Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
Outro dia, buscando nas infovias da vida um artigo doutrinário, me deparei com um texto assinado por uma daquelas autoridades lotadas de certezas, desprovidas de qualquer dúvida e imersas na mais absoluta arrogância.
Do alto de sua titulação acadêmica, o indigitado – como tantos outros de mesma estirpe professoral, insistia em retirar o tratamento de doutor aos advogados, entendendo tratar-se o termo de uma titulação acadêmica.
Pura grosseria.
É de impressionar o nível de reatividade de certas pessoas ao uso da forma de tratamento como tradição, uma deferência a uma categoria profissional que detém o monopólio de um dos três poderes do Estado Moderno – o Judiciário, e constitui ampla maioria nos demais – legislativo e executivo.
Agem como se isso significasse “ofensa” à titulação acadêmica. Só Freud para explicar essa inquietação nervosa face ao tratamento de doutor dado aos advogados, magistrados, delegados e promotores.
O caso é que há muita confusão e preconceito com o uso do termo “doutor”, seja como forma de tratamento, seja como título acadêmico, como se um excluísse o outro.
Porém, a história demonstra o acerto do uso do termo também como forma de tratamento. Mais, o tratamento precede o título. Senão vejamos:
Doutor é derivado de doutrinador.
O termo vem de Roma antiga. O direito romano entendia como fontes do direito o costume, a lei, o plebiscito, a interpretação dos prudentes e os editos dos magistrados.
A interpretação dos prudentes era sempre um ensinamento – firmava uma doutrina.
Doutrina é ensinamento – vem de docere: ensinar, doutrinar. Está na raiz de docente e doutrinador.
O termo docere foi introduzido no mundo do direito por Cícero, o grande advogado romano, em 55 a.C., quando escreveu De Oratore, onde pregava que um tribuno devia usar da eloquência, a arte de bem falar.
Segundo Cícero, o orador eloquente devia cumprir três objetivos: docere – ensinar, explicando e expondo argumentos; delectare – agradar, deleitar, captando o agrado e a atenção do auditório, de modo a não causar aborrecimento; e movere – comover, apelando às emoções e tentando “tocar” os sentimentos do auditório.
A doutrina, portanto, nasceu vinculada ao direito. Ela provinha dos doutores, ou doutrinadores. Quando havia harmonização nessas opiniões dos doutrinadores, firmava-se a comunis opinium doctorum, que chegou a ser expressamente equiparada à lei no período do Imperador Teodósio II, no século V.
Os doutores advogavam, atuavam como jurisconsultos ou tribunos (afinal os advogados eram todos patrícios).
O termo advogado proveio da contração de ad vocatus – para ser chamado (vocare).
A advocacia era uma atividade nobre e inviolável. Ter um tribuno disposto a defender sua causa, portanto, era uma honra – e daí vem o termo honorário- uma retribuição à honra de ser defendido por um tribuno, ou ter seu ponto de vista abalizado pela prudência, ou ensinamento de um jurisconsulto.
As primeiras “ordens de advogados”, por sinal, foram instituídas pelos imperadores Teodósio I (379-395 d.C.) e Artêmio, e, no Império Romano do Oriente, por Valentiniano (364-375 d.C.), Marciano, Leão, Justino e Justiniano, tamanha a importância dada à nobre profissão.
Causas eram defendidas pelos advogados perante autoridades (Consules, Senado ou Pretores) – a douta opinião, por sua vez, consistia em interpretar com “prudência” os textos legais. Jurisprudentes, então, eram jurisconsultos encarregados de adaptar os textos legais às mudanças do direito vivo, buscando solucionar os conflitos, preenchendo, assim, as lacunas deixadas pelas leis.
Adotada a doutrina pelos pretores, a jurisprudência tornava-se um edito.
Os doutrinadores formam a atividade orgânica do direito. São os doutrinadores que ousam não apenas interpretar a lei e alterar a sua interpretação conforme os costumes mas, também, propugnar sua abolição em prol da justiça. Essa atividade da postulação é conferida aos advogados, que exercem essa prerrogativa no seu ministério privado. Assim, doutrinando, os advogados postulam.
