Um mapa e um rumo para a Amazônia
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro*
Como se sabe, integrei a equipe que se encarregou de traçar um plano de transição para a gestão ambiental do governo Bolsonaro, convidado que fui pelo professor Evaristo de Miranda.
Como encarregado de elaborar uma ação estruturante para a o SISNAMA-IBAMA, com a colaboração dos colegas e apoiadores, apresentei minhas conclusões e sugestões, cujas notas são de conhecimento público, constam em vários sites e encontram-se em linhas gerais integradas em um artigo meu já publicado.
Posteriormente, a pedido do ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles, elaborei nota técnica sugerindo alterações no sistema de implementação do tratado de mudanças climáticas, abrangido pela Lei de Política Nacional de Mudança do Clima – PNMC, cujo grupo de trabalho em apoio à relatoria do PL (Deputado Mendes Thame), tive a honra de coordenar na década passada.
Passados um ano em meio de gestão do atual governo, não só nada do que foi analisado e apresentado foi lido ou implementado, como o que ainda poderia funcionar foi simplesmente esfacelado.
Do Sisnama, hoje, o que se observa é um organismo que reage espasmodicamente apenas quando a cabeça do gestor é posta a premio. No entanto, se ainda há algo que esteja funcionando no controle ambiental do governo federal – esse algo é a própria estrutura do SISNAMA. Uma contradição que por si só se explica.
Sistemas legais sobrevivem a interesses políticos de ocasião
Como apontei em recente artigo, sobre o que mantém funcional a gestão da saúde pública no Brasil (“É o SUS, Estúpido!”), as atividades de governança formatadas em políticas públicas – baseadas em princípios e objetivos estratégicos e mantidas por um sistema legalmente estruturado, são as que sobrevivem a desastres governamentais e sustentam bons governos.
Essa lição já foi aprendida no Brasil, e os que a aplicaram construíram coisas que permaneceram para a posteridade. Foi aplicada pelos governos militares, no período de Juscelino e Jango, e em alguns raros momentos da Nova República. Os que a aplicaram, prestigiaram o planejamento e pavimentaram o desenvolvimento econômico nacional – obtido por meio de sistemas de governança e instituições legalmente instituídas, que saíram do texto legal para a gestão de recursos humanos e a engenharia organizacional.
Assim foi e é com o Sistema Nacional de Viação – elaborado pelos militares em 1973 – com o PNV, resgatado no PAC de Lula e reestruturado em 2011, no Governo Dilma – já com o apoio do atual Ministro Tarcísio, de Infraestrutura.
Assim também foi, e é, com nossa agricultura e pecuária, desenvolvida no tripé das legislações que criaram os vários institutos que atenderam à produção de nossas commodities, desde o final do Século XIX. Sistematizado territorialmente no Estatuto da Terra, de 1964, instrumentalizado cientificamente com a Embrapa em 1972 e institucionalizado em 1991, com a lei de Política Agrícola – o AGRO, tão bem conduzido pela Ministra Tereza Cristina, segue de vento em popa, puxando o barco da economia nacional.
Como já dito, também o é com o Sistema Nacional de Saúde, cujo SUS carrega nas costas, com todas as dificuldades mas com muita dignidade, toda a enorme demanda de saúde pública, incluso a criada nos tempos de pandemia.
Não é diferente com o Sistema Nacional de Meio Ambiente – instituído sob o mesmo espírito organizacional e de planejamento, em 1981, no Governo Figueiredo, construído nesta mesma década por gestores da estatura de Paulo Nogueira Neto e Ben-Hur Batalha e revigorado nas décadas seguintes, com várias outras políticas públicas sendo atribuídas à sua gestão estrutural.
Castigado por sucessivas gestões ministeriais preocupadas com o proselitismo político, com a promoção pessoal e com o oba-oba internacional – muito mais que com a Segurança Ambiental e a soberania do país, o SISNAMA sobreviveu no aguardo de uma gestão que restaurasse suas funcionalidades. No entanto, a frustração foi grande…
A síndrome de Janus e a lawfare à vista
Agora, o governo claramente perdeu o rumo desse sistema, e isso ocorreu por absoluta ignorância de seus operadores atuais – que parecem não ter se debruçado o suficiente para compreender o sistema e fazer a lição de casa. E não há desculpa para isso, porque a lição de casa foi feita no período de transição – bastava executá-la, com método, transparência e disciplina.
