Por Simone Silva Jardim
A amabilidade e o tom de voz calmo e amistoso são marcas pessoais do desembargador Alvaro Lazzarini. Diante de numerosas ou seletas platéias, gente ávida por receber, dentro e fora do Brasil, seu vasto conhecimento no campo do Direito Administrativo, o desembargador afirma, sem o mínimo traço de arrogância ou autoritarismo, que adota a política de “tolerância zero” com a expressão talvez, preferindo dar respostas orientadas pelo sim ou pelo não sempre que é chamado a emitir opiniões sobre assuntos de seu domínio.
“É melhor o erro, que permitirá a pronta crítica ou correção, do que a semiverdade, que encobre a análise objetiva dos fatos”, justifica o desembargador, que exerceu a magistratura por mais de quatro décadas e, no último dia 7 de julho, ao completar 70 anos, aposentou-se por determinação legal. Ele declara em seguida, em seu estilo sem rodeios, que a insegurança jurídica tem rondado a aplicação do direito ambiental em nosso País. “Defendo o modelo da Justiça Eleitoral, muito próxima do cidadão e movida pelo princípio da celeridade, como o melhor caminho para as decisões, na esfera judicial, sobre questões ambientais”, assevera Lazzarini, que foi vice-presidente e corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo.
Com uma passagem das mais brilhantes pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde, por 23 anos, proferiu votos em mais de 25 mil acórdãos (decisões colegiadas em segunda instância), Álvaro Lazzarini acumula muitos outros méritos, a exemplo da docência superior de 30 anos. “Essa minha docência, em verdade, é a mais abrangente possível no campo do Direito Administrativo, pois não cuida somente de graduar alunos e, sim, de formar uma verdadeira elite de administradores públicos, destinados ao gerenciamento, em alto nível, da ordem pública em nosso País”, avalia.
Atualmente, o desembargador Lazzarini orienta pós-graduandos na Academia da Polícia Militar do Barro Branco (SP). Aliás, foi nessa conceituada instituição que se formou cadete, em 1957. Em seguida, conquistou a patente de tenente e, em 1965, foi aprovado no concurso da magistratura, iniciando sua atividade jurisdicional na comarca de Santo André.
“Na época em que ainda cursava a faculdade de Direito da Universidade Católica de Campinas, apaixonei-me pela vasta temática do Direito Administrativo. De lá para cá, dei ênfase ao estudo do poder de polícia, afinal, eu era fascinado pelo meu trabalho na PM. Em 1965, fui convidado para inaugurar essa cadeira na Academia do Barro Branco e para minha grande satisfação, doze anos atrás, ao lado dos amigos major Militão Mota, capitão Mele e o advogado Antonio Fernando Pinheiro Pedro, criamos a cadeira de Direito Ambiental, com a nobre função de abordar entre os jovens oficiais a garantia dos interesses da coletividade em relação às questões ambientais”, recorda Lazzarini, que é membro da International Association of Chiefs of Police (USA).
O desembargador Alvaro Laz-zarini recebeu a reportagem da revista Ambiente Legal em sua espaçosa casa, em um bairro nobre da capital paulista, onde abordou aspectos de Direito Administrativo que provocam sérias polemicas ao exercício do poder de policia nas questões ambientais. Nos dois livros mais recentes de sua autoria, Estudos de Direito Administrativo e Temas de Direito Administrativo, ambos publicados pela Editora Revista dos Tribunais, essa temática é exaustivamente tratada.
Ao final do encontro, o desembargador Lazzarini fez uma surpreendente revelação sobre sua esposa, a cantora lírica Heidí Alves Lazzarini, morta em 2003, cujo talento artístico ainda hoje é alvo de homenagens públicas – praças, escolas e até um parque ecológico localizado na cidade de Guará, interior de São Paulo, levam seu nome.
“Ela realmente era muito especial. Sua cumplicidade era tamanha que, apesar de não ter formação em direito, sabia mais sobre poder de polícia do que eu mesmo”. Todos rimos, mas o comentário final do desembargador foi que ele não estava brincando.
