Que a lembrança de Caxias sempre nos sirva de exemplo
Por General Maynard Santa Rosa e Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Alma de Soldado
Soldado sem alma é mercenário.
O soldado verdadeiro é um guerreiro com alma, movido pelo ideal e o firme propósito de fazer o bem a serviço da Pátria.
Servidão militar é sacerdócio. Supera o bom intento do cidadão patriota pelo excepcional compromisso do sacrifício da própria vida, no exercício de sua missão.
Tendo por horizonte a paz e por obstáculo a violência, o soldado verdadeiro se subordina à rígida disciplina no cumprimento do dever, alimentado pela moral e pela grandeza que nasce da lealdade, da fé, da dignidade e da abnegação diuturnamente praticadas.
O Pacificador
No Brasil, essa verve valorosa é celebrada no dia 25 de agosto, data de aniversário de Luis Alves de Lima e Silva, o Duque de Caxias, patrono do Exército e paradigma do soldado brasileiro.
O soldado é a flor de toda Nação. O fio da espada que firma a soberania.
Vivemos, no entanto, tempos difíceis, assistindo com tristeza à imagem da nossa Força enredada em conflitos de interesses estranhos ao seu perfil histórico.
Nesse fluxo rumo à entropia, a memória se perde e, com ela, se esvaem os valores.
Justamente por isso, cabe relembrar o exemplo de força moral e consequente expressão política, legados pelo Duque de Caxias, o Marechal Pacificador, na sua gloriosa carreira militar, crucial para os destinos do Império e imperecível na memória das gerações futuras.
Vale aqui resgatar o homem, as circunstâncias históricas e as lições expressadas no exercício do comando.
A Guerra do Paraguai
No natal de 1864, o Brasil sofreu violenta agressão, com a invasão do território por forças Paraguaias ordenada pelo ditador Solano Lopez.
A tragédia maior ocorreu na província de Mato Grosso – vitimada por uma cruzada de violência, saques, estupros e brutais execuções. A Argentina também foi invadida, com inusitada violência, pois Solano Lopez visava atingir o Uruguai, que acabava de livrar-se de uma guerra civil por ele incitada, visando dar apoio a seus aliados. Daí a causa da Tríplice Aliança, costurada para pacificar a região e sopesar o expansionismo do dirigente paraguaio.
O avanço militar paraguaio foi surpreendente, tanto que as forças aliadas, improvisadas após a surpresa fatal, só conseguiram operar uma reação em abril de 1866, e sem grande êxito, dado o desconhecimento do terreno – um verdadeiro atoleiro – o melhor preparo das tropas paraguaias e as enormes dificuldades de abastecimento naquela região remota.
O Brasil, duramente atingido, face ao fracasso da reação inicial, com seu povo e a côrte apelidados por Solano Lopez de “macaquitos”, foi obrigado a digerir uma crise política originada no gabinete do Imperador.
Em outubro de 1866, o Partido Conservador, então na oposição, responsabilizava o Partido Liberal, no poder, pelos rumos incertos do conflito, após o desastre ocorrido na Batalha de Curupaiti. Neste contexto, o General Luís Alves de Lima e Silva, que também era Senador pelo Partido Conservador e um reputado comandante pacificador, foi instado e aceitou o comando das tropas do Império.
Lima e Silva lutou na Guerra da Independência, nas Províncias Cisplatinas, na defesa do Império face às rebeliões e na Guerra da Confederação contra a Argentina, em 1851. Foi instrutor militar do jovem Imperador Pedro II e já presidira o próprio Conselho de Estado. Era, portanto, um militar sexagenário e muito respeitado.
Conservador a serviço de liberais, Lima e Silva sobrepôs o interesse da pátria às próprias preferências partidárias, ao aceitar o arriscado comando das operações no Paraguai, naquela conjuntura.
Contrariamente ao ímpeto propagandístico, ciente do estado lastimável em que as forças aliadas se encontravam no teatro de operações – atoladas no lamaçal do charco e carentes de suprimentos, o General Lima e Silva procedeu à grande transformação da força terrestre, de uma tropa de convocados da Guarda Nacional e “voluntários da pátria” em quase completa desordem, para um Exército operacional.
Com o propósito de impor a camaradagem, a lealdade, a disciplina, o compromisso e a fidelidade à missão, o velho general literalmente organizou a intendência, a logística, o abastecimento, os uniformes, a comunicação e as unidades de comando.
Em um ano e quatro meses de trabalho leal, Lima e Silva restabeleceu a higidez e o moral da tropa e, em 1867, assumiu o comando geral das forças aliadas no teatro de operações.
O dever vence a intriga
Essa trajetória de Lima e Silva não ocorreu de forma pacífica.
