na zona norte de São Paulo. “Identificamos condições sub-humanas e degradantes no alojamento, jornadas de trabalho exaustiva, retenção e descontos indevidos de salário, utilização de violência verbal e física, além de manipulação de documentos contábeis trabalhistas, configurando trabalho escravo”, afirmou o superintendente-geral do Trabalho, Luiz Antonio Medeiros.
Os bolivianos resgatados confeccionavam peças de roupa para a Lojas Renner em uma oficina na zona norte da capital . A empresa Renner sofrerá as puniçoes cabíveis podendo ser punida com prisão dos responsáveis e fechamento das lojas. A Secretaria Municipal de Direitos Humanos, está auxiliando a regularização no país e articulando o processo de bancarização dos trabalhadores para que recebam as verbas indenizatórias da empresa que totalizarão R$ 170 mil, referentes a verbas rescisórias, e deverão receber mais R$ 770 mil até abril de 2015.
No site da Fundação Walk Free Brasil é citado os nomes de outras empresas flagradas praticando trabalho escravo : Anglo American, Brookfield, Emccamp, OAS, MRV , Racional, Ecko, Gregory, Billabong, Brooksfield, Cobra d’Água e Tyrol. A terceirização de serviços e a não fiscalização por parte dessas empresas, tornam-nas responsáveis pelos casos denunciados e devem responder judicialmente por eles.
A Fundação faz a denúncia e promove coleta de assinaturas para exigir que o governo tome medidas junto às empresas para que erradiquem de vez essa situação degradante para trabalhadores que saem de suas regiões em busca de uma oportunidade de emprego e de melhoria de vida e, acabam na situação de escravos, sem mesmo receber salários.
“Não dá para aceitar que casas do programas de habitação popular (Minha Casa, Minha Vida), hospitais e aeroportos sejam construídos por escravos.”, diz a página da Walk Free. A Fundação registrou, também, flagrantes com imigrantes haitianos em regime de escravidão no Brasil.
Quanto aos indígenas brasileiros, a situação análoga à de escravo resulta diretamente da não demarcação de suas terras. Confinados em pequenas áreas de terras, muitas vezes alojados em barracos a beira de estradas, os índios acabam sendo alvo de aliciadores e tornam-se escravos em canaviais e fazendas, com registros de mortes em casos de fuga.
“Um caso emblemático de trabalho escravo envolvendo indígenas ocorreu em Bom Jesus (RS). Uma força-tarefa do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Publico do Trabalho (MPT) e Funai resgatou 41 indígenas kaingang encontrados em condições análogas à de escravo; eram submetidos a condições degradantes no cultivo de maçãs. Dentre eles estavam 11 adolescentes entre 14 a 16 anos. Os alojamentos estavam em péssimas condições, havia apenas dois banheiros para os 41 trabalhadores, as famílias – inclusive crianças – se apertavam em espaço insuficiente, a fiação elétrica estava solta, o frio entrava pelas frestas, a água era armazenada em garrafas pet e havia comida estragada pelos cantos.”, informa a Fundação na sua página de coleta de assinaturas para a causa indígena.
No início de novembro, a líder kaiowá Marinalva Manoel, 27, foi assassinada a golpes de faca em Dourados (MS), duas semanas após ter participado do protesto em Brasília, pela regulamentação e demarcação das terras de sua tribo, uma área de 1.500 hectares, ocupada por uma empresa de cultivo de grama. Marinalva era casada e mãe de dois filhos e pertencia à comunidade Ñu Porã, um conjunto de barracos de lona onde moram 28 famílias kaiowás. A área está em processo avançado de demarcação, mas sofre pressão de fazendas vizinhas e até de um projeto de loteamento, devido estar próxima à zona urbana. Ainda segundo o site da Fundação, o número de regularizações de terras indígenas nunca foi tão baixo quanto no governo da presidenta Dilma.
Em relação à prática de trabalho forçado na zona rural, a Walk free, coletou assinaturas para que a PEC do Trabalho Escravo fosse aprovada sem alteração . A proposta de emenda constitucional 57A/1999 que prevê o confisco de propriedades em que esse crime for encontrado e sua destinação à reforma agrária ou a programas de habitação urbanos, foi aprovada pelo Senado Federal em 27 de maio de 2014.
O relatório da OIT também apresentou pontos preocupantes no Brasil, como a alta incidência de crianças e adolescentes trabalhando em serviços domésticos, no tráfico de drogas e no turismo sexual.
O relatório cita o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, assinado por mais de 300 empresas até o ano passado, como um passo importante no combate à prática de trabalho escravo no país, assim como a lista suja do trabalho escravo, divulgada pelo Ministério do Trabalho. O Brasil, juntamente com os Estados Unidos e Austrália, são os únicos que estão tomando medidas para eliminar o trabalho escravo na contratação pública e nas cadeias de fornecimento das empresas que atuam em seus países.