Como se viu, o improviso e a necessidade de protagonismo… foi um verdadeiro desastre.
Não é necessário repetir a sucessão de problemas graves enfrentados pelo governo no campo ambiental, desde o ano passado. Basta verificar que a sucessão de problemas resultou praticamente numa nova Síndrome de Janus governamental – como se não bastasse termos constatado essa mesma síndrome acometer nosso presidente, levando ao embate opondo a ala ideológica à ação de governança – gerando conflitos no próprio palácio do planalto.
No caso da gestão ambiental, temos um ministro desprovido de qualquer interlocução, seja com o próprio sistema seja com os stakeholders nacionais e internacionais. Visando resgatar a credibilidade do governo, o Presidente da República conferiu ao seu Vice, General Mourão, o comando da operação de garantia da Lei e Ordem na Amazônia, a presidência do Conselho da Amazônia e a gerência da crise ambiental em curso na região.
Com isso, o governo federal na Amazônia Legal passou a ter dois rostos. A solução não é boa. Na verdade ampliou a desconfiança com relação ao que será feito em prol do controle da degradação no bioma mais rico, mais cobiçado internacionalmente, e mais sensível do planeta.
A reação ocorre agora nos três poderes, senão vejamos:
1- O Poder Executivo busca uma saída estruturante que concilie o interesse político na manutenção do ministro Salles à frente do Ministério – até porque é alvo de inúmeras ações que fragilizam todo o governo, com a maior autonomia financeira e operacional do General Mourão e seu conselho na Região Amazônica;
2- O Poder Judiciário foi engajado em uma verdadeira LAWFARE contra o governo federal, promovida por organizações ambientais e partidos políticos de oposição, que ingressaram com ação na Justiça Federal do Amazonas contra o Ibama e duas ações diretas de inconstitucionalidade contra o governo federal no Supremo Tribunal Federal (STF), pelo não uso de recursos públicos do Fundo Clima e do Fundo Amazônia. Eles também acusam o governo federal e o Ibama de omissão sobre políticas de preservação do meio ambiente. Houve também apresentação de notícia-crime contra o Ministro do Meio Ambiente. Os partidos protocolaram também o pedido de impeachment de Salles na Procuradoria Geral da República (PGR). No STF, o Ministro Relator – Barroso, já convocou audiência pública para esclarecer os pontos controvertidos da questão;
3- Sob o comando do Presidente da Câmara Federal, Deputado Rodrigo Maia, o Congresso Nacional instituiu uma comissão para instituir uma Agenda Verde Legislativa, que deverá focar na formulação de um novo arcabouço legal que restaure a gestão ambiental do território brasileiro e permita ao País cumprir com os compromissos nacionais e internacionais de proteção dos biomas sensíveis no território nacional.
Na crise, há de se destacar o desastre resultante da fala do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, na qual ele fala em aproveitar o foco da imprensa na cobertura da pandemia de Covid-19 para “ir passando a boiada”. Preocupante também as evidências de descontrole territorial advindas não apenas do desmatamento clandestino como, também, das ocorrências mineração ilegal em curso sob as barbas do governo federal, como o recente caso da garimpagem de ouro em pleno linhão de Belo Monte, com risco para a transmissão de energia que se estende por mais de 2500 quilômetros em direção ao centro e sudeste do país.
A articulação desarticulada nos três poderes resultará, fatalmente, em uma lawfare – uma guerra legal sem eira nem beira…
Este o “teatro de operações”, em prol de um resgate do controle territorial na região amazônica, com as circunstâncias e os atores engajados no conflito.
O que fazer?
Tenho conversado com atores envolvidos nas três esferas do conflito acima apontadas e o que sinto, sinceramente, é que há uma névoa envolvendo os navegadores, que singram o mar dos conflitos sem um mapa e sem bússola – orientados apenas pela viuvez do passado, a revolta do presente e o medo do futuro.
Nesse sentido, o naufrágio será certo.
O que fazer? Ora… buscar um mapa e traçar os rumos!
1- O Macrozoneamento da Amazônia Legal
Há um mapa, o do Macrozoneamento Ecológico-Econômico da Amazônia Legal, aprovado pelo Decreto nº 7.378, de 1º de dezembro de 2010, fruto de um processo de quase três décadas de articulação, promoção, reformulação e reorientação dos vetores nacionais a que está submetido.