Em que pese respeitado no campo de batalha, o grande general viu-se enredado em intrigas no gabinete e objeto de reportagens difamatórias numa imprensa majoritariamente liberal, que nem sempre estava a serviço da verdade (e que, no entanto, durante o Império de Pedro II, sempre atuou com plena liberdade).
Sua atividade irretorquível, sob um governo que lhe era hostil, por óbvio contrariou interesses e gerou ciúmes. De tal modo que lhe faltou o apoio necessário do gabinete, além da quebra do respeito que lhe era devido como comandante-em-chefe no próprio Ministério da Guerra.
Nesta circunstância, destaca-se a dignidade do soldado, honrando o Comando que lhe foi confiado. Cercado por intrigas palacianas – dignas do fisiologismo corrente nos áulicos da Capital, o futuro Duque de Caxias foi peremptório, ao declarar em bom tom: “Com este ministro, eu não fico!”
O ultimato ecoou no Conselho de Estado do Império, onde o voto de minerva de Nabuco de Araújo expressou o dilema liberal: “É um funesto precedente para o sistema representativo a demissão do ministério por imposição de um general”.
O Conselho de Estado era o órgão que aconselhava o Imperador em questões relacionadas ao Poder Moderador e ao Poder Executivo. O chefe de Estado precisava da aprovação do Conselho para declarar guerra, negociar a paz e nomear senadores. Nabuco de Araújo foi uma das principais lideranças do Partido Liberal e integrante ativo do Conselho.
Lima e Silva estava respaldado pelos fatos, e o gabinete não teria forças para afastá-lo do comando sem sucumbir à impopularidade, à desestruturação de uma força terrestre pujante que ombreava com a Armada nacional e, por consequência, à fatalidade do prolongamento da própria guerra.
Submetido o caso ao Imperador, prevaleceu o discernimento do estadista. Dom Pedro II demitiu todo o gabinete Zacarias de Goes, a 17 de julho de 1868, e deu posse ao gabinete conservador do Visconde de Itaboraí.
Prestigiado, o General Lima e Silva prosseguiu na missão e decidiu a guerra.
Saber dizer não
Derrotado o Paraguai em 1869, com a capital, Assunção, ocupada pelas forças brasileiras, o velho General compreendeu que sua missão estava encerrada. Nos termos doutrinários de Clausewitz, o inimigo estava “desarmado”.
No entanto, o governo havia decidido que não celebraria a paz enquanto o ditador Solano López permanecesse livre – razão pela qual a perseguição prosseguiu até a morte do dirigente paraguaio, em março de 1870.
Aqui vem mais uma lição de dignidade moral. O já Marechal Lima e Silva, então ordenado Marquês de Caxias, pela graça do Imperador, compreendeu que a vitória estava consumada, sendo o prosseguimento uma caçada policial, incompatível com a natureza de uma missão militar.
Preferiu, assim, a dignidade da missão às honrarias do comando e declinou do cargo.
Embora o Imperador não tenha concordado com a sua exoneração, ele passou o comando assim mesmo e regressou ao Brasil. Na chegada ao porto do Rio de Janeiro, aguardava-o tão somente a própria esposa, a Marquesa de Caxias.
Terminado o confronto, Lima e Silva foi ordenado Duque de Caxias, o único brasileiro a possuir esse título de nobreza na história do Império.
Um exemplo
Nisto se resume o simbolismo de Caxias, arquetípico da vocação do militar brasileiro, fazendo evocar o juramento de sacrifício das próprias conveniências em prol da dignidade da sua missão.
Que sirva a lembrança de Caxias de inspiração aos verdadeiros soldados, honrando a farda que vestem, nesta e nas futuras gerações.
General de Exército Maynard Marques de Santa Rosa é oficial reformado do Exército Brasileiro, formado pela Academia Militar das Agulhas Negras (Resende/RJ), tendo servido em 24 Unidades Militares do Território Nacional durante 49 anos de atividade na carreira. Possui mestrado pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Rio de Janeiro e doutorado em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, também do RJ. No exterior, graduou-se em Política e Estratégia, em pós-doutorado no U.S. Army War College (Carlisle/PA, 1988/89). Foi Ministro-chefe da secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE), no Governo Bolsonaro (2019).
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Fundador do escritório Pinheiro Pedro Advogados, é Diretor da AICA – Agência de Inteligência Corporativa e Ambiental, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB, membro do Conselho Superior de Estudos Nacionais e Política da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, é Coordenador do Centro de Estudos Estratégicos do Think Tank Iniciativa DEX. Pinheiro Pedro preside a tradicional Associação Universidade da Água – UNIÁGUA, e é Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. Como jornalista é Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 28/10/2024
Edição: Ana Alves Alencar
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