O Factóide da Segurança Pública e a Intervenção Indevida no Campus da USP
Por Antonio Fernando Pinheiro Pedro
O governo do estado e a reitoria da USP promovem mais um conflito desnecessário com professores, funcionários e alunos, em nova tentativa de ocupar impor um policiamento ostensivo no Campus da Universidade de São Paulo. O pretexto, como sempre, é o de combater nova onda de delitos (alguns graves). A “colaboração” entre USP e Secretaria de Segurança Pública, entretanto, esbarra numa muralha de ilegalidades e confusões conceituais. Pior que isso: mascara omissões graves, “bananices” e crises relacionadas a outros desmandos e descontroles territoriais ainda não resolvidos – no que se pode chamar de mais uma vergonha com título acadêmico.
Toda universidade, em qualquer parte do mundo livre, possui guarda própria, trata de cuidar da segurança e zelar pela disciplina em seu campus. A polícia intervém, como deve intervir, sempre que solicitada ou ocorrer delito, e isso não é novidade.
Ocorre que a ineficiente, ineficaz e hiposuficiente administração da Universidade de São Paulo é a única do país a deliberadamente se omitir do dever de zelar pelo Campus, cuidar da disciplina e proteger seus alunos, professores e funcionários.
Pretendendo gozar de privilégio absurdo, a direção da USP quer demandar uma “colaboração” em homens, guaritas, policiamento, convivência disciplinar com alunos, visitas a salas de aula e vigilância do campus junto à Polícia Militar do Estado, paga pelo contribuinte. Quer com isso substituir a guarda do campus – que deveria contratar, treinar, preparar, e integrar – pela PM. Quer confundir a polícia do governo com bedéis e seguranças contratados e, ainda por cima, pretender subsumir a PM à disciplina da reitoria.
Governo e universidade erram clamorosamente ao pretender esse tipo de “substituição”. Demonstram absoluta ignorância conceitual e falta de propósito legal, senão vejamos:
Afinal, o que é segurança pública?
Reza o art. 144 da Constituição Federal que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos e é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio.
Para execução dessa tarefa, a constituição elencou diversos órgãos de polícia.
As organizações policiais passaram a se afeiçoar às atribuições decorrentes da aplicação teleológica da norma legal, cuja natureza hoje se enquadra no campo não apenas do Direito Público e Administrativo (com raiz óbvia no Direito Penal) mas, também, no campo dos interesses difusos. Daí, hoje, assumir a policia uma atitude social mais engajada, técnica, transparente e menos truculenta, traduzida no conceito moderno de polícia-científica, polícia-judiciária, polícia-especializada, polícia ostensiva, polícia-cidadã ou polícia comunitária.
Etimologicamente falando, policiar é o ato de civilizar, zelar pela ordem entre diferentes.
O termo Polícia tem origem em 1791, com a 10a. Constituição da França , onde, sob influência das idéias de Montesquieu, subdividiu-se em duas funções: polícia administrativa (ostensiva, repressiva e preventiva) e judiciária (investigativa, vinculada à atividade da justiça).
A origem da atividade policial como uma extração do Estado, no entanto, é romana. Em Roma Antiga tínhamos legionários, cujas funções de guarda, em virtude de sua natureza, eram divididas em Civita ou Militare. A CIVITA era a guarnição autorizada a protegar os cidadãos romanos, fazer a guarda, manter a ordem e investigar. Ela permanecia nas cidades submetida ao questor e, com o comando deste, atendia também aos pretores (magistrados). Já a força MILITARE, destinada a proteger os cidadãos romanos e os interesses de Roma, como força bélica, ficava aquartelada fora do limite das cidades romanas.
Essa divisão clássica avançou para a subdivisão da “CIVITA” em policiamento ostensivo-administrativo (fardado) e policiamento judiciário – investigativo (à paisana), enquanto a força MILITARE se especializou em força armada de terra, ar, mar e forças especiais.
No Brasil, compete ao policiamento fardado a função destinada a zelar ostensivamente pela segurança e tranqüilidade públicas, de forma preventiva e administrativa.
Rezam os parágrafos 5º e 6º do art. 144 da Constituição Federal:
§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.
§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Campus Universitário precisa de polícia ou segurança?
A função do policiamento ostensivo preventivo, por óbvio, se processa nos logradouros públicos – praças, parques, ruas, avenidas e praias.
O policial deve interferir para reprimir qualquer ação criminosa em andamento, e pode proceder a buscas devidamente autorizadas havendo fundado motivo ou necessidade premente de adentrar em imóveis e locações públicas e privadas. No entanto, obviamente, isso é excepcional.