Por isso os advogados são chamados de doutor, desde os tempos de Roma, e no judaísmo, sob ocupação romana, também.
Por óbvio que à medida em que a atividade se ramificou, magistrados, persecutores penais e autoridades policiais também ganharam o tratamento pronominal.
Voltando à história, com a decadência do império romano, o termo ganhou asas.
O cristianismo, após adotar cânones romanos a partir do Concílio de Niceia, adotou o termo “doutrina religiosa” e o termo “doutrinador” ou “docente”, para seus pastores e santos.
O cristianismo fez bem em usar o termo. De fato, Jesus foi um grande doutrinador (e fez seguidores, todos doutrinadores). Como rabino, Jesus alterou os eixos de entendimento do que era o divino, transmitiu a impressão de Deus como fonte viva de amor incondicional e o aproximou da humanidade. Advogou para a causa, porém não advogou em causa própria – e nem poderia – perante a autoridade romana – ainda que esta – Pilatus, percebendo o problema, lhe tenha dado tecnicamente uma oportunidade… Não podia, dadas as circunstâncias, ser tratado como doutor quando estava na terra, mas é merecedor do tratamento pela eternidade.
Posteriormente, na idade média, com a organização das Universidades, o termo doutor passou a integrar a qualificação acadêmica dos que professavam as doutrinas do direito, da filosofia e das ciências – e nesse caso específico, virou título. Só então, o tratamento de doutor estendeu-se à medicina, como forma respeitosa de tratamento aos seus bacharéis.
Na verdade o título sempre foi um pleonasmo – titular um docente como doutor é nominá-lo professor duas vezes.
Não é preciso ser PHD, portanto, para observar que os doutores já militavam no direito ANTES de existirem universidades…
De raiz latina, o direito português não ignorou o detalhe milenar, e o tratamento de doutor acompanhou os bacharéis em direito portugueses em respeito à tradição, até aportarem – os bacharéis e a forma de tratamento, no Brasil.
Assim, em respeito à arte do direito, de Cícero até hoje, DOUTOR é forma de tratamento ao profissional do direito, emprestado à academia, que o utiliza também como título.
Não é possível, definitivamente, confundir um com o outro, a menos que se queira assassinar a história.
Há quem faça questão do uso do tratamento ou mesmo busque tutela judicial para obrigar outros a fazê-lo. A postura é tão condenável quanto a daqueles que se arrogam academicamente a monopolizar o termo. O fato é que educação e polidez não se exigem de alguém, se espera que alguém as tenha e as use devidamente.
A polidez no trato e cordialidade nas relações é assunto complexo nos dias de hoje, quando a regra é agredir para argumentar e ofender para se impor.
Porém, o resgate histórico das formas de tratamento, aqui singelamente proposto, dirige-se justamente aos que diariamente penam nos balcões da mais cara e paquidérmica das burocracias do planeta, visando assegurar ou pleitear direitos de cidadãos cada dia mais indefesos… com enormes custos e sacrifícios pessoais, diuturnamente desprezados por quem fez da ignorância modo de vida.
A negação reativa ao uso do tratamento, muitas vezes parece revelar um status psicológico que acomete parcela de indivíduos cognitivamente burocratizados, que se agarram a formas “excludentes” de segregação acadêmica, buscando afirmação. Ignora, ademais, fato notório: o termo largamente utilizado no Brasil, na Itália, na França, em Portugal, nos Estados Unidos, na Alemanha, etc… entre profissionais do direito e para profissionais do direito – simples assim.
Portanto, se você, leitor, for uma pessoa educada, polida, inteligente e, sobretudo, de bem com a vida, não se incomodará em tratar um jurisconsulto como doutor, em respeito à milenar tradição.