O macrozoneamento tem servido de base para intermináveis sessões de masturbação mental e discussões acadêmicas visando “problematizar”, “contextualizar” e “orientar a condução dos debates” teóricos de projetos e programas concretos, que nunca são implementados por conta da imensa carga de dispersão de energias, ignorância geopolítica e falta de estratégia, que cercam o documento.
Isso se devem em grande parte, pelo Macrozoneamento se encontrar gerencialmente no lugar errado dentro do governo federal: o Ministério de Meio Ambiente. Na verdade, deveria retornar o quanto antes para a Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, dado sua importância.
O documento é exequível – basta centralizar sua execução em uma autoridade que organize as ações junto aos estados federados. Como todo mapa, pode vir a sofrer uma ou outra modificação – mas é um norte. Pode servir para a grande navegação para fora da tempestade em que nos encontramos.
O Macrozoneamento Ecológico-Econômico é filho dileto do Projeto RADAMBRASIL, estabelecido nos anos 1970, que buscou mapear sistematicamente o País, incluindo uma avaliação do potencial dos recursos naturais da Amazônia.
O Radam gerou uma coletânea de mapas temáticos e relatórios que constituíram uma rica base de dados físicos e bióticos até hoje utilizada – e que subsidia diversas iniciativas de ordenamento territorial.
O Radam foi uma iniciativa em prol da soberania brasileira – por isso o Macrozoneamento deve se consolidar como um marco em prol da nossa soberania – pois expressa nosso controle territorial.
O Macrozoneamento contém os três instrumentos de implementação do controle territorial preventivo, sem o qual o licenciamento de atividades e a fiscalização tornam-se inócuos:
O inventário e mapeamento, o planejamento integrado e o ordenamento espacial – vistos nesta ordem, um como decorrência do outro – respeitando a vontade política ditada pelo governo federal, já articulado com os estados federados – posto que representa a unidade nacional.
Debruçados sobre o mapa, poderemos visualizar com toda a tranquilidade os limites estratégicos, a compatibilidade das atividades atuais e as que serão planejadas na região. O Mapa ditará, também, a natureza e a forma de cada ação de intervenção necessária para expressar o efetivo controle espacial do Estado Brasileiro sobre a economia que se processa no bioma.
Assumindo o Macrozoneamento, acabaremos com a lenga-lenga dos intermináveis discursos sobre as “necessidades do povo carente da região”, a “defesa dos povos da mata”, “a fronteira agrícola” e as “demandas por energia, saneamento e terra”… que surgem oportunisticamente para justificar mal feitos ou obstruir o que de bem feito se queira fazer.
Não que os problemas não existam – na verdade sempre existirão. Mas, com efeito já se encontram legalmente equacionados!
Sigamos portanto, com o que foi analisado e reanalisado por décadas… e só demanda aplicação.
Nada de inventar a roda!
2- O SISNAMA – Sistema Nacional do Meio Ambiente
Feito isso, é hora de organizar o SISNAMA.
A mesma Lei que instituiu a necessidade do Zoneamento Ecológico-Econômico, também instituiu o Sisnama: a Lei 6.938 de 1981, de Política Nacional do Meio Ambiente.
Assim, é hora de simplesmente implementar a lei, a começar da necessidade premente de se colocar no sistema a cabeça que nele é demandada pela lei desde sua promulgação: o Conselho de Governo!
O Sisnama precisa parar de ser uma “mula se cabeça”… com um cerebelo com problemas de funcionamento – que é o CONAMA. A falta de um Conselho Superior, de Governo, joga a economia nacional aos leões constituídos pelas crises cíclicas nas quais o ministério do meio ambiente e seu CONAMA se envolvem.
O Conselho de Governo é que deve estabelecer as direções estratégicas, ditar as políticas públicas e orientar o rumo da política ambiental, que será seguida pelo SISNAMA, com diretrizes e orientações ditadas pelo CONAMA. Hoje, por não ter um Conselho de Governo ativo, o CONAMA torna-se alvo de conflitos que não deveriam a ele dizer respeito.
As correções implantadas na gestão Bolsonaro, visando reduzir o CONAMA, embora adotadas no rumo correto, expuseram a “vontade política” do ministro de plantão, quando na verdade isso não ocorreria se sobre o Conama houvesse um conselho de ministros e do presidente que explicitassem a política a ser adotada no setor.
No cerne da execução do sistema, é necessário resgatar o debate para buscar a reunião do ICMBio com o Ibama.
