Pela primeira vez um representante do alto escalão do Ministério do Meio Ambiente fala abertamente, neste artigo exclusivo para Ambiente Legal, sobre o polêmico Projeto de Lei de Gestão de Florestas Públicas.
Por Tasso Azevedo
Em fevereiro de 2006, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei de Gestão de Florestas Públicas. Por trás de toda polêmica levantada, foi tomada uma decisão histórica para o país: florestas públicas brasileiras devem permanecer florestas e públicas.
O Brasil possui a Amazônia, a segunda maior floresta do planeta, que abriga uma imensa diversidade biológica e cultural, além de prover uma expressiva quantidade de produtos e serviços para a sociedade.
Ao contrário do que comumente se imagina, a maioria das florestas brasileiras estão em terras públicas. A Amazônia tem 34% de sua área protegida (terras indígenas, áreas militares e unidades de conservação) e 41% correspondem a áreas públicas não protegidas.
Desde os tempos de Colônia, as terras públicas têm sido objeto de ocupação desordenada, “grilagem” e saque dos recursos naturais, em especial a exploração ilegal de madeira e o desmatamento.
Esse processo histórico, que quase dizimou a Mata Atlântica e avança rapidamente sobre a Amazônia, se enraizou em nossa sociedade e levou a um modelo onde o próprio Estado estimulou a ocupação de terras públicas. Até há bem pouco tempo os órgãos fundiários consideravam o desmatamento como benfeitoria para determinar o direito de posse e os órgãos ambientais aceitavam protocolos de intenção de posse para fins de aprovação de planos de manejo ou autorizações para desmatamento.
Por outro lado, durante a década de 1990 o paradigma de que “desmatamento é desenvolvimento e conservação é proteção e intocabilidade” começou a ser rompido pela possibilidade de se realizar o manejo florestal sustentável, ou seja, promover a conservação das florestas por meio de seu bom manejo, provendo emprego, renda e desenvolvimento com a floresta em pé.
Em agosto de 2003, o IBAMA suspendeu as autorizações de desmatamento e a aprovação de manejo para detentores de posse que não possuíam título, ou seja, encontravam-se ocupando terras públicas. Na esteira desse processo, o INCRA, a partir de 2004, suspendeu a emissão de protocolos de intenção de posse e promoveu o recadastramento de todos os detentores de documentos anteriormente emitidos nas regiões mais críticas da Amazônia.
Ao assumir que a Amazônia é composta de 75% de terras públicas e que 20 milhões de pessoas vivem na região, a pergunta que cabe é: como compatibilizar a sobrevivência e o desenvolvimento socioeconômico com a manutenção da floresta? A resposta a essa pergunta passa necessariamente pela decisão de como gerir as florestas públicas.
No caso, existem três alternativas para o gestor dos bens e serviços públicos: privatizar, fazer a gestão direta ou permitir a gestão indireta (concessões).
A privatização significaria entregar a posse e o domínio da terra para um ente privado. O problema central nessa opção é que a História mostra que a opção mais vantajosa, do ponto de vista financeiro e de curto prazo, é explorar todo o recurso e desmatar, mas essa opção contraria o interesse de longo prazo da sociedade em garantir os benefícios da floresta (produtos, proteção de mananciais etc.). Não é à toa que os países com maior cobertura florestal no mundo têm grandes extensões de florestas públicas.
Uma segunda alternativa seria criar uma “florestabras” e realizar a gestão direta. Contudo, a Constituição Federal do Brasil considera o Estado como ente regulador da economia, portanto, com exceção de áreas especificas definidas na própria Lei Maior (ex. energia nuclear, telefonia e saneamento básico), o Poder Público não pode atuar como interventor na economia. A gestão direta só é permitida no caso das Unidades de Conservação de uso sustentável, onde os órgãos ambientais são responsáveis pela gestão com o objetivo principal de conservação. É o caso das Florestas Nacionais.
Por fim, existe a possibilidade de conceder, por meio de outorga ao particular, o direito de praticar o manejo florestal sustentável, mas desde que mantenha o patrimônio público. Para esse modelo, entretanto, não há previsão legal que permita contratos de prazo compatível com a atividade florestal e com critérios de seleção dos concessionários que incluam aspectos sociais e ambientais.
Foi neste contexto que se elaborou o PL de Gestão de Florestas Públicas. Foram 15 meses para preparação da lei, envolvendo um amplo processo de consulta pública que ouviu mais de 1200 instituições e outros 12 meses de tramitação no Congresso Nacional até sua aprovação, em fevereiro deste ano. A Lei 4776/05 estabelece o marco regulatório para a gestão de florestas públicas, incluindo os instrumentos para sua implementação.
Em síntese, existem três opções de gestão para florestas públicas: criar e manter UCs de uso sustentável, destinar essas áreas para o uso familiar ou comunitário e, após esgotadas as opções anteriores para uma determinada região, realizar contratos de concessão de até 40 anos baseados em processo de licitação pública.
As concessões não implicam em transferência de domínio ou posse das áreas aos particulares, apenas autorizam o bom manejo para exploração de produtos e serviços da floresta. As florestas públicas permanecerão, portanto, sob o domínio do Estado.
Nos mais de 80 artigos da nova lei há uma série de precauções para garantir transparência e controle social, evitar concentração de poder econômico, assegurar acesso aos pequenos produtores e manter a efetiva fiscalização do sistema a ser implantado.
A fiscalização que hoje é função exclusive do IBAMA passará a ser exercida em vários níveis: IBAMA e órgãos estaduais de meio ambiente fiscalizarão o cumprimento das normas ambientais; o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e os órgãos de gestão estadual fiscalização o cumprimento dos contratos de concessão e serão obrigatórias auditorias independentes, no mínimo, a cada três anos.
Nos dez primeiro anos de aplicação da lei – fase experimental prevista nas disposições finais -, aplicados todos os “filtros” previstos, estima-se que haverá 13 milhões de hectares de concessões florestais (3% da Amazônia) e 25 milhões de hectares de florestas destinadas ao uso comunitário e familiar.
O desafio colocado para o Estado e a sociedade brasileira é a implementação e fiscalização desse novo modelo que representa uma mudança radical na forma de encararmos as florestas públicas.
Tasso Azevedo é diretor de Florestas do Ministério do Meio Ambiente