O que é admitido ocasionalmente, não pode ser admitido permanentemente, de forma perene. Isso fica mais claro ainda, quando se resgata o conceito de reserva legal – que reza cumprir ao funcionário público agir apenas quando expressamente autorizado pela lei.
Não há lei que autorize, por exemplo, o uso da força policial militar, como instrumento de vigilância patrimonial, segurança pessoal e guarda disciplinar em um campus universitário – que deveria prover esse serviço.
Não está escrito em parte alguma que a Polícia Militar tenha permissão legal para se substituir e fazer as vezes da guarda patrimonial, ou executar a vigilância de terrenos de autarquias, como é o caso de um Campus Universitário de entidade pública.
A ocorrência de crime em um campus universitário exige investigação profunda e intervenção pontual dos policiais, civis ou militares, principalmente se há risco de pânico social. No entanto, a presença ocasional da polícia não exime a autarquia de promover ela própria a vigilância e fornecer segurança à integridade física, moral e patrimonial de seus frequentadores, em especial alunos, professores e funcionários.
Ademais, até mesmo o fato de alunos fazerem baderna ou fazerem uso de droga no Campus, antes de ser um caso policial, é fato passível de providência disciplinar. Não é crível que um Reitor de uma universidade que se pretende séria, admita que seus alunos sejam conduzidos à delegacia de polícia antes de serem apresentados, advertidos e sua conduta examinada perante a autoridade universitária. Contrário senso, não se pode admitir que policiais militares banquem bedéis ou vigilantes e conduzam indiciplinados à reitoria, como se constituíssem guarda pretoriana da autoridade acadêmica, e não oficiais da Lei.
Polícia para todos ou para poucos?
Campi de universidades públicas são bens de uso especial. Não se confundem com logradouros públicos ou outros bens de uso comum do povo. Também não são simples bens públicos dominicais. Seu uso especial segue regras próprias, regimentos e estatutos, pois autarquias possuem autonomia administrativa e universidades autárquicas gozam constitucionalmente de autonomia especial.
A Universidade de São Paulo é uma constelação autárquica, formada por várias unidades de ensino, algumas delas anteriores à sua própria formação.
A imensa extensão do campus da USP, leva muita gente a confundir o local com um logradouro público. No entanto é uma imensa área destinada à atividade universitária. Para a administração do Campus, a USP mantém toda uma estrutura que se estende da guarda e vigilânca à prefeitura do campus. A segurança dos prédios universitários, das áreas livres internas, das atividades que ali se desenvolvem é de responsabilidade da administração da universidade – é organizada e paga com os recursos de seu orçamento.
Os policiais militares, portanto, não podem montar guarda permanente, construir guaritas, circular diuturnamente pelas unidades estudantis e centro-acadêmicos, não sendo funcionários subordinados à administração da universidade. Caso isso fosse permitido, a Polícia Militar estaria fazendo as vezes de uma segurança patrimonial privilegiada, em favor de uma universidade, porém em desfavor de toda a comunidade de entorno, que perderia a ação do efetivo engajado na vigilância.
Ademais, há um contrasenso absurdo em relação aos fundamentos da autonomia universitária. A presença de policiais militares em serviço dentro de uma autarquia autônoma, pode gerar absurda situação de duplo-comando ou pior, desrespeito à própria direção da autarquia – pois policiais não se subordinam ao comando da universidade, e nem poderiam.
A polícia militar deveria, se não estivesse atrelada politicamente a um governo que dá mostras de pusilaminidade nessa área, ponderar firmemente junto ao Governador – pois o desgaste será evidente.
Isso não quer dizer, também, que se pretenda manter as coisas como hoje se encontram.
Muito menos se pretende que universitários tenham imunidade para usar drogas dentro do campus, praticar violências de todo tipo. Muito menos continuem a ocorrer delitos.
A norma penal brasileira, que deve ser tutelada preventiva e repressivamente pelo policiamento ostensivo, é universal – vale dentro e fora do campus universitário. Não pode e não deve haver privilégio.
No caso do campus da USP, é patente que a responsabilidade da prevenção é da guarda universitária e patrimonial – significa dizer, a própria reitoria e prefeitura do campus. O programa de vigilância, por óbvio, deve prever estreito vínculo e articulação com a polícia do estado – porém a execução deve ser decidida pela universidade.