Ambiente Legal – Em matéria de poder de polícia, o senhor é considerado o maior estudioso de nosso País. O que vem a ser esse instituto jurídico?
Desembargador Alvaro Lazzarini – O poder de polícia deve ser compreendido como um conjunto de atribuições da Administração Pública tendente ao controle dos direitos e liberdades das pessoas, naturais ou jurídicas, inspirados nos mesmos ideais do Bem Comum. Esse poder de polícia, por essa abordagem, tem claras limitações não só naquilo que se pode dizer ser o Bem Comum como também na legislação em geral e, em especial, na Carta Fundamental do Estado. O poder de polícia, sendo exercido segundo os ideais do Bem Comum, contribui em muito para a segurança nacional. E convém lembrar que, embora seja o direito individual relativo na sociedade, nem por isso será o direito do Estado absoluto, certo que da conciliação de ambos resultará o destino da liberdade e da vida na face da Terra. A importância desse instituto no Direito Ambiental, ramo dos mais importantes e polêmicos do Direito Administrativo, é muito grande, pois nessas ultimas décadas impôs novos desafios conceituais aos doutrinadores.
AL – O senhor sustenta que há, no poder de polícia, uma dicotomia que interessa à preservação do meio ambiente, mas que, ao mesmo tempo, pode levar a abusos de autoridade, por excesso ou desvio de poder, na aplicação do direito ambiental. Explique melhor.
DAL – Esse poder, com efeito, se concretiza em duas atividades: a de polícia administrativa e a de polícia judiciária, ambas presentes na temática do direito ambiental. A polícia administrativa, propriamente dita, é preventiva, regida pelas normas e princípios do Direito Administrativo, enquanto a polícia judiciária é repressiva, exercendo atividades administrativas de auxiliar da repressão criminal. A polícia judiciária, necessário é insistir, não integra o Poder Judiciário, nem como órgão administrativo. Em tema de meio ambiente, por exemplo, os órgãos licenciadores, como os do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, IBAMA, e, ainda, os da Secretaria de Estado e Meio Ambiente, exercem típica atividade de polícia administrativa – dando o consentimento de polícia ou negando-o, dando suas ordens de polícia e, ao falhar todo o mecanismo, verificada a infração às normas da legislação ambiental em vigor, aplicando as sanções administrativas de polícia ambiental nos limites de suas competências. A dicotomia entre as atividades da polícia administrativa e da polícia judiciária tem gerado confusão não só no espírito dos leigos, como também no do legislador; bem como disputas entre entes estatais, autárquicos fundacionais e paraestatais e, ainda, entre órgãos policiais, que não se acomodam nos limites de suas competências institucionais e, assim, nos limites do poder de polícia. Tudo em prejuízo do administrado que quase sempre acaba por sucumbir aos abusos de autoridade, por excesso de poder ou desvio de poder, como é comum na Administração Pública em geral, inclusive no manejo do direito ambiental.
AL – Por isso o senhor costuma afirmar que não é o “rótulo” do órgão público que qualifica a atividade de polícia?
DAL – Sim, o que demonstra que a linha de diferenciação entre o que seja polícia administrativa e polícia preventiva é bem precisa, porque dependerá sempre da ocorrência, ou não, de um ilícito penal. Essa distinção é importante em termos de competência administrativa para os atos previstos na legislação ambiental, lembrando-se a propósito, algo que os órgãos envolvidos no Sistema Nacional do Meio Ambiente, SISNAMA, esquecem, o que origina conflitos de atribuições. A primeira condição de legalidade é a competência do agente. Não há em Direito Administrativo competência geral e universal. A lei preceitua, em relação a cada função pública, a forma e o momento do exercício das atribuições do cargo. Não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a norma de direito. A competência é, sempre, um elemento vinculado e objetivamente fixado pelo legislador.
AL – Na magistratura, o senhor foi vice-presidente e corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Estado de São Paulo e eleito, por aclamação, presidente do Colégio de Corregedores dos Tribunais Eleitorais do Brasil. Há vários pronunciamentos públicos de Vossa Excelência propondo que o modelo da Justiça Eleitoral seja adotado no julgamento de matéria ambiental. É por causa da celeridade do processo e da especialização dos juizes?