Porém, se estiver de mal com a vida… deixar de fazê-lo ao tratar formalmente com um profissional do direito, não demonstrará qualquer erudição, só evidenciará má educação – ainda que haja doutrina farta a apoiar a grosseria…
Sem esses doutores do dia-a-dia, que doutrinam a cada petição subscrita, que irritam autoridades, acadêmicos, partes contrárias e mesmo clientes convictos de suas razões, não haveria democracia, só a mais ordinária ditadura da burocracia.
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados, integra o Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro da Comissão de Infraestrutura e Sustentabilidade e da Comissão de Política Criminal e Penitenciária da Ordem dos Advogados do Brasil – Secção São Paulo (OAB/SP). Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal. Responde pelo blog The Eagle View.
.
Me considero “uma pessoa educada, polida, inteligente e, sobretudo, de bem com a vida,” no entanto, não concordo com a argumentação e não vejo como isso pode ser considerado um “assassinato da História” mesmo porque formas de tratamento evoluem com o tempo e isso no meu entender não pode ser classificado como “grosseria”…
Anides S.
O artigo mostra que a forma de tratamento não mudou. Continua em pleno uso até os dias de hoje. É uma tradição milenar.
O que o artigo expõe é fato histórico, não argumento. Quanto à conclusão sobre educação, esta não se exige ou se cobra e, sim, se espera. Ninguém deverá cobrar de outro, em juízo o tratamento, no entanto, a polidez o indica.
O termo pode ser usado , desde que não pretenda passar uma noção de superioridade /casta ( não no sentido hindú) ou para tentar ” ganhar no grito”. Já fui testemunha ou assistente em julgamentos onde ví o Juiz ou advogado tentar usar a formalidade para intimidar a outra parte. Chamar um juiz de excelentíssimo e o que mais, me parece ridículo, e pior, os mesmos passam a acreditar que o são e passam a acreditar também que todos os seus privilégios sejam normais, colocando-os acima dos demais cidadãos. Utilizam isto com frequência nos seu dia a dia. São autoridade, mesmo fora do seu metier. O advogado é outra história.
O termo “doutor” é forma educada de tratamento, em respeito à tradição milenar. O uso do tratamento de “excelência”, em juízo, para se dirigir à autoridade, é exigência legal, acredite…
O que importa é ser um profissional competente, o titulo é o de menos, essa argumentação não me convence, doutrinação. Então os professores também seriam doutores, os pastores idem e assim por diante.Quanto a tradição , as pessoas só as usam quando elas os beneficiam. Usos e costumes mudam conforme os tempos, todos nós sabemos disso .
Eu apreciei o texto pela abordagem diferenciada – usualmente a explicação sobre o uso do termo ‘Doutor’ para os médicos, que eu me recordo, estava circunscrita ao início do século XIX no Brasil. A sua articulação com os advogados e o embasamento na Roma Antiga é por certo bastante interessante e confere um ‘embasamento histórico’ aparentemente difícil de contestar. E, do mesmo modo que o médico é chamado de doutor, os engenheiros também completam a categoria dos bacharéis que por lustrarem os bancos da academia já recebiam utilizavam o título “Dr.” em vez do “Bel.” a frente do nome. Aliás, Lima Barreto já comentava sobre essa ‘nobreza de bacharéis’ no “Triste Fim de Policarpo Quaresma” – quando sequer tínhamos uma ‘Universidade’ em nosso país…
Ainda assim, parece não ser uma explicação tão usual – dado que os tais textos que criticam essa forma de tratamento aos advogados não serem recentes – ainda que as redes sociais permitam que circulem mais… E, em tantos anos de críticas ‘arrogantes’, este foi o primeiro texto em que vi a explicação remetida ao digno Cícero. Dado que não há citação de fontes pelo artigo ser mais uma reflexão, não sei se pode ser tão exata como a suposta mas nunca provada origem da palavra ‘larápio’ atribuída ao ‘qualificado pretor romano’ Lucius Antonius Rufus Appius!