A guarda universitária, como qualquer outro serviço de segurança, é concebida para proteger a integridade física e o patrimônio público e o das pessoas que frequentam o local. Se eventualmente flagrarem outro tipo de crime sendo praticado, podem e devem agir, até porque, na maioria das vezes, tais crimes também constituem infrações disciplinares previstas nas normas internas da universidade. Mas quem deve pautar as prioridades da guarda universitária é a própria comunidade acadêmica por meio de seus representantes nos órgãos de direção.
O factóide mascara profundo descontrole territorial na USP
O que está ocorrendo, na verdade, é algo muito pior que esse factóide da PM no Campus.
Há um processo de contínuo desgaste político-administrativo, uma deterioração absoluta da administração da universidade em relação ao seu mecanismo de vigilância e controle territorial.
A USP tornou-se um reino fechado até mesmo para seus alunos.
O melhor exemplo não vem dos casos graves de homicídios, roubos e estupros no campus da USP no Butantã. Não. O melhor exemplo vem da USP Leste – o Campus universitário que recebeu 6000 caminhões carregados de lixo e entulho, vários deles contaminados e TODOS em situação absolutamente ilegal.
Por meses a fio, caminhões invadiram um campus universitário da USP Leste – que já enfrentava a inacreditável crise de ter erigido seus prédios sobre solo contaminado – despejando resíduos irregularmente, sem que a administração da USP resolvesse dar um basta, chamasse a polícia militar, acionasse o órgão ambiental do estado ou mesmo o corpo de bombeiros.
Na verdade, até hoje, passados mais de cinco anos do início do CRIME AMBIENTAL (cuja pena equivale à de um homicídio simples) – a própria administração (a mesma que quer o campus do Butantã invadido por policiais militares) sequer puniu colegas responsáveis – ou mesmo acionou a autoridade policial…
Interditado Campus, parcialmente, pela CETESB, obriga agora, a universidade, seus alunos, funcionários e professores a percorrerem labirintos entre os prédios, por meio de tapumes, cercas, poços de monitoramento, bocas de exaustão de gases… etc.
A tentativa de o governo do estado, agora, impor policiamento militar no campus da USP – é o reconhecimento expresso de estar a administração universitária OMISSA na obrigação de providenciar uma guarda e vigilância eficaz, e manter um gerenciamento territorial digno desse nome.
Por outro lado, o Governo do Estado de São Paulo cria um factóide que revela o seu fracasso na adoção de medidas de segurança, não apenas no Campus da USP, mas em todo o entorno dos dois campi da universidade.
A USP não é “comunidade” que necessite “polícia pacificadora”
Se há algo que necessita ser investigado ali, além da onda de violência produzida por marginais, é a omissão sistemática dos seus administradores em previnir e reprimir não só esses delitos mas, também, os de natureza ambiental, como a do Campus da USP Leste, que não atinge uma ou duas pessoas – expõe a risco milhares…
Em recente caso relacionado à intervenção da Polícia Federal no Campus da Universidade Federal de Santa Catarina, a reitoria da UFSC, em nota, afirmou que a ação da PF feriu “profundamente a autonomia universitária e os direitos humanos”. Por sua vez, o delegado de polícia federal encarregado da operação devolveu a nota alegando que “autonomia universitária não deve ser confundida com libertinagem para a prática de crime. Autonomia universitária não deve ser confundida com licença para baderna, licença para arruaça, licença para desordem”.
No caso da USP, os valores ficaram invertidos. A BANANICE da administração do campus universitário, de se negar a organizar uma segurança que imponha respeito, seja em relação a baderneiros, seja em relação a marginais, seja em relação a poluidores – não pode ser corrigida por um governo que pretenda privilegiar uma autarquia, transformando toda uma guarnição de policiais militares em guardinhas.
Nesse caso, ambos, reitoria da universidade e governo estadual, promovem um abraço de afogados – afundando em um mar de confusões mal explicadas, contornando responsabilidades públicas e civis em relação a vítimas dos delitos processados nos terrenos da autarquia e produzindo mais um mero factóide.
Mais uma vez, estamos diante de mais uma vergonha com título acadêmico…
Antonio Fernando Pinheiro Pedro é advogado (USP), jornalista e consultor ambiental. Sócio diretor do escritório Pinheiro Pedro Advogados. Integrante do Green Economy Task Force da Câmara de Comércio Internacional, membro da Comissão de Direito Ambiental do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB e da Comissão Nacional de Direito Ambiental do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. É Editor- Chefe do Portal Ambiente Legal e responsável pelo blog The Eagle View.
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