Embora a Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconheça o Brasil como uma referência na luta contra a escravidão contemporânea e os dados coletados comprovem uma queda no número de casos em relação a 2013, que era de 210 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo, é necessário uma legislação mais radical que combata, efetivamente, essa prática hedionda.
A queda, ainda que significativa, não é motivo para comemoração.
NO MUNDO
O Índice da Fundação Walk Free apresenta duas classificações para o número de pessoas em situação de escravidão:
Os países com a maior proporção de escravos em relação à população
Mauritânia: 4%
Uzbequistão: 3.97%
Haiti: 2.3%
Qatar: 1.36%
Índia: 1.14%
Os países com o maior número de escravos
Índia: 14.29 milhões
China 3,24 milhões
Paquistão: 2,06 milhões
Uzbequistão: 1,2 milhão
Rússia: 1,05 milhão
O aumento de 20% nos casos apresentado pelo relatório em relação a 2013, deve-se à mudança e melhoria da metodologia e não o aumento geral da prática. A nova metodologia mapeia os casos de escravidão à moda antiga e, principalmente o que se convencionou chamar de trabalho escravo contemporâneo ou moderno.
Os casos comprovados de escravidão pelo mundo não diferem muito de um país para o outro. São pessoas vítimas de trabalho forçado, por violência ou por dívida, tráfico humano, exploração sexual e casamentos forçados. A vulnerabilidade dessas pessoas deve-se à sua situação de pobreza, falta de conhecimentos e educação formal, algumas devido a cultura da sociedade em que vivem, por serem imigrantes, dentro ou fora de seu local de origem, que se vêem obrigados a cumprir contratos ilegais de trabalho. Essas pessoas se submetem a qualquer tipo de trabalho, têm sua liberdade cerceada e aceitam a exploração em troca de um pouco de dinheiro ou comida.
Recentemente, tivemos um caso que se tornou viral nas redes sociais quando a filha de uma advogada de Brasília recebeu uma encomenda do site chinês de compras AliExpress com uma mensagem de pedido de socorro: “I slave. Help me [Sou escravo, ajude-me]”. A jovem colocou a foto da mensagem nas redes sociais e teve mais de 15 mil compartilhamentos.
O caso chegou à Embaixada da China no Brasil que respondeu dizendo que esse caso não tem solução pois o bilhete não tinha identificação da vítima nem sua localização, e que a China tem leis que proíbem rigorosamente o trabalho escravo que atua da mesma forma que temos no Brasil.
Do lado da empresa AliExpress, houve um contato explicando que o site apenas revende os produtos que já chegam embalados de diversas fábricas e que precisaria rastrear de qual vendedor veio o seu produto.
Embora sem solução, a mensagem chamou atenção para a situação dos trabalhadores chineses e do mundo asiático em geral.
O que pode e deve ser feito para coibir essa prática deplorável no mundo, são os governos que tenham relações comerciais com outro país, imponham condições para sua comercialização, principalmente nos casos em que se perceba que, no processo de fabricação de seus produtos haja a utilização de trabalho análogo ao escravo.
O setor comercial é diretamente responsável e, assim como os consumidores, devem estar atentos às denúncias desse tipo quando adquirirem produtos principalmente de empresas que utilizam mão-de-obra asiática e africana. Grandes empresas, em busca de diminuir os custos de produção e promover ações sociais, montam filiais ou terceirizam serviços nesses locais onde são registrados os maiores índices de trabalho escravo contemporâneo.
Conforme Kevin Bales da Fundação Walk Free, responsável pelo relatório, a divulgação do Índice de Escravidão Global, tem por objetivo influenciar e estimular os governos mundiais, para que tomem medidas necessárias a fim de erradicar de vez o trabalho escravo no mundo.
Fontes:
http://www.walkfree.org/pt-br/ http://veja.abril.com.br/noticia/mundo/mundo-tem-358-milhoes-de-escravos
http://www.ecodesenvolvimento.org/posts/2014/no-brasil-situacao-analoga-a-escravidao-atinge-155?tag=economia-e-politica
http://pt.wikipedia.org/wiki/Trabalho_escravo_contempor%C3%A2neo
http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/05/01/por-trabalho-escravo-mpf-denuncia-4-pessoas-de-confeccao-da-zara.htm
Edna Regina Uip é advogada (USP) e consultora corporativa e empresária. É escritora e colunista do Portal Ambiente Legal.
Ana Alencar é pedagoga, professora de ensino básico do Município de São Paulo, poetisa e produtora de conteúdo do Portal Ambiente Legal
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