DAL – A Justiça Eleitoral é muito próxima do cidadão, é codificada, especializada e movida pelo princípio da celeridade, fundamental para o enfrentamento de muitas questões ambientais que exigem decisões rápidas e certeiras. Façamos um paralelo. Todo ano se repetem os problemas de propaganda política afixada em lugares proibidos, como pontes, viadutos, pontos de ônibus e floreiras. É um desrespeito a toda a sociedade e, também, uma forma grave e ostensiva de poluição ambiental. Em 2002, criei no TER paulista um sistema, on line, de denúncia muito usado pelo cidadão. Em 2004, mandávamos os políticos retirarem as faixas e cartazes irregulares no prazo de 24h, sob pena de ser remetida representação ao procurador regional eleitoral, sem prejuízo, é claro, de eventual enquadramento na Lei de Crimes Ambientais e sanções administrativas aplicadas pela prefeitura. Os políticos ficaram muito incomodados e um certo vereador, que tinha faixas espalhadas por vários viadutos e pontes da capital, reclamou porque foi encaminhado diversas vezes para a delegacia. Endurecemos, mesmo. É uma afronta esse tipo de poluição e se o Poder Público age com prontidão, outros que fariam o mesmo ficam inibidos, pois têm a certeza da punição. Do meu ponto de vista, esse modelo é hoje o que temos de mais eficiente e eficaz para tratar da matéria ambiental com a celeridade e especialização que ela demanda.
AL – O senhor também encontra opositores ao defender a urgente necessidade de, no mínimo, consolidar a profusão de leis ambientais hoje existentes em nosso ordenamento jurídico e, também, coloca-se à frente de um movimento que quer ir ainda mais longe: codificar o Direito Administrativo e o Direito Ambiental.
DAL – Eu estudo essas matérias diariamente e há muitos anos, mas confesso que ainda sinto dificuldade de responder prontamente muitas das indagações às quais sou submetido. O cidadão comum ou aquele profissional, como arquitetos e engenheiros, sem contar os jovens operadores do direito, perdem-se nesse emaranhado de leis e se perguntam o que está em vigor e qual a interpretação mais correta das leis que lhes interessam. A codificação do Direito Administrativo e do Direito Ambiental seria, sem dúvida, a situação ideal, mas um trabalho de grande fôlego estaria por trás desse empreendimento, a ser realizado por uma comissão de especialistas. A consolidação já daria um certo respaldo, mas por si só não supera a insegurança jurídica que temos hoje na aplicação do direito ambiental. Há julgamentos subjetivos, sim, entre juízes de primeira instância desprovidos desse conhecimento. Daí a importância de se criarem varas especializadas, pois já existe um volume muito significativo de processos a exigir tratamento diferenciado. No TJSP atendemos a esse clamor da sociedade ao criar a Câmara Ambiental, composta por desembargadores com reconhecido saber sobre essa complexa matéria. A verdade é que temos pontos ainda vulneráveis no que tange à atividade jurisdicional em matéria de meio ambiente.
AL – Mas há quem diga que a codificação impõe uma estagnação ao direito, o que vai de encontro ao dinamismo das necessidades da sociedade.
DAL – A segurança jurídica é o bem maior e entendo que a codificação melhor atende a esse objetivo, pois permite o melhor funcionamento do Poder Público e confere coerência a um detalhe que não podemos perder de vista: a Lei de Introdução ao Novo Código Civil determina que ninguém pode alegar ignorância da lei. Como o cidadão pode ter esse prévio conhecimento se se vê diante de um emaranhado de leis? Por isso há tantos processos, em tese, desnecessários, no caso de os envolvidos terem agido sem realmente saber quais eram, na situação concreta, seus direitos e deveres. Também é importante notar que a codificação não é feita apenas uma vez na vida; ela demanda atualizações periódicas para não sofrer algum tipo de engessamento.