Eu poderia lembrar que as palavras e seu uso na língua mudam – afinal, “Senhor” e “Dona” – eram termos restritos à nobreza e se tornaram formas usuais e até mesmo, no caso de ‘dona’, inadequada de tratamento formal. E, com isso, já o bom Cervantes brincava em um trecho do “Quixote” – quando os dois principais idiomas ibéricos mal estavam saídos dos cueiros da Idade Média…
No entanto, eu penso que o que mais faz as pessoas hoje qualificadas com Mestrado e Doutorado ou a gente comum se incomodar com o uso tradicional desse tratamento com os advogados tem sido o seu abuso por eles, ao mesmo tempo em que há uma notória multiplicação numérica da classe acompanhada da redução da qualidade dos profissionais. Na verdade, os termos Mestre e Doutor – obtidos por titulação acadêmica – em função dos atuais critérios de produtividade e redução da carga horária dos cursos, igualmente também tem perdido a relação que possuíam com um conhecimento extenso, amplo… Cada vez há mais mestres e doutores com conhecimento mais restrito – Magister Scienciarum e PhD – infelizmente as nossas universidades foram avaras em nos conceder a denominação latina usual no meio acadêmico de Língua Inglesa.
No entanto, os tais profissionais com MSc e PhD não somos tão numerosos e pouco qualificados como nas últimas décadas aconteceu com a multiplicação dos cursos de Direito.
Outro comentário lembrou apropriadamente os juízes – cada vez mais agindo como brâmanes ou nobres… ‘autoridades’ que querem impor na rotina cotidiana – como se o múnus da magistratura os tornassem uma aristocracia a ser reverenciada e aos demais, cidadãos de segunda classe em uma república!
Os juízes, ainda são poucos, mas no dia a dia, a população esbarra é com bacharéis mal formados por cursos pendurados nas avaliações do MEC e que são incapazes de passar direto pelo Exame da Ordem, aliás, estabelecido justamente por que os seus pares notaram a queda ímpar na qualidade dos egressos nos últimos anos… E, tais sujeitos, infelizmente tem a modéstia no inverso da sua qualificação – são esses que abusam do termo ‘doutor’ e querem impor aos demais a sua ‘qualificação’ duvidosa…
Se, hoje, aparentemente há um questionamento crescente sobre o privilégio desse tratamento – e apesar de segundo o argumento, tanto médicos como engenheiros também não o merecerem – deve-se mais ao seu abuso por uma fração dos bacharéis em Direito…
Eu penso que as tendências podem ser revertidas… Hábitos introduzidos ou modificados – o uso das garrafas plásticas com água mineral para um exemplo simples que sequer era cogitado três décadas atrás! A restrição ao cigarro… Eu penso que mais do que pedir tolerância as pessoas de ‘bem com a vida’, cabe aos profissionais que lidam com tanto empenho diariamente com tal honrada profissão e aos docentes nas boas faculdades de Direito – promover essa reflexão e crítica aqueles que outros, que sequer conseguem passar no exame da Ordem, mas que fazem questão de exibir seu suposto conhecimento para posar de ‘autoridade’.
E, não apenas aos doutores advogados, mas cabe a todos nós – iletrados ou formados no Ensino Fundamental, Médio, Bacharéis, Mestres, Doutores e até os que acham que ‘pós-doutorado’ é título acadêmico – lembrarmos sempre… que, numa república, a ‘Autoridade’ é sempre do Povo, que emana dele… e todos nós somos – no máximo, Servidores Públicos, servidores do Povo… E, assim encerrar uma coisa tão arcaica como nossa, o: -“Você sabe com quem está falando?”
Concordamos, Paulo Henrique.
AFPP
Nunca li um artigo tão interessante sobre o tema. O doutor dos Advogados e dos Médicos não tem nada a ver com Doutor9título acadêmico). O “doutor” dos Advogados é mais um título honorifico, de cortesia e respeito à Advocacia. Penso que o problema se dá quando determinada pessoa com título de doutorado ou não, passa a exigir tal tratamento. Parabéns pelo embasamento histórico. Poderia indicar alguma bibliografia sobre o assunto?