Decisão do Tribunal de Justiça de Roraima se aplicou a crime ocorrido na própria tribo
O Tribunal de Justiça de Roraima, adotou decisão inédita, de que o Estado não pode aplicar pena prevista no Código Penal a indígena, quando o acusado já sofreu sanção aplicada pela própria comunidade.
O caso trata de homicídio praticado por índio contra outro da mesma tribo, dentro da terra Manoá-Pium, na reserva Raposa Serra da Lua, em Roraima.
O Ministério Público de Roraima ofereceu denúncia com base no artigo 121 do Código Penal brasileiro, recebida pelo juízo da comarca da cidade de Bonfim (RR).
O processo deveria se enquadrar no procedimento do Tribunal do Júri, à qual todo cidadão brasileiro deve ser submetido, nos termos da Constituição Federal, na hipótese de ser pronunciado por crime de homicídio.
Entretanto, as procuradorias federais em Roraima (PF/RR) e especializada junto à Fundação Nacional do Índio (PFE/Funai) – duas unidades da própria AGU, ingressaram no processo como parte interessada. O mecanismo é admissível por ser o réu índio integrado à tribo.
Nos termos do Estatuto do Índio, todo silvícula está subordinado à legislação brasileira, que é uma só. sendo que, no que tange às medidas de restrição de liberdade, em especial a condenação criminal, o juiz da causa deverá, sempre, observar o grau de aculturamento do indivíduo e seu grau de entendimento da natureza delitiva do ato praticado – para, então, aplicar a pena.
Por sua vez, o artigo 57 do mesmo Estatuto do Índio, traz implícita vedação à punição dupla, chamada de “bis in idem”.
Com base nesta regra, os procuradores federais alegaram junto à justiça que, pela regra do Estatuto, pode ser “tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou difamante, proibida em qualquer caso a pena de morte”.
Os advogados públicos, então, alegaram, que deveria prevalecer no caso o chamado “direito consuetudinário”, ou seja, os costumes praticados na tribo, os quais deveriam “prevalecer sobre o direito formal brasileiro”.
O juízo concordou com a argumentação e o Ministério Público de Roraima, então, apelou ao TJ/RR. A Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Roraima, em grau de recurso, concordou com os argumentos da AGU.
Segundo a decisão, se o crime foi punido conforme os usos e costumes da comunidade indígena, os quais são protegidos por força do art. 231 da Constituição, “desde que observados os limites do art. 57 do Estatuto do Índio, que veda a aplicação de penas cruéis, infamantes e a pena de morte, há de se considerar penalmente responsabilizada a conduta do apelado”.
Punição célere e eficaz
De fato, o índio havia sido julgado e punido pela própria tribo. No entanto, a forma de punição é bem diversa.
Na cultura indígena, a maioria das sanções aplicadas nestas situações não são caracterizadas por privação da liberdade. Os índios entendem que o cárcere retira uma força de trabalho da comunidade, de modo que são aplicadas outras medidas sancionatórias.
No caso e questão, as lideranças das comunidades Anauá, Manoá e Wai Wai impuseram conjuntamente ao índio homicida, dentre várias outras, a sanção de remoção, ou seja, o exílio do índio da comunidade Manoá por cinco anos, e sua condução à convivência com o povo Wai Wai, período no qual ele deverá prestar trabalho comunitário e cumprir o regimento interno do povo Wai Wai. O índio também não poderá comercializar nenhum produto sem permissão da tribo onde estará instalado. Deverá aprender a cultura e a língua dos Wai Wai e submeter-se à disciplina deles.
O julgamento foi célere mas complexo. Em deliberação anterior, do conselho da comunidade indígena do Manoá, outras ações já haviam sido impostas, como a construção de uma casa para a esposa da vítima e a proibição de se ausentar da região sem permissão da tribo. Todas as medidas foram aplicadas tendo como base a autoridade, o uso e os costumes indígenas.
Ao que tudo indica, foram e são medidas eficazes.
O condenado não terá vida fácil.
O povo Wai Wai possui estrutura cultural bastante rígida, a ponto de não ter sido abalada sequer pela introdução da religião cristã pelos missionários protestantes.
Os Wai Wai constituem poucos milhares de índios, espalhados em algumas aldeias entre a Guiana, Roraima, Amazonas e Pará. Sua estrutura é firmemente patriarcal, a ponto dos genros serem admitidos à famíla e ficarem subordinados ao sogro, até a sua morte.
Apenas gradativamente o genro ganha mais independência. Passa a ter sua liderança reconhecida quando se torna sogro, com o direito de exigir os mesmos deveres.
Líderes procuram manter tanto seus filhos quanto seus genros perto de si. Eles necessitam uma esposa e caso ela morra, devem casar-se novamente ou abandonar a posição de liderança.
O controle social nunca se dá por força física, mas por persuasão, pressão da opinião pública e, de modo significativo, por fofoca. Ou seja, há um controle social com grande grau de subjetividades e idiossincrasias naturais da convivência social.
Qualquer desacordo é mediado por sofisticados meios de negociação – como, exemplarmente, o diálogo ritual que conhecido por Oho (que impressionou pesquisadores como Fock nos anos 1950) e outras medidas indiretas.
O medo de feitiçaria sempre serviu como meio de controle. Porém, atualmente os pastores chamam a atenção dos convertidos à religião cristã para o “castigo de Deus” em caso de conduta considerada inadequada – cujo efeito, em termos objetivos, é o mesmo…
Em casos sérios o conselho formado pelos líderes (tuxawas, líderes de trabalho – onde se inserem também pastores) promove longos encontros com todos os envolvidos em busca de soluções.
Algumas disputas chegam a ser discutidas publicamente na umana, a grande casa cerimonial onde também são celebradas festividades conjuntamente.
Caso inédito – demanda antiga
O caso, para o judiciário brasileiro, foi inédito
Segundo o procurador federal Danilo Gouveia de Lima, que atuou no processo,”pela primeira vez, a Justiça interpretou o artigo 57 do Estatuto do Índio à luz do artigo 231 da Constituição Federal de 1998, para conferir às comunidades indígenas autonomia no campo jurídico-penal, seguindo precedentes do direito comparado, aplicado nos EUA e na Guatemala”, destacou.
Gouveia de Lima explicou que a atuação da AGU no caso, pautou-se pelas regras legais e pelas prerrogativas que conferem aos procuradores federais a defesa dos interesses indígenas em juízo, inclusive na área criminal.
De fato, a demanda por reconhecimento do direito construído pelos costumes indígenas, em terras indígenas, é antiga e consta no rol de reivindicações produzido pela organização Brasil 500 Anos, formada por lideranças indígenas por ocasião da Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992.
Naquela ocasião, foi elaborada uma Carta dos Povos Indígenas, com o apoio da Subcomissão de Meio Ambiente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, em que se reivindicava a formação, nos moldes da Constituição Federal, de um amplo território indígena, que adotaria mecanismos de decisão e autoridade mesclados, porém integrados à soberania do Brasil. A idéia, por óbvio, foi engavetada nos escaninhos do governo federal, no entanto, começa a produzir, tardiamente, seus frutos.