Essa bifurcação, se mantida, continuará a enfraquecer o Ibama e a a obstruir o ICMBio.
As razões para tornar a unificar os dois institutos em um só são notórias – basta ver todos os conflitos ocorrentes desde então com relação à fiscalização na Região Amazônica…
Outra questão é a de parar de querer confundir o analista ambiental com RAMBO. A fiscalização no século XXI deve ser focada na tecnologia, no monitoramento espacial e em operações planejadas com apoio de força policial requisitada, ou articulada.
A mistura de atribuições com a formulação de um quadro de carreira que não distingue a engenharia da fiscalização de campo, a pesquisa da execução, por óbvio que favoreceu o aparelhamento ideológico dos dois institutos, fato que deve ser duramente combatido em prol do resgate da gestão técnica do monitoramento e da fiscalização ambiental.
Nesse sentido, é necessário resgatar a operacionalidade do serviço de inteligência do IBAMA – a única entidade fora da segurança pública e do fisco a possuir oficialmente uma inteligência -justamente pela natureza sensível e difusa da atividade do SISNAMA.
Hoje, tudo é muito disperso, tanto no IBAMA-ICMBio como no próprio Ministério, por não haver uma SALA DE SITUAÇÃO – com mapas, dados, relatórios, acompanhamento de satélites, drones, relatos dos demais setores de governo e apontamentos, concentrando o volume de denúncias e atividades infracionais geo processadas, de modo que a autoridade pudesse decidir in loco – não por meio do fluxo interminável de papéis, as ações devidas.
É preciso implantar sistemas ágeis de gestão, caso contrário, o sistema desaba, como de fato já está. A pandemia, nesse sentido, muito auxiliou a administração, com a agilidade do sistema de reuniões virtuais, agendamento eletrônico e formulação de atas e relatórios técnicos com toda a transparência.
Esse sistema, funcionando, possibilitará a adoção da avaliação ambiental estratégica pelas entidades governamentais, sobre os projetos estruturantes de interesse sócio-ambiental, e agilizará profundamente o licenciamento ambiental.
3-Um sistema para a Política do Clima
Por fim, o terceiro eixo, deverá ser o de resgatar a soberania nacional na gestão do clima no território brasileiro.
Resgatar institucionalmente a gestão governamental na implementação do Tratado Quadro de Mudança do Clima e reestruturar seus institutos. Isso conferirá maior energia e musculatura à gestão ambiental e recuperará a credibilidade brasileira no exterior.
Resta examinar, com toda a profundidade, sobre os riscos de se manter o atual ministro, e sobre os riscos advindos da militarização em excesso nas operações levadas a cabo pelo General Mourão.
Assim, tendo por base o Zoneamento Ecológico-Econômico resgatado e aplicado, tendo por estrutura o SISNAMA resgatado e modernizado, atuando tecnicamente com suas funcionalidades, e tendo por interface internacional a afirmação da soberania no cumprimento das medidas de prevenção e resiliência às mudanças globais do clima – com um sistema revisado e operante, será possível transformar essas zonas de conflito e meios para a busca comum de soluções que resultem positivamente para a gestão ambiental brasileira.
Essa é nossa sugestão.
Notas:
1- MMA – “Zoneamento Ecológico Econômico da Amazônia” – in https://www.mma.gov.br/images/arquivo/80253/ZEE_amazonia_legal.pdf
2- PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Notas Sobre o Sisnama e Sobre a Estrutura do Ibama – Uma contribuição para o Governo do Presidente Jair Bolsonaro”, in Blog The Eagle View, in https://www.theeagleview.com.br/2019/01/notas-sobre-o-sisnama-e-sobre-estrutura.html
3- PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “Reposicionamento da Gestão do Clima no Governo Bolsonaro – Uma Proposta”, in Blog The Eagle View, in https://www.theeagleview.com.br/2019/06/reposicionamento-da-gestao-do-clima-no.html
4- PEDRO, Antonio Fernando Pinheiro – “É o SUS Estúpido!”, in Blog The Eagle View, in https://www.theeagleview.com.br/2020/07/e-o-sus-estupido.html
*Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e Vice-Presidente da Associação Paulista de Imprensa – API. É Editor-Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View”. É Consultor Jurídico da Associação Brasileira de Recuperação Energética de Resíduos – ABREN.
Fonte: The Eagle View
Publicação Ambiente Legal, 04/08/2020
Edição: Ana A